– por Mário Rosa –
Fotos de Pablo Bernardo
Crítica a partir das cenas Unha Postiça e Apologia III do Coletivo Tropeço
O Coletivo Tropeço visitou a Casa do Beco[1] no dia 25 de agosto. Foram duas cenas: Unha Postiça, de Soraya Martins, e Apologia III, de Anderson Feliciano. Pela primeira vez, os dois trabalhos foram apresentados em sequência e assim a oportunidade de pensá-los a partir das aproximações de suas operações performáticas. Pela primeira vez, o desafio de apresentar percepções sobre a busca destes artistas no que diz respeito às escolhas formais e temáticas de suas criações.
Partindo da ideia/imagem que deu nome ao Coletivo para falar das cenas, interessa aqui compreender como certa noção do tropeço ativa a poética desses trabalhos levando em conta as recorrências de suas elaborações estéticas, a saber: as fabulações da experiência, as visitações ao passado e sua fantasmagoria no presente, os jogos com a memória, as fissuras nas representações, as narrativas dos corpos e a potência na modulação do tempo nas ações.
Ao falar do tropeço e como ele se apresenta em cena, algumas imagens e ideias surgem como força inspiradora:
– vivenciar a corda bamba na coragem de se levantar, ou de afirmar a intenção de permanecer sentado: eu não penso que deveria ter que me levantar [2]. Inspiração que colabora na tentativa de fazer da relação com o chão a oportunidade pra formulação de um pensamento em que os corpos negros estão ativamente presentes na potência criadora de uma gestualidade.
– afirmação dos caminhos em que percorreu Fanon[3] quando expõe a violência do processo de racialização e dos modos de resistência que nos coloca no campo de uma fragilidade forte aberta aos esburacamentos e às fendas, que sugerem outras rotas de ação; e em que prosseguiu Lepecki[4] ao propor dançar sobre os vazios e as rachaduras, para tropeçar, rachar o movimento, rachar a sujeição.
– criar rachaduras no estado das coisas (LEPECKI, 2012).
– o corpo que segue com suas marcas, como insistência na forma de singularizar e fortalecer uma experiência cambaleante e de não negação das cicatrizes, pois seguimos com elas. Tropeçar, pra dizer da não lisura do chão, pra encarar o tempo nas suas desmedidas e conseguir, ainda assim, fugir do peso do passado e jogar com a memória pra afirmação da vida.
E seguimos tropeçando com os trabalhos apresentados.
Unha Postiça
Soraya, a laranja, o já sabido, o estranho, o corpo, a dança, a parede, a memória, o texto, a palavra, a subjetividade, o corpo novamente, o texto em outro giro, os caroços: plantar, morrer, nascer, renovar, o que fica, o que já não é, e a terra espessa, a fertilidade do solo.
E ela mais uma vez dançou em cena, dançou com esse objeto estranho que estava entre seu corpo e a parede. Objeto que deslizava, sempre prestes a cair, e que nos dava a sensação de tropeço pela instabilidade, já que não havia certeza nessa dança, mas sim algo próximo ao abismo.
A música em italiano que conduzia seu corpo, a maneira como balbuciava a letra da canção e a dança do seu duplo-sombra parecia nos dizer sobre a memória, as figurações do passado, as urgências do desejo e sobre as matérias do tempo e do corpo. Quantas Sorayas ali?
A estranheza do objeto laranja que caiu do seu corpo, depois da exaustão da dança, e que ela descascou lentamente e dessa forma abriu para a possibilidade de pensarmos em um novelo que expõe fragmentos da narrativa de uma mulher que não está presa na ortopedia da representação, mas sim no movimento que expande a presença. Aquela mulher, esta mulher, a relação entre o feminino e a terra, o trágico da vida que é de uma substância que não morre, apesar do corpo.
Ela brota e prolifera na afirmação da presença de tantas vozes que estão com ela, na materialidade e intensidade do seu corpo, corpo negro também a se associar com outros mundos e, mais uma vez, afirmar possíveis.
Na fala emitida ao chupar a laranja, que deslizou sobre o seu corpo em dança, que despencou, que foi recuperada como seus volteios cascas, ela segue. E chupa a laranja, como Anderson em Apologia III come a pera. O mundo que os habita nessa viagem do que o “que interessa não é meu”, em que uma fina antropofagia se vislumbra no gesto de devorar o passado como forma de reelaborá-lo, como forma de atravessar a dor e afirmar o mundo. “Eu vivo”, ela parecia dizer, ou “eu voltarei”: transmutação.
