Crítica a partir do espetáculo Ciclos apresentado no Galpão Cine Horto
– por Éder Rodrigues –
Foto de Mirela Persichini
A cena teatral de Belo Horizonte/MG tem sido tomada por uma quantidade destacada de solos que sublinham a pulsão feminina não apenas como tema da encenação, mas também enquanto presença e voz atuante. Mariana Rabelo com Ondas de onde parto (Coletivo Sala Vazia), Marina Viana com A mulher que andava em círculos (Mayombe Grupo de Teatro), Soraya Martins com Unha postiça (Coletivo Tropeço) e Ana Regis com Peixes são alguns exemplos de montagens recentes que partilham as múltiplas cartografias feministas no contexto emergente. Soma-se a este repertório o espetáculo Ciclos, idealizado pela atriz Rita Maia como uma junção do campo performático com o teatral a partir do depoimento sobre a tentativa de ser mãe após os 40 anos e as consternações diante de suas escolhas e recusas.
Ciclos integra o projeto Teatro Insurgente, do Grupo Teatro Invertido, que se concentra em uma mostra de solos criada por cada um de seus integrantes. Atualmente, a palavra insurgente encontra ecos na práxis teatral dos coletivos na medida em que se refere a uma instância que ideologicamente confronta o status quo em todo o seu aparato legitimado. Neste solo, a veia insurgente pode ser vista tanto na resistência em dar continuidade ao trabalho do grupo (apesar das políticas de asfixia do setor cultural), como na proposta de destacar a linhagem feminina como força motriz do novo contexto teatral que adentramos. Além desta unidade conceitual resistiva, Ciclos eleva esta insurgência ao destacar a autonomia da mulher e as fronteiras do próprio corpo que performa inúmeros dilemas perante os comportamentos sociais instaurados.
Foto de Mirela Persichini
O argumento da montagem parte de um momento culminante da vida da atriz e é exatamente a exposição desta fonte testemunhal que a dramaturgia explora como um jogo vertiginoso entre o texto, as vivências e a circunscrição corpórea no palco. O núcleo pulsante em torno da maternidade e da figura da mulher que compartilha suas tentativas de engravidar no momento em que escolheu para isso (ainda que o corpo não responda como gostaria ou deveria) já teria em si mesmo um conflito iminente. No entanto, a opção por uma narrativa não linear congratula uma abrangência muito maior ao tema e à voracidade de como o mesmo é colocado em cena. A montagem circunda os ímpetos e as expectativas em torno da gestação, abrindo margens para um percurso muito mais profundo sobre a existência, a provisoriedade do tempo, a lassidão e os desejos que ganham maior profusão diante do imponderável.
A dramaturgia se estrutura em torno dessa microesfera que se desdobra em luzes e sombras capazes de esmiuçar um caleidoscópio de passagens e angústias que, gradativamente, cria fissuras na instância macro que a montagem refrata. A leitura de que o existencial é a parte essencial da tessitura dramatúrgica se sustenta, mas o monólogo não se escora apenas nesse mote. A montagem privilegia um jogo físico de exposição que amplia o raio de sua abrangência ao problematizar os enfrentamentos que a autonomia da mulher atravessa no percurso de suas prioridades e emancipação. O equilíbrio textual vai do poético ao reverberamento da palavra no corpo, como no primeiro texto dado pela atriz que, literalmente, degusta de suas conotações e contrações para depois esculpi-lo em movimentos e partituras:
“Nutro desejo de carne em jorro sangue talhado na excrecência divina vaca das divinas tetas porretas amputadas. Devo. Oro. Devoro. Voro passos em vão pássaros alados carpados em progressão aritmética enovelada. O poço do fundo em duro mergulho da pança parruda desgastada. Não sei dizer o que merece ser dito nessa falta de mundo, de curso de tudo no nada passado presente e não futuro. (pausa) Uma linha sem braço, sem batidas do coração.” (MAIA, Rita; PAUTILLA, Juliana. Ciclos. Belo Horizonte: 2018. Texto não publicado)
O texto segue esta fluidez acelerando a correnteza de puro jorro e associações sintomáticas, sendo, posteriormente, retomado nas múltiplas conexões entre o corpo, a voz e a captação sonora ao vivo. Esta estrutura alavanca uma construção dramatúrgica potente que contrasta e sublinha o eco das palavras que o corpo suspende. Ainda que o texto exista previamente, a dramaturgia do espetáculo se constrói no encontro, no jogo que a atriz elabora entre o pretexto verborrágico, o que sonoramente recorta a cena e as intermitências do corpo que impulsiona seus ímpetos. A performatização da palavra sedimenta um terreno de pura entrega e recolhimento em que a espetacularidade de seus registros, amplificados ou silenciados, acaba por alimentar a rede de provoc(ações) que a atriz partilha.
