Panorama crítico a partir do 27º Festival de Curitiba, com foco nos espetáculos Domínio Público e Colônia.
– por Clóvis Domingos –
“Falar é antes abrir a boca e atacar o mundo com ela, saber morder. O mundo é por nós furado, revirado, mudado ao falar (…) Nossa fala é um buraco no mundo e nossa boca é uma espécie de pedido de ar que cava um vazio – e uma reviravolta na criação” (Valère Novarina).
Pelo terceiro ano, o Horizonte da Cena (através da minha presença e da crítica e pesquisadora Soraya Martins) participou do Festival de Curitiba e acompanhou alguns espetáculos da Mostra Contemporânea, além de realizar Encontros Críticos com artistas e público, numa parceria colaborativa com os críticos Francisco Mallmann do site http://bocasmalditas.com.br/ e Patrick Pessoa do http://www.questaodecritica.com.br/. Neste texto, trago algumas questões e inquietações surgidas em meu percurso particular dentro da vasta programação, além de reflexões gestadas pela força dos debates públicos.
Em mais uma edição, a curadoria ficou a cargo de Marcio Abreu e Guilherme Weber que trouxeram para a cena do Festival trabalhos com forte impacto discursivo (“Colônia”, “Domínio Público”, “Tom na Fazenda”, “Cabaret Macchina” etc), numa convergência com o momento brasileiro no qual vivenciamos uma intensa disputa de narrativas, podendo assim a linguagem poética em sua dimensão estético-política criar contra-narrativas às forças conservadoras vigentes. Dessa forma, o Festival de Curitiba também se posicionou e se mobilizou frente às atuais manifestações de censura destinadas não somente às artes em geral, como também aos corpos cidadãos, seja em sua diferença, subjetividade e multiplicidade; ao encolhimento e privatização dos espaços urbanos; à rarefação do convívio humano reduzido e empobrecido quando apenas se dá pelas relações virtuais; fatores esses, que muitas vezes impedem o diálogo e o encontro real e social.
O enfrentamento a questões tão emergentes não se deu apenas na escolha dos espetáculos, mas também no investimento continuado de ações como o Interlocuções, programação paralela proposta por Giovana Soar, que através de debates, workshops e lançamentos de livros, pôde criar aproximações e mediações significativas entre artistas e público, ampliando a circulação de ideias e instaurando assim espaços de fala, de escuta e de dissenso. Reconheço que nem sempre é fácil se deparar com pontos de vista divergentes, que a escuta é um ato de trabalho que exige abertura e disponibilidade, mas é condição imprescindível ao exercício artístico. O perigo que nos ronda no campo das artes (território sempre a lutar pela liberdade de expressão) é silenciar qualquer pensamento contrário ao nosso, numa tentativa de eliminar a diversidade de opiniões.
Pude verificar a importância dos Encontros Críticos realizados após as apresentações dos trabalhos, pela expressiva quantidade de público presente, pelo interesse renovado nos debates, pela necessidade premente de manter viva as discussões (o que nem sempre aconteceu), pela tentativa de se construir um espaço discursivo de fato comum (não necessariamente homogêneo) e não apenas reservado aos artistas e especialistas da área. Aposto cada vez mais em ações formativas em eventos e festivais, pela possibilidade de produção de um pensamento crítico mediado pelo embate com as palavras e discursos, quando se vai além do produto e do fenômeno espetacular e se abre uma “nova cena” que permita se abordar processos de criação artística como atos de fala e posicionamentos no mundo.
Um ponto a ser destacado no Festival de Curitiba foi a presença de espetáculos de teatro-conferência nos quais foi possível reconhecer a palavra em sua dimensão performativa, como presença corporal e como discursividade política. Teatro-conferência é um termo cambiante e movediço, que só recentemente tive conhecimento e que talvez não dê conta de abarcar um conjunto de trabalhos atuais, podendo inclusive limitá-los em suas infinitas potencialidades. Ao invés de oferecer qualquer tipo de conceito, prefiro me arriscar neste texto, a relacionar esta expressão à dois espetáculos que assisti no Festival de Curitiba: Domínio Público e Colônia.
