Crítica a partir do espetáculo “Três Fadas Moribundas” do Coletivo Bufadas de Belo Horizonte, visto em 20 de outubro de 2024 no Entre – Festival das Infâncias, no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas.
– Por Diogo Horta e Mariana Câmara –
O que é o padrão? O que é a norma? O que é o correto? O que pode ser dito? O que deve ser silenciado? O que é aceito? O que é permitido? O que é recomendável? O que é tolerável? O que é, o que é?
O teatro para crianças é um território de descobertas, tanto para os pequenos como para os adultos. As primeiras experiências vivenciadas no teatro, quando criança, começam a criar os contornos de um possível mundo novo, longe das telas, no qual um grupo de pessoas se reúne, normalmente, para ouvir, ver e sentir uma história.
Desde às fábulas tradicionalmente contadas às crianças, passando pelos contos de fadas e toda a produção artística decorrente destes, seja no teatro, no cinema, nos livros, entre outros, é possível observar pessoas ou animais, geralmente saudáveis, passando por provações e desafios de toda sorte. Reproduzindo uma hegemonia branca e masculina, muitas dessas histórias ainda trazem uma mulher fragilizada em perigo e um homem pronto para ser o seu salvador. É claro que podemos discorrer sobre muitas exceções dentro desse padrão atualmente, porém nossa principal memória de histórias para infâncias recai, mesmo sem querer, na narrativa de “quem poderá nos salvar”?
Ainda fazendo uma breve análise sobre um padrão de histórias e representações no universo de narrativas para crianças, do ponto de vista da imagem e da motivação é interessante observar como os vilões foram retratados. Corpos divergentes foram explorados na caracterização de personagens malignos, trazendo características físicas fora de determinado padrão como símbolo de maldades, traumas e agressividades. A bruxa idosa com verruga no nariz e dificuldade de locomoção é o exemplo mais nítido de tal tipo de construção imagética do mal.
Fotos de Igor Cerqueira
A peça “Três Fadas Moribundas” inverte essa tendência e apresenta, em um espetáculo para todas as idades, três protagonistas com corpos e pensamentos divergentes que se unem para encontrar uma asa de fada perdida. O espetáculo foi criado com o objetivo de proporcionar apresentações teatrais em Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM) da cidade de Belo Horizonte. A partir desse objetivo, o coletivo de artistas define como mote a criação de três personagens que fogem da norma e, a partir daí, exploram todas as suas potencialidades.
Os muitos clichês que costumam aparecer em um teatro para crianças são, diante disso, deixados de lado e o espetáculo explora um universo diferente, totalmente distante da oposição bem e mal ou mocinho e vilão. Se por um lado esse rompimento é positivo por apresentar novas histórias e personagens, por outro pode dificultar a entrada e adesão de um público mais habituado aos padrões menos aberto a novidades.
Essa ruptura, de todo modo, já está no título da peça e ninguém pode dizer que foi pego de surpresa pela proposta. É importante destacar que o universo das fadas e suas asas de borboletas sempre esteve no imaginário das crianças, e também dos adultos, como uma espécie de poesia mágica. A transformação da lagarta que vira uma borboleta é um dos primeiros contatos que temos com a ideia e conceito de metamorfose. Se o imaginário for um pouco mais além, essa borboleta se torna a fada dos nossos sonhos que aparece em cor azul claro, rosa, lilás, amarelo, sempre em tons de muita harmonia e leveza.
A partir dessa ideia, o espetáculo “Três Fadas Moribundas” já traz no título uma quebra de expectativa: seriam fadas desfalecidas? Ou no melhor trocadilho que as crianças amam fazer: “três fadas com muitas bundas”? O que seriam essas fadas diferentes? É por meio dessa pergunta e da transgressão de certas regras sociais, trazendo uma dramaturgia cômica, que parece surgir a linguagem do bufão presente na encenação do espetáculo.
Joyce Malta, diretora do espetáculo, pesquisa a arte da bufonaria e estudou bufonaria na École Philippe Gaulier na França. Byron O’Neill, dramaturgo, se destaca nas suas criações dramatúrgicas por mais de duas décadas na linguagem do teatro do absurdo. Carol Oliveira, atriz, produtora e idealizadora da peça, é também terapeuta ocupacional atuante na rede de saúde mental, e vem trilhando um cruzamento entre esses dois universos em seus trabalhos autorais. Gustavo Djalva, ator, é também psicólogo e músico e Paloma Mackeldy além de atriz é arte-educadora. O encontro desses cinco artistas que transitam por universos onde a realidade anda de mãos dadas com a fantasia pode provocar no espectador sensações diferentes dos habituais ao explorar personagens que transitam entre a precariedade, a feiura e a rejeição, que são elementos da bufonaria.
