Crítica a partir do espetáculo Paisagens para Não Colorir apresentado na MITsp 2019.
– por Felipe Cordeiro –
“A vida pode ser entendida exatamente como aquilo
que excede qualquer relato que dela possamos dar”.
Judith Butler
Provavelmente vou me lembrar do espetáculo chileno Paisagens para Não Colorir (Paisajes para No Colorear) durante muitos anos. Apresentada na 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), a peça foi encenada pelo grupo Teatro La Re-Sentida, fundado em Valparaíso em 2008, sob direção de Marco Layera. Em seus onze anos de trajetória, o grupo já se apresentou em mais de 20 países, em alguns dos palcos mais prestigiados do mundo, como Festival d’Avignon, Schaubühne, Théâtre de la Ville, Holland Festival, Wiener Festwochen, Zürcher Theater Spektakel, Festival Theaterformen e The Open Singapore International Festival of Arts; sempre levando a esses lugares uma visão crítica sobre as estruturas políticas e sociais que delineiam uma ideia de América Latina.
Apesar de assinar a direção, Marco Layera afirma que a peça foi construída a partir de uma criação coletiva, com intensa participação de Carolina de la Maza (que assina a dramaturgia e assistência de direção) e de outras artistas. Em entrevista a Júlia Guimarães, para a revista Cartografias (MITsp 2019), Layera assinala:
Há quem defenda que o diretor é a figura mais importante da criação. Eu nunca exerci a direção a partir de um lugar hierárquico. Para mim, fazer teatro é criar uma comunidade. É um exercício coletivo em si. Entendo o papel do diretor como o de um articulador dos diversos saberes, das experiências e materialidades que estão presentes no processo criativo, a favor de uma enunciação coletiva. Durante esse processo, as jovens foram convidadas a serem autoras da criação, e não meras intérpretes. Textos e estética nunca foram impostos, eles surgiram da real necessidade do coletivo, de suas individualidades, seus impulsos e consensos.
A obra traz à cena nove adolescentes entre 13 e 17 anos, que a princípio não eram atrizes. A criação teve por base testemunhos do elenco e de mais de 100 jovens chilenas, tendo como mote os inúmeros atos de violência contra adolescentes mulheres praticados em seu país – e facilmente extrapolados simbolicamente para outros lugares vizinhos. Trata-se de uma violência em sentido amplo, que transgride os atos físicos e também ecoa no verbo, nas distâncias, fronteiras e nas normas que incidem sobre tais corpos. Lissette Villa tinha 11 anos quando morreu asfixiada porque uma cuidadora de 90 quilos se sentou sobre ela por alguns minutos para realizar uma contenção física. Tania Águila morreu aos 14 anos quando seu namorado a atacou com uma pedra na cabeça. Florencia Aguirre tinha 10 anos quando seu padrasto a asfixiou com uma bolsa, a queimou e a enterrou no paiol de sua casa. Casos como esses impulsionaram a equipe a visibilizar as vulnerabilidades às quais mulheres menores de idade estão expostas.
Uma vez que a obra é apresentada no Brasil, seria imprudente pensar em seu campo de significação sem mencionar que dos 22.900 atendimentos realizados pelo SUS a vítimas de estupro no ano de 2016, 57% tinham entre 0 e 14 anos. Metade delas com menos de 9 anos[1]. Sabemos ainda que os relatórios não correspondem a quantidade real de casos, pois boa parte dos quadros de violência sexual não chegam ao atendimento médico. Nesses índices, os homens são os principais violentadores, raramente os abusos são realizados por mulheres. Outro dado que alarma, esse oriundo do próprio Chile, é o de que 62,5% das crianças recebem métodos violentos de disciplina.[2]
Voltando à cena, o espetáculo tem início com uma projeção na qual o público lê que, quando o diretor e sua equipe solicitaram autorização para montar uma peça com adolescentes, as recomendações por parte do Ministério da Cultura chileno para a liberação foram de que não valia a pena trabalhar com meninas daquela idade, pois eram histéricas, dramáticas e bipolares. Que pelo menos uma dela se apaixonaria pelo diretor e, no mínimo, alguma outra o acusaria de assédio sexual. Na sequência, entra a primeira atriz em cena e, debochando, diz que nada daquilo aconteceu.
O espetáculo surpreende por trabalhar questões que costumeiramente não são exploradas em produções realizadas por artistas mais jovens, tais como: aborto, sexo, suicídio, uso de dispositivo intrauterino em uma adolescente, feminismos, ditadura militar chilena, a luta histórica dos Mapuches, a vida na periferia, o neoliberalismo de Sebastián Piñera, as imigrações, bem como questões de classe, gênero e raça.