Fotos de Humberto Araújo/ Festival de Curitiba
Domínio Público
Essa obra foi originada a partir do convite da curadoria do Festival de Curitiba, e como um espetáculo de teatro-conferência, marca o encontro de quatro artistas brasileiros censurados nos últimos anos: Wagner Schwartz (bailarino que apresentou a performance “La bete” no MAM-SP e foi acusado de pedofilia nas redes sociais), Renata Carvalho (atriz transgênera que teve seu espetáculo “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu” proibido de ser assistido em algumas cidades), Maikon K. (artista levado à uma delegacia de Brasília por sua apresentação na performance “DNA de Dan”) e Elisabete Finger (bailarina presente na apresentação de Schwartz e cuja filha apenas tocou os pés do artista nu, gerando equivocadas interpretações e manifestações de ódio pela internet).
Neste espetáculo, os criadores realizam seu teatro-conferência num espaço que remete à uma galeria de arte, tendo ao fundo um painel com a imagem da obra renascentista “Mona Lisa” de Leonardo Da Vinci. Como fio condutor, suas conferências resgatam a história do roubo dessa famosa obra do Museu do Louvre em 1911 pelo italiano Vicenzo Peruggia, e os artistas na peça, buscam provocar uma série de reflexões sobre como tal fato foi abordado, expondo as múltiplas versões e apropriações narrativas, inclusive mostrando a questão do escândalo como elemento chave para a recepção e fetiche construído sobre tal pintura. Nesse ponto, o espetáculo parece atualizar, pela lente da história da arte, o complexo campo de interesses econômicos, morais e religiosos sempre envolvidos na circulação das obras de arte.
Quatro conferências são proferidas e em cada uma delas, os artistas separadamente, ainda que baseados na mítica da “Mona Lisa”, singularizam as questões debatidas em recortes que expressam as manifestações presentes de censura que sofreram: da nudez à transgeneridade, das fake-news às fracassadas tentativas de interpretação do sorriso emblemático presente na obra de Da Vinci, da proibição do sorriso feminino à condição social da mulher apenas reconhecida e respeitada quando no papel de mãe dedicada e protetora de sua “indefesa” prole. Elegantemente vestidos (numa oposição à nudez que alguns trabalhos de arte corporal apresenta e que incomoda a muitos moralistas que relacionam o corpo a tabus sexuais e religiosos) e com seus discursos irônicos, bem argumentados e provocativos, os artistas de Domínio Público quebraram as expectativas iniciais da apresentação de um trabalho mais imagético e performativo, parecendo optar, pelo protagonismo da palavra, que numa operação metafórica, foi dita ao vivo sem qualquer tom de agressividade por aqueles que só agora puderam formular uma resposta cênica artística aos ataques sofridos. A presença concreta dos artistas em cena, nesse sentido, se distancia da posição dos internautas que se esconderam e se protegeram no anonimato do espaço virtual. Falar com os outros assumindo sua realidade carnal é bem diferente de falar sobre os outros através de uma tela digital.
Mas a escolha da “Mona Lisa” como referência disparadora e mediadora do espetáculo, não apresentaria algum dado incoerente e até mesmo perigoso para se propor uma aproximação menos preconceituosa e sob novos parâmetros, quando se trata de falar sobre arte contemporânea? Se a utilização de uma obra clássica não é problematizada em sua contextualização espaço-temporal, corre-se o risco de se continuarem perpetuando velhos cânones que apenas reforçam modelos estéticos já consolidados. Não será exatamente a “Mona Lisa” um exemplo do que seria uma “arte verdadeira” para aqueles que ainda não se conectaram com as políticas e paradigmas de uma nova percepção estética?
Ainda que em Domínio Público a obra renascentista seja atravessada por indagações contemporâneas, não podemos ser inocentes ao desconsiderar que certos padrões estéticos como representação, sublimação, beleza e harmonia ainda persistem na avaliação do que se entende como obra de arte, na contramão de performances e instalações plásticas, corporais, coreográficas e visuais que rompem com essas qualificações e idealizações totalitárias e apostam na gestação de perguntas, incômodos, vivências inusitadas e o surgimento de um espectador-participante e ativo. Haveria aqui, a meu ver, uma ambiguidade entre forma e conteúdo. Pois se o formato “cena-conferência” fratura com a convenção dramática, o apelo à uma obra clássica, de alguma forma, ainda sustenta um gosto estético tradicional.
Alguns performers-palestrantes, nesse espetáculo, leem seus textos em iPads, enquanto outros apenas discursam. A utilização desses dispositivos eletrônicos em cena, além de reforçarem a ideia de um teatro-conferência, também remetem à nossa ação cotidiana de acessar, produzir e difundir inúmeras imagens e notícias através desses aparelhos. Não teria sido assim que procederam muitas pessoas em suas postagens e comentários na web diante dos compartilhamentos sobre os eventos artísticos que viralizaram? Não foram pelas redes virtuais que a arte e a vida dos criadores desse espetáculo ganharam um “domínio público” avassalador e assustador? Não seria o espetáculo uma tentativa de um corpo-a-corpo, um “com-partilhar” de fato humano e relacional?