Com personagens diferentes e uma história longe de certos padrões, o público é convidado a lidar com uma outra proposta capaz de alterar suas próprias expectativas. Um dos maiores exemplos disso, é um sentimento de frustração que pudemos observar em algumas crianças, ao constatar que a asa que tanto foi procurada durante todo o espetáculo, é um pequeno objeto, que se coloca na cabeça, muito parecido com uma antena. Tal observação se deu durante as cenas finais e ouvimos mais de uma criança questionando se aquele objeto era mesmo a asa perdida e demonstrando desapontamentos nessa cena por conta do objeto revelado.
Outro tipo de ruptura também se dá, ao longo da peça, por meio de ironias ditas pelas fadas bufônicas. Tais ironias são rapidamente identificadas pelos adultos criando assim uma cumplicidade de que a peça conversa também com eles. No entanto, há um risco de que o excesso de tais falas confunda as crianças ou gere certa dificuldade em seguir a sequência de ações e reviravoltas propostas na dramaturgia, o que acaba afastando-as da montagem.
É relevante ainda observar que o grande “vilão” da peça é a falta de memória de uma das personagens. A sociedade vive momentos de tantos estímulos oferecidos que perder a memória, seja ela por segundos, se torna um dos maiores terrores da vida contemporânea. Isso leva as três fadas a criarem confusões e diálogos nonsense para juntas iniciarem uma jornada para encontrar o que foi esquecido. A amizade e a cumplicidade entre as três é algo bonito de se presenciar, pois o sentimento de amizade, de saber que se tem um amigo para contar, é algo que as crianças vivenciam com muita intensidade e têm contato já desde a primeira infância. Destaca-se como as três fadas se reconhecem e se apoiam nessa tríade.
“Três Fadas Moribundas” é um espetáculo cheio de duplos sentidos, cômico, que transita entre o grotesco e o belo, que fala sobre esperança, sobre aceitar o outro como ele é, sobre as diferenças de cada um, sobre a amizade e sobre a fantasia. Michel Ende, autor alemão do clássico literário A História sem fim (2020), fala que no mundo da fantasia, cada parte de uma pessoa pertence ao mundo dos sonhos, e que neste mundo há também a esperança da humanidade, e que para a fantasia não há limites.
Se o teatro é a arte da presença e ele acontece apenas uma vez, mesmo que tenha acontecido um milhão de vezes, cada apresentação é única e as percepções e sensações deste momento singular também. A apresentação do espetáculo “Três Fadas Moribundas”, no Festival – Entre das Infâncias teve algumas questões técnicas de som que dificultaram o público a acompanhar a narrativa pela falta de clareza do texto dito pelos atores. O início silencioso cheio de mistério ganhou o público de imediato, mas observamos que o público foi se perdendo ao longo do tempo. Como o espetáculo foi inicialmente criado para espaços alternativos e um público mais restrito, observa-se o desafio de transpor a montagem para um palco italiano clássico no qual a distância entre a cena e a plateia pareceu se sobrepor à vitalidade da montagem.
Independente disso, reforça-se a perspectiva plural da montagem que foge dos clichês e explora um universo diverso e longe dos padrões do teatro para crianças. Dessa forma, o espetáculo convida para outro mundo de fantasias no qual as fadas são singulares. O que importa, no fim, é fazer essa jornada entre amigos e não perder a esperança de conseguir o que se quer. E que a gente nunca deixe de fantasiar mesmo que a asa encontrada seja apenas uma antena!
FICHA TÉCNICA
Idealização: Carol Oliveira
Direção: Joyce Malta
Produção: Carol Oliveira e Joyce Malta
Dramaturgia: Byron O’Neill
Atuação: Carol Oliveira, Gustavo Djalva e Paloma Mackeldy
Produção Musical: Barulhista e Gustavo Djalva
Voz em Off: Iara e Joyce
Composição do Reagaton Fadástico: Carol Oliveira, Gustavo Djalva e Paloma Mackeldy
Provocadores musicais: Joyce Malta e Gustavo Djalva
Figurino: Jonnatha Horta Fortes
Próteses: Pigmalião Escultura que Mexe
Costureiras: Irene Cavalieri e Vitória Cavalieri – Ateliê Decustume
Oficina de maquiagem: Cacá Zech
Touca de crochê: Izabela Lopes
Cenotécnico: Café́ Móveis
Fotografia: Bianca Aun
Vídeo: Byron O’Neill e Sara Cambraia
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ENDE, Michel. A História Sem Fim. Brasil: Editora Martins Fontes, 2020 – 11ª edição.