Já no início da encenação quebra-se a imagem romântica da casa de bonecas cor-de-rosa (principal cenário da peça e nítida alusão à obra clássica de Henrik Ibsen) e põe-se diante do espectador o fato de que ele está perante seres humanos com questões complexas que se elevam sobre os possíveis dilemas banais que a produção midiática convencional tende a reforçar em telenovelas, literatura infanto-juvenil e no cinema. Muitas das possíveis estigmatizações caem por terra quando uma delas anuncia que, no elenco, algumas não acreditam em Deus, tantas outras são a favor do casamento igualitário, uma já tentou se matar, oito já foram chamadas de feminazi, uma possui gênero neutro (agênero), outra já foi vítima de violência doméstica, uma é lésbica, dentre outras constituições. Quando questões como essas, normalmente ligadas ao mundo “adultocêntrico”, são trazidas à baila pelas jovens atrizes, há uma tendência de maior conexão com o público, seja pela quebra de expectativa ou por trabalhar a partir de reflexões recorrentes na vida adulta de muitos cidadãos latino-americanos[3].
Tal movimento nos faz pensar em nossas próprias inferências sobre o que é ser adolescente. Como éramos nesse período? De que forma nosso olhar se modificou a ponto de olharmos para nossos jovens e os enxergarmos mais pela falta, pelo que virão a ser, do que por sua própria presença? Até que ponto não estamos repetindo os mesmos enquadramentos que nos formaram?
O trabalho evidencia que fatores como a constante manipulação de valores morais realizada pela masculinidade já estão sendo pautados pela geração Z[4] – o que demorou anos para acontecer com as gerações anteriores. Fato que a torna um possível lampejo utópico. Como esses ascendentes vão interagir com as mudanças de nosso tempo? Quais serão suas potências de falar sobre o mundo? Não obstante, ao mesmo tempo que evidencia a força da juventude, o espetáculo também joga com perspectivas opostas. Em uma das cenas, a atriz Sara Becker dança reggaeton com roupas curtas e movimentos sensuais. Uma das colegas a alerta: “dançar provoca os homens”, e Becker retruca: “algumas mulheres também”. Becker argumenta que o corpo é seu e que faz dele o que bem entender, ao passo que sua parceira provoca dizendo que, se o corpo realmente fosse dela, não seria necessária uma autorização de seus pais para que a menor de idade estivesse em cena.
– Vou dançar até que todos se acostumem.
– Vão te violar, jogar seu corpo numa cova a 5 metros debaixo da terra e “a culpa” ainda será sua.[5]
O ritmo latino e dançante é interrompido por uma música norte-americana que versa sobre sonhos doces e nubla o relato de violência construído na cena anterior. A direção de Layera é ágil em evocar atmosferas específicas e logo rompê-las, propondo um panorama crítico sobre a ficção que acabara de ser construída. A encenação constrói ritmos e distanciamentos a partir do uso de recursos tecnológicos, como a presença de microfones em momentos em que o elenco interpreta homens, projeções ao vivo realizadas pelas próprias atrizes ou vídeos produzidos anteriormente. É o caso do comercial “As mulheres choram por tudo”, da Sprite, que, como o próprio nome sinaliza, apresenta uma visão misógina e normatizante acerca das mulheres e suas emoções. Ou o vídeo em que uma das atrizes conta que durante meses sofreu bullying no colégio, quando colegas diziam que ela tinha “bafo de pênis” e desenhavam falos em todos seus materiais escolares. Tal ato a fez durante muito tempo escovar os dentes até que eles sangrassem, sentindo-se “miserável e vazia”, o que a fazia se questionar “o que ganhavam com isso?”, em que reside o prazer em fazer o outro sofrer? Como resposta cênica, ironizam a própria fixação masculina com seus próprios órgãos genitais e preconizam que “chupem suas picas sozinhos!”, já que elas tanto os agradam.
Nessa mesma esteira, a peça reflete sobre o combate à pluralidade de gêneros proposto por entidades religiosas e contra-argumenta dizendo que, se Deus é tudo, então ele é também gay. A discussão de gênero e sexualidade é talvez a linha de força mais pulsante da obra e, como sabemos, pode ser motriz político para controlar corpos e desejos. A partir desse debate, a atriz Arwen Vásquez, que é lésbica e tem 14 anos, em um ato performativo, fala diretamente à plateia que sem pênis também há sexo. Faz um protesto enérgico contra psicólogos que ainda insistem em uma possível cura gay e questiona os mais variados clichês presentes na sociedade acerca de sua orientação sexual. A atriz diz que ser lésbica definiu sua pena, sua raiva, definiu tudo que ela é, inclusive a sua revolução. E encerra dizendo que cada vez que vê a namorada coloca um sorriso enorme na cara, e que não há nada no mundo que a deixe tão plena quanto poder estar ao lado de Maitê.