Havia uma certa tensão da estreia no Festival de Curitiba, e era possível perceber certo nervosismo nesse exercício de exposição radical, até porque poderiam acontecer protestos ou se ouvirem insultos e xingamentos. Nesse ponto, a meu ver, Domínio Público apresenta forte dimensão liminar, isto é, coloca em crise, tensão e questionamento, quais critérios deveriam ser analisados na recepção da obra: apenas questões de linguagem estética? Um trabalho mais com características de work-in-progress do que uma obra fechada? Um marco importante nesse momento de retrocesso no país como ato político de insurgência e como possibilidade de uma conversa pública? O que seria mais relevante? Ou todos esses fatores não podem ser avaliados separadamente?
O debate ocorrido após o final da apresentação a mim se revelou como parte constitutiva do mesmo, uma vez que se o trabalho dos artistas (bem como suas vidas pessoais e familiares) ganhou uma dimensão de “domínio público” (sendo atacado e defendido por diferentes grupos e pessoas), a transformação dessa situação pode acontecer quando não há mais um domínio de nenhuma parte, mas sim um “encontro público”. Como migrar da opinião para a reflexão, colocando a palavra e o pensamento como procedimentos éticos e civilizatórios? O que é estar diante da presença real do outro? Como é a experiência de escutar mais demoradamente um fato? Isso certamente é um desafio, pois exige tempo e duração para que as palavras possam “desvestir” preconceitos e padrões sociais e religiosos.
No Festival de Curitiba, a estreia de Domínio Público foi recebida como um “respiro” para tempos tão asfixiantes, mas isso porque os artistas puderam contar com a adesão de uma plateia também ávida por uma arte que oxigene nossas existências. O desafio maior será quando for necessário o enfrentamento direto com aqueles que pensam diferente e podem ser reativos à presença dos artistas e não aceitarem a possibilidade de diálogo. Isso nos traz novas inquietações: arte para quem? Para os artistas? Para “convencer os já convencidos”? Para todo tipo de gente, incluindo aí até os mais “conservadores”? Não tenho uma resposta pronta. Considero que a recepção positiva que o espetáculo teve, possa servir inclusive de alimento e incentivo para se efetuarem novos encontros. Assumo ter me emocionado pelo fato de que esses artistas conseguiram ultrapassar e sobreviver ao trauma, ao medo e à hostilidade da turba raivosa e pelo ato estético, mais uma vez se reinventaram, e também nos confirmaram a potência reparadora, curativa e política da arte, não somente a garantir seu espaço específico de atuação, mas numa luta mais ampla contra toda forma de injustiça e opressão.
Não retiro aqui, de forma alguma, a força e importância histórica da apresentação no Festival de Curitiba, mas apenas intuo, caso esse espetáculo seja apresentado em novos lugares (o que torço fortemente para que isso se viabilize), que ainda temos novas palavras e percepções a serem descobertas no contato com essa peça-conferência. Ao final de Domínio Público, a “Mona Lisa” permanece intocada em seu misterioso sorriso e protegida em sua fama eternizada, numa contraposição da experiência vivenciada pelos quatro artistas, cujos corpos foram arbitrariamente agredidos e violentados e isso não pode cair no esquecimento ou desaparecer pela velocidade e banalização das notícias veiculadas. Precisamos de arte no debate público, não como fruto de escândalo moral ou captura de interesses partidários, mas como experiência do sensível e do vivível. Precisamos estar atentos e fortes? Algum comentário?
Fotos de Lina Sumizono/ Festival de Curitiba
Colônia
Se hoje vivemos certa fixação a determinados discursos políticos, econômicos, artísticos e sociais, certas palavras e expressões se tornaram reféns de um único sentido e logo esvaziadas de outras possibilidades de leitura. Palavras podem ser amarras que nos aprisionam, caso percam sua possibilidade de “flutuarem/deslizarem” feito embarcações por diferentes rios de expressão e comunicação. Inúmeras acepções da palavra “colônia” são evocadas e dissecadas no solo interpretado por Renato Livera com dramaturgia de Gustavo Colombini e direção de Vinicius Arneiro. Uma palestra-performance, cujos distintos significados da palavra “colônia” acabam por desencadear na plateia, livres associações capazes de expandir conceitos até então instituídos.