O forte impacto visual do solo de Rita Maia pode ser lido como um encontro irreversível para dividir perdas, afetos e explosões. O foco, no entanto, está em como, neste encontro, o texto reverbera no corpo e também em como este mesmo corpo dilata as múltiplas textualidades que o percorre. O tecido textual reúne memórias do próprio nascimento, diálogos íntimos com o ser que os braços esperam e os movimentos para concretizar essa espera, além de estender as prov(ações) da atriz que, constantemente, tensiona a emergência das escolhas. Entre o prospecto corporal e a subjetividade que se desdobra, o texto curto ganha uma extensão corpórea provocadora. Rita Maia destrincha o argumento em variáveis que circundam a mulher na pele e na epiderme de suas afrontas. Ensaio em dizer que a atriz permeia cuidadosamente o grito, para compartilhá-lo em doses cavalares de um silêncio estrondoso. O corpo transpira um repertório de fisicalidades que contrapõe, atravessa e se mescla ao texto que invade a pequena sala escolhida para o encontro.
A palavra encontro é muito perspicaz para delinear este trabalho no sentido de acentuar a essência máxima que o teatro prioriza. Desde a entrada no espaço diante da atriz sentada de costas admirando o vazio de um horizonte incerto, já é possível mensurar este encontro em que o sentimento e o pensamento são capturados com a sutileza de quem convida, mas sem economizar os olhos agudos de quem, sobretudo, interroga.
A escolha entre a maternidade e a liberdade é ainda um tabu nos círculos familiares e na esfera social. O peso secular sobre prioridades, qual caminho tomar e como conciliar este caminho com a natureza do próprio corpo ganha uma notoriedade política com a performance de Maia, principalmente por personificar os abismos deste confronto perante os próprios desejos e o silêncio patriarcal que secularmente assume um papel coadjuvante (para não dizer figurante) nestas questões familiares que envolve afeto e renúncia, solidão e plenitude.
Sobre o tema, a atriz chegou a afirmar na entrevista concedida a Walter Felix no dia 17/05/2018 no portal UAI que “A maternidade é um eterno conflito entre liberdade e falta de escolha” e é com esta coragem de dizer as entrelinhas que a peça move as estruturas e encontra seu lugar na construção do pensamento coletivo. (…) Os meus limites, até certo ponto, quem determina sou eu; as minhas decisões cabem somente a mim.” Neste sentido a peça topografa um percurso que atravessa o pessoal e recai na esfera social, sem, no entanto, abrir mão da subjetividade para esculpir este manifesto sobre o corpo e o tempo que queremos dar para ele.
Foto de Mirela Persichini
A diferença é que a montagem não apenas problematiza esta demanda, mas também reafirma o lugar da mulher enquanto voz, corpo e presença. Ciclos é um espetáculo em que o corpo demarca suas fronteiras e também pode ser lido como uma expansão do trabalho forte e sensível da atriz desde a fundação do grupo, com destaque para Medeiazonamorta, um dos espetáculos que marcaram a cena contemporânea na capital mineira. O solo é, ao mesmo tempo, sutil e avassalador. Assume uma disposição aparentemente simples do arranjo cenográfico para discorrer sobre os abismos de se reafirmar diante da impossibilidade de concretizar aquilo que, exatamente, a sociedade coloca como o grande triunfo da condição feminina: o papel de mãe.
Esta força está presente do começo ao fim e resiste nas frestas e fendas de uma atriz completamente entregue ao encontro para o qual convoca. Mas é preciso dizer ainda que Rita Maia não está sozinha. O trabalho surge dentro de uma estrutura coletiva e este viés aparece no olhar de Juliana Pautilla (e sua pesquisa sobre a poética de si mesmo como política) e, também, na iluminação sempre cuidadosa de Marina Artuzzi, nesse caso, compondo uma linguagem poética e determinante para os abismos que a montagem descortina.
Rita Maia tinha como objetivo compartilhar uma ferida, mas Ciclos é a partilha de um todo. O solo cria fissuras na esfera social a partir de algo tão íntimo e comprova como a partilha dessa intimidade pode gerar ecos essenciais para o exercício da escuta e do outro.
Espetáculo assistido no mês de Junho no Galpão Cine Horto.
Éder Rodrigues é dramaturgo, escritor e pesquisador das poéticas contemporâneas teatrais. Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais com tese sobre as reconfigurações do papel do dramaturgo na cena emergente. Graduado em Teatro pela Faculdade de Belas Artes da UFMG. Atua como professor universitário nos segmentos da dramaturgia, teoria e história do teatro.