Os protestos são criados de forma a evidenciar como o combate aos gêneros e sexualidades é também uma cortina de fumaça que, simultaneamente, encobre violações de direitos humanos no Chile, das mais diversas ordens (como homenagens a Augusto Pinochet e os problemas com as condenações de militares), bem como a falta de investimentos em educação pública e gratuita de qualidade. Como uma das atrizes expõe, “falta dinheiro para a educação, mas sobra para bombas lacrimogêneas”. As ações cênicas, ao transitarem entre o analítico e o performático, requerem do espectador um movimento que diz respeito à sua implicação ética naquelas temáticas. O público é convidado a se comprometer com questionamentos distintos, como: quais formas de inteligibilidade de mundo estão em jogo quando se trata de nossas imagens de infâncias? Quais são as crianças autorizadas a terem uma infância segura? Até que ponto nossos conservadorismos não são sustentados por misérias (financeiras, afetivas)? Qual o papel do teatro nesse contexto social?
Um recurso narrativo recorrente no espetáculo para flertar com essas provocações é o testemunho. Um deles é presentificado quando Daniela López relata o episódio em que o pai cuspiu na cara de sua mãe na mesa de jantar, na frente dela e de sua irmã mais nova. López conta que o pai soube da cena proposta pela filha e, por isso, nunca foi a nenhuma das apresentações. Assim sendo, elas convidam um homem da plateia para interpretar o pai da atriz. O vestem, posicionam e manipulam como no dia da agressão. Enquanto a condutora do relato narra seu trauma, as outras vão criando ambientações cênicas com objetos, cantos, danças e outras proposições imagéticas. Criando uma imagem dupla, o elenco constrói uma ficção paralela dentro da própria encenação. López desabafa com o “pai” por meio de um discurso no qual evidencia suas fragilidades e inseguranças, mas também elabora uma exposição potente, com bases feministas, acusando o pai que a chama de vadia por causa de sua sexualidade ao passo que ignora tantas outras coisas importantes que ela tem para dizer a ele, mas que nunca são ouvidas. López chora e diz que ama o pai e tem o silêncio do espectador convidado como resposta (a mesma do pai). Como sabemos que a peça oscila não apenas entre os testemunhos das próprias atrizes, podemos nos questionar quanto à “veracidade” do relato de López. Neste caso, fazemos coro a Júlia Morena Costa, professora da UFBA, quando escreve que o real é também uma estética que se alcança. Cito:
O real cênico não é sempre uma substância, um elemento físico ou uma presença, mas sim um marco de leitura, um pacto. O real é um acordo sobre a natureza do que será apresentado, que pode ser provocado por uma série de elementos que reafirmarão esse lugar de entendimento e de trato. O terreno ficcional é um jogo que se dá em um espaço-tempo determinado, que propõe elaborar estruturas inteligíveis e dentro de uma proposta compartilhada. Por fim, a arte não tem contas para prestar quanto à “verdade” do que diz, porque, no seu princípio, não está feita de enunciados, e sim de ficções, ou seja, de coordenação de atos.[6]
Para sistematizar sua ficção, o espetáculo trabalha com cortes abruptos entre uma cena e outra, seguindo um modelo brechtiano. Se na proposta anterior a atriz estava chorando, agora todo o elenco invade o palco, girando o cenário pelo espaço, ouve-se um reggaeton muito forte, elas dançam, se divertem, filmam e projetam seus próprios rostos no telão com expressões selvagens, anárquicas e rebeldes. Dublam canções de forma bastante enérgica, têm um cartaz com a foto da ministra Damares Alves com chifres e rabo de demônio e, assim, vão esboçando sua revolução e seu deboche. A festa é interrompida por uma voz em off, da mãe de uma das atrizes, pedindo que a comemoração se dê por encerrada. A liberação dos corpos dá lugar à encenação da morte de Lissette Villa (que mencionei no início do texto), quando oito garotas, para atingirem o peso de 90 kg, simulam subir umas em cima das outras para que a nona entenda o que é morrer asfixiada por uma pessoa com um peso tão superior ao seu.