Colônia é uma conferência-experiência poética cujas palavras passam por um intenso processo de significação e variação, permitindo generosamente e de forma crítica, que o espectador possa também construir lentamente sua paisagem/referência individual e assim oscilar entre estranhamento e identificação. O conferencista, a princípio um sujeito bem articulado em seus embasamentos científicos, apresenta também algo de delirante em seu discurso, mas que com o passar do tempo nos revela sutilezas e sentimentos com os quais seremos surpreendidos.
A elaboração de um discurso lógico de alguns conceitos (colônia pensada a partir da sociologia, da botânica e da biologia), pelo tempo da exposição, vai aos poucos nos relembrando a colonização brasileira (dimensão histórica e política) até desaguar no extinto manicômio “Colônia”, em Barbacena (MG), que entre os anos 1930 e 1980, foi o lugar no qual 60 mil pessoas morreram e outras milhares foram aprisionadas mesmo sem apresentar algum tipo de sofrimento mental. Na trajetória proposta pelo espetáculo, vivenciamos um contato com a palavra que se torna atravessada por operações como despojamento, dispersão, heterodoxia e descolonização. Uma invasão de camadas significativas se sobrepõe à nossa percepção, o que permite que evoquemos certas memórias, uma vez que nenhum discurso nos é imposto como verdade absoluta e assim navegamos como frágeis canoas que podem se ancorar livremente em qualquer margem desse imenso e profuso rio cuja as palavras fluem abertamente.
Neste teatro-conferência, as palavras silenciadas e afundadas também emergem, os silêncios se tornam gritos e nessa premissa: falar é existir, (re) existir, resistir, re-insistir. Palavras como matérias loucas que produzem vida e saúde, pois “só quando a matéria está morta é que se produz loucura”. Se o conferencista sugere ser um homem excêntrico e aparentemente seguro em suas falas e explicações, aos poucos, nos é possível desconfiar de sua eloquente performance discursiva, que pela duração da aula-conferência, nos atualiza a presença carnal de uma parcela ferida, marginalizada e fragilizada da humanidade.
O palestrante escreve e cartografa freneticamente e de forma obsessiva as muitas acepções da palavra colônia num quadro negro, mas numa política de contra-efetuação, sua conferência não restringe ou coloniza nossos saberes e sensações, mas pelo contrário, nos liberta da prisão do conhecimento rígido e ortodoxo, da história oficial dos vencedores, da obrigação de assimilar conteúdos universalizantes. Estará o conferencista sozinho em cena ou acompanhado das inúmeras vidas e das vozes das vítimas do genocídio de Barbacena?
Colônia é uma peça apresentada para poucos espectadores e em pequenos espaços, o que favorece a criação de uma cumplicidade com o público. O ator fala diretamente conosco, consegue capturar nosso olhar e atenção, nos envolve num delicado trabalho de associar-pensar-sentir. O tom da conferência proferida se equilibra entre a precisão do texto e a sinceridade da interpretação. A fala que se inicia mais calculada e fria, ganha densidade, ritmo, indignação e convite à reflexão conjunta. O palestrante se “trairia” pelas palavras que diz ou seria uma tática e astúcia da construção dramatúrgica que opta por tecer uma linha que pretende nos provocar à escuta do que se encontraria muito além daquilo que alcançamos? Fato é que não há possibilidade de neutralidade nas palavras que emitimos e nos discursos que escolhemos fazer. Há sempre mais palavras, muito além daquelas que pronunciamos. As palavras nos escapam, nos delatam, nos permitem refazer um passado. Há um lugar de fala como uma fala tem seu lugar.
Domínio Público e Colônia são trabalhos necessários e urgentes para nos problematizar-sensibilizar sobre o nosso Sangril (neologismo presente no texto de Colônia numa referência a um Brasil secularmente banhado à sangue). Um alerta e denúncia das novas formas de colonização que atualmente ferem e violentam nossa jovem democracia política, nossas utopias, nossos direitos e nossos desejos. Sabemos que as palavras (des)organizam corpos, espaços e relações. Mas sempre resta uma questão: quais seriam os limites das palavras? Algumas “palavras/gestos” quando amplificadas e tensionadas podem fissurar e desnormatizar códigos estabelecidos, podem movimentar afetos (como amor e ódio) e provocar transformações?