Crítica a partir do espetáculo E ainda assim se levantar da Cia. Luna Lunera
– por Victor Guimarães –
Fotos de Kika Antunes
E ainda assim se levantar é um espetáculo devotado a criar um ambiente teatral seguro para a partilha das angústias e dos dilaceramentos que fundam a experiência de viver hoje nesse país sufocado. Personagens alquebrados, destroçados por uma contemporaneidade doentia, presos em um beco sem saída existencial e político, se dirigem a nós em tom de confissão, correm incessantemente em círculos, jogam juntos um jogo repetitivo, constroem um espaço cênico para o compartilhamento de um estado de frustração e paralisia.
Tudo no espetáculo aponta para um regime confessional: a recepção do público com as luzes acesas, os personagens que têm os mesmos nomes dos atores, o convite à parte da plateia para que se instale nas cadeiras dispostas no palco, os pronomes pessoais sempre usados na invocação de relatos biográficos. Se as histórias contadas pelos personagens são “reais” ou não, pouco importa: não há intervalo, não há ruptura no pacto de veracidade que caracteriza um confessionário ou uma troca de confidências entre amigos. No mesmo movimento, todo o esforço da encenação consiste em exibir seu desnudamento: a nudez literal dos corpos dos atores em vários momentos, mas também as performances que aspiram à visceralidade, a tela de projeção que duplica o espaço da cena, as constantes interpelações da plateia. O convite ao convívio se dá nesse lugar de sinceridade e entrega emocional, mas sempre com o aviso reconfortante de que não é preciso ter medo, pois não se trata de uma peça interativa.
O desnudamento, a entrega e a sinceridade, no entanto, têm sempre um limite muito claro: só cabem em E ainda assim se levantar as confissões que levem à comoção coletiva, nunca ao engulho. Por mais que a personagem de Letícia Castilho desconstrua constantemente o machismo de fundo do personagem de Anderson Luri, sempre haverá um momento subsequente em que Anderson compartilhará uma história de infância para amaciar o desconforto e devolvê-lo a um comum apaziguado em que todos os sofrimentos se equivalem. A empatia do espectador é um jogo ganho de saída, pois ao menor sinal de ruptura, há sempre um novo momento em que as arestas entre os personagens – e destes conosco – serão aparadas. O correr em círculos nunca é vertiginoso o suficiente para nos capturar numa circularidade infernal, pois volta e meia há uma canção de protesto bem repertoriada no bom gosto médio para nos devolver à sensação de que, apesar do caos, tudo vai bem. A visceralidade chega até à pele, mas nunca ao embrulho no estômago.
Não foi preciso muito tempo de Brasil em 2019 para que percebêssemos o quanto um slogan como “ninguém solta a mão de ninguém”, viral à época das eleições que consumaram o desastre, só podia ser um mito burguês excessivamente bem-intencionado num país dilacerado pela escravidão. E, no entanto, E ainda assim se levantar é uma espécie de tradução teatral dessa frase: o espectador ideal da peça é aquele ou aquela que se comove em conjunto com as confissões emotivas dos personagens ou entoa, em uníssono, uma canção como Baby, como um acalanto nostálgico para aquecer corações intranquilos. Como tantas vezes nos espetáculos recentes da Cia Luna Lunera, de Prazer (2012) a Urgente (2016), a canção funciona como uma espécie de afago na memória coletiva, um descanso na loucura para refazer no teatro um pacto social baseado no consenso.
Mas essa não é uma característica apenas do uso das canções, e sim um programa estético. A verborragia excessiva da timeline das redes sociais ou dos portais de notícias é parte do problema, claro, mas o que fazer diante de um monólogo igualmente verborrágico que consiste em uma enumeração emocionada das desgraças às quais estamos mais que acostumados cotidianamente, senão aquiescer e continuar inerte? Nenhuma fissura entre palco e plateia é possível quando nossas mãos são convertidas em estatística diante da pergunta: “2013, manifestações de junho. Alguém aqui estava lá?” A mão que responde ao chamado é a que reconforta, sussurra “estamos resistindo juntos”, enquanto o país está literalmente pegando fogo lá fora, e o que o espetáculo oferece é uma tentativa apaziguada de apagar o incêndio interior.
Mais do que conservador, o espetáculo é restaurador: todo o movimento consiste em restaurar uma energia perdida, em refazer em cena o liame de um tecido social dilacerado. Não há dúvida de que é preciso encontrar alguma maneira de viver juntos nesse país em ruínas. Mas se o teatro for a continuação sensível do confessionário ou da mesa de bar, o risco é o de que deixemos a sala exatamente como entramos. Um pouco mais reconfortados em nosso sentimento – ou em nossa ilusão – de resistência, mas ainda imóveis.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Isabela Paes
Dramaturgia: Marcos Coletta e Cia. Luna Lunera
Assistência de direção: Cláudio Dias
Atores/Criadores: Anderson Luri, Cláudio Dias e Letícia Castilho
Figurino: Camila Morena e Cia. Luna Lunera
Cenário: Cia. Luna Lunera
Consultoria de Cenário: Ed Andrade
Criação de Luz: Marina Arthuzzi e Jesus Lataliza
Vídeos: Fabiano Lana
Design: Rafael Maia
Fotografia: Kika Antunes
Assessoria de Imprensa: Marco Túlio Zerlotini
Estagiário de Comunicação: Marco Túlio Bayma
Produção Executiva: Nathan Coutinho
Direção de Produção: Isabela Paes
Produção: Cia. de Teatro Luna Lunera