A fim de propor outros estranhamentos que não apenas o ritmo da montagem, Paisagens para Não Colorir expande seu discurso para corpos não humanos, como pequenas bonecas ultratecnológicas que reconhecem seus donos a partir de chips e recebem diversos cuidados, como também as famosas bonecas infláveis, usadas para práticas sexuais. A boneca inflável, conforme apresentada na peça, é tida como um receptáculo de sêmen, sempre na mesma posição, com olhos estáticos, como se estivesse bêbada ou drogada. Não tem uma vida, identidade, histórias que não sejam sexo. Por esse motivo, as atrizes decidem tratá-la como se ela fosse uma delas, a dão o nome de Sofia e propõem uma festa de aniversário para a boneca. O elenco canta uma música de aniversário para ela e convoca o público a fazer o mesmo.
Outro exemplo de ficcionalização da realidade é promovido quando leem um livro de história infantil. No entanto, ao invés da história de alguma princesa, ele narra a vida de uma menina de 11 anos que foi estuprada pelo padrasto e culpada pela mãe, pois ela deveria ter “fechado as pernas”. Apesar da gravidez de risco, nessa fábula que joga com o factual social e o ficcional, a criança tem o filho e o entrega para adoção. A cena abre margens para que as atrizes se vistam com casacos de pele e entoem uma série de discursos conservadores. Apesar da obviedade do recurso, ostensivamente utilizado no teatro, o que é dito possui uma forte relação causal com a cena anterior, onde o corpo da mulher é visto, por olhares conservadores, como um meio de gerar a vida, e não como detentor de suas próprias escolhas – como a opção pelo aborto.
Tais conservadorismos esbarram em práticas da cultura cristã e seus princípios de adoração à Pátria, e na fala contra o avanço do comunismo, como já vimos em 1964 durante a ditadura militar brasileira, ou em 1973, no Chile. Palcos para discurso sofisticadamente medíocre, como é o das elites quando decidem apoiar governos autoritários. Na peça, uma das senhoras raivosas chega a argumentar que “na ditadura matavam sim, pessoas adultas; e vocês as matam antes de nascerem”. Na voz de uma pessoa adulta, no estado atual da arte, talvez isso não surta tantos efeitos por estarmos habituados a esse tipo de ironia nos palcos ou, principalmente, nas redes sociais. A despeito disso, ouvir adolescentes assumirem esses discursos desde tão cedo promove alguma chama nos olhos dos espectadores ao abrir um espaço utópico de revanche diante de uma mudança na percepção da realidade.
As senhoras conservadoras despem a atriz Matilde Morgado, que se entende como agênero, e colocam em seu corpo roupas “de princesa”, com uma peruca de franjinha e cabelos lisos – contrária a seus cabelos curtos e desgrenhados-, um vestido branco, com saia rodada com forro de tule, e um casaqueto rosa-bebê – também contrastantes com suas calças jeans e camiseta de banda de rock sobreposta por uma camisa de botões. Ela fica durante alguns minutos passando um batom vermelho na própria boca e encarando a plateia, até que tira essa roupa com força, fala de sua escolha não binária e de sua pesquisa sobre isso (mesmo tendo apenas 11 anos): “Uma vagina não me faz mulher, o que importa são meus sentimentos. Para o mundo eu não existo”.
No mesmo instante, as atrizes cobrem seus próprios rostos como anarquistas, black-blocs, e picham a casa cor-de-rosa com textos como “masturbe-se”. Tiram parte de seus figurinos, quebram a boneca controlada por chip e realizam diversas cenas na estética do agitprop. Novamente, o fervor é interrompido por Sofia, a boneca inflável (agora vestida com roupas e peruca), que despenca do teto enforcada, num ato de suicídio. As garotas leem sua carta de despedida, na qual diz que, apesar de nunca ter sido tão bem tratada (como foi pelas garotas), havia algumas cicatrizes e traumas que não podiam ser superados.
O espetáculo chega ao fim com o elenco vestido com o típico uniforme de secundaristas do Chile. O que não deixa de firmar uma alusão ao movimento estudantil, Revolución de los Pingüinos, ocorrido em 2006 e que ecoa até os dias atuais. Após 90 minutos de apresentação, as atrizes dizem que nunca tinham sido escutadas por tanto tempo por adultos sem que fossem interrompidas.
Os adultos não são o centro da sociedade. Não vamos nos tornar pessoas, já somos. Hoje os homens brancos-héteros-cis dominam as minorias. Mas nós temos 60, 70 anos para fazer uma série de mudanças na sociedade. Talvez vocês da plateia já estarão mortos, mas nós seremos protagonistas de uma revolução.
Na obra, como na política latino-americana, há sempre um movimento de vai e vem, de acerto e erro, de esperança sucedida por fracassos e erros vergonhosos, por avanços e retrocessos, por grandes festas e tristezas coletivas. O espetáculo é um convite a nós, adultos, para que não leiamos crianças e jovens apenas motivados por chaves normativas de estigmatização. Paisagens para Não Colorir nos possibilita vislumbrar adolescentes concentradas na arte e nos seus métodos de criação de zonas de comprometimento estético, social e político. Meninas dispostas a lidar com o que lhes é estranho, a fim de “desmonstrificarem” tal experiência, indo na contracorrente de cidadãos que aceitam ordens sem um processo de reflexão e experienciação prévios. Jovens capazes de ler o mundo poeticamente, através de suas metáforas e incongruências, ao contrário de adultos absortos em pós-verdades.
Enquanto nossas sociedades latino-americanas vivem um estado policial pós-democrático, com um subplano de esvaziamento do político, num movimento de retrotopia (Zygmunt Bauman), temos também contramovimentos como essa obra. Aqui no Brasil, o país que mais mata defensores dos direitos humanos no mundo, sabemos que onde não há investimento em cultura e educação a comunicação se dá pela violência. Resta sabermos qual é nosso papel diante de toda essa atrocidade, pois ela não é um problema apenas do poder público. Num contexto de ruína do Estado Democrático de Direito, a relação com crianças e adolescentes se intensifica a partir de uma lógica de consumo e enquadramento em determinado padrão político. E isso da classe média branca em diante, pois as crianças negras e periféricas são destinadas aos caminhos dos “indesejáveis” da nação.
Perante essas perspectivas, como o interesse por esse “real” no acontecimento teatral pode afetar o público? Julia Morena Costa vai dizer que “o cruzamento entre os dois regimes – o real e o ficcional – os aproxima como arenas estéticas relacionais entre espectador e obra, ambas baseadas em pactos que podem, dentro do espaço da representação, tocar no que lhe escapa e lhe ultrapassa”. Para Jacques Rancière, no campo artístico, “o real necessita ser ficcionalizado para ser pensado, passar pelo reordenamento narrativo humano, estetizado e inserido no jogo decifrável, acordado e compartilhado entre as partes.”[7]
Paisagens para Não Colorir percorre tais fronteiras híbridas – do teatro e do que lhe é externo – a fim de mobilizar um espaço, se não utópico, pelo menos heterotópico, no qual, mesmo que por meio da mediação do espelho artístico, possamos vislumbrar um futuro minimamente menos apocalíptico que o que se delineia no ar. Ou, como nos ensinou Platão, “podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz”.
Espetáculo visto em 20 de março de 2019, na MITsp.
Ficha técnica:
Criação coletiva, baseada em mais de 100 testemunhos de adolescentes chilenas.
Direção: Marco Layera
Elenco: Ignacia Atenas, Sara Becker, Paula Castro, Daniela López, Angelina Miglietta, Matilde Morgado, Constanza Poloni, Rafaela Ramírez e Arwen Vásquez
Assistente de direção: Carolina de la Maza
Dramaturgia: Carolina de la Maza e Marco Layera
Assessoria dramatúrgica: Anita Fuentes e Francisca Ortiz
Assistente de cena: Francisca Hagedorn e Soledad Escobar
Psicóloga: Soledad Gutiérrez
Cenografia e iluminação: Pablo de la Fuente
Figurino: Daniel Bagnara
Diretor técnico: Karl Heinz Sateler
Música: Tomás González
Som: Alonso Orrego
Produção: GAM (Centro Cultural Gabriela Mistral)
Coprodução: Compañía de Teatro La Re-Sentida
[1] Dados do SINAN, Sistema de Informações do Ministério da Saúde.
[2] Dados da terceira Encuesta Longitudinal de Primera Infancia (ELPI).
[3] Delimito aqui a América Latina pois é o espaço abarcado pela obra e também por entender que outras porções territoriais não necessariamente estão focalizando esses tópicos.
[4] Definição sociológica que estabelece um recorte de pessoas nascidas em torno de 1995 e 2010.
[5] As traduções são de minha autoria e o texto, por ter sido anotado durante a apresentação, está fadado a possíveis equívocos.
[6] COSTA, Júlia Morena. O duplo pacto representativo: porosidades e enganos do real em Tijuana, de Gabino Rodríguez. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 1, p. 37-51, 2019.
[7] No livro “A partilha do sensível” (2005), p. 58.