Na operação desta cena: subjetividades, o contemporâneo de uma vida e algo que não está circunscrita à individualidade encontram estranha aproximação. É como se tentassem falar da vida no campo expandido de uma experiência que não se reduz ao registro da percepção ou da identidade, pois algo de intensivo e afectivo ronda o trabalho.
Oscilante, instável, fragmentado, Unha Postiça está longe do jogo superficial da simulação, já que é exercício que aproxima o fracionado de memórias e de desejos pra tocar a matéria fina da singularidade. Um movimento que se dá em chão pedregoso, de difícil cultivo, mas que ainda assim, não fugindo dos tropeços, segue e persevera no que é da ordem da prudência e da urgência. É assim pelo texto que não serve a psicologismos, pela fragmentação que está no corpo e nas palavras, e pelos tempos não conciliados em cena. Algo brota dali, algo também permanece. Um corpo, uma dança, uma sombra, o neutro que encontra no fluxo a imanência da vida.
Já Apologia III parte de uma série de ações anteriores em que Anderson Feliciano mobiliza corpo, memória e fabulação para abordar poeticamente processos de subjetivação. Tendo em vista o título da cena, este trabalho nada diz sobre louvação, defesa ou elogio, já que o que está presente é um jogo de verdades e ficções num campo em que o fragmentado revela muito de uma vontade de tocar o que escapa do meramente biográfico.
Tropeçar aqui é tentar experimentar o movimento de visitar e elaborar o passado a partir de associações entre imagens e objetos de forte valor simbólico.
E o que vemos em cena? Anderson Feliciano, uma sala escura, o auxílio de uma pessoa que o ilumina com uma lanterna para apresentar imagens nas quais ele é o centro da narrativa. Ele, seu corpo, sua voz e os objetos utilizados no dia (sua foto quando criança, foto do pai, uma pera) traçam jogos de ficção e depoimento pessoal, compondo linhas sutis de histórias que aproximam infância, família, hereditariedade, singularidades, rupturas e as desmedidas das distâncias entre o afeto, o trauma e as investidas para a superação da dor.
O que ele expõe em quadros é tateante, é lacunar, tem silêncios e esperas.
Do escuro da sala, algo de espectral se insinua naquele corpo que é presente e é também uma virtualidade que enuncia frações de uma vida. Num passo a passo de informações, ele nos leva a pensar no seu corpo, na veracidade ou não do que diz, nas possibilidades de invenção naquela estrutura e, ainda assim, do quanto esse movimento de exposição sempre nos escapa, seja pela economia do que é dito, seja pela maneira como trabalha a duração dos quadros.
O jogo entre o tempo e imagem é valorizado pela modulação das pausas e dos silêncios, que dizem tanto quanto a utilização dos objetos em cena. E aí, a foto dele criança (“quando eu era pequeno diziam que eu era muito parecido com o meu pai”); a foto do pai quando da idade atual do artista, ou não; o escuro e o que não se consegue ou se quer dizer; a pera, lembrança de uma agressão (pera-pedra) e a que se come no final; expõem o trabalho sobre tempo da ação e o tempo que ele evoca nesse procedimento: caminhos sobre rachaduras.
Rachar o estado das coisas é também se abrir para o que é possível se imaginar de linguagens e de narrativas. E isso é possível com gestualidades às vezes sem finalidades, com o que se esquece, com a possibilidade de fabular outros mundos e com esforço de acessar outros regimes de temporalidades.
E as duas cenas apresentadas tentam frequentemente seguir abrindo frestas na performatização da dramaturgia e na afirmação da presença dos corpos que parecem dizer de um estado de urgência e de esforço pra afirmar singularmente os caminhos, assumindo os riscos e os obstáculos do terreno pedregoso.
E no equilíbrio da laranja entre o corpo e a parede, no gesto de comer a pera, na aproximação do pai pela via de um procedimento ficcional, nos caroços cuspidos no chão da sala da Casa do Beco, matéria espessa, fertilidade… eles seguem, no tropeço, em possíveis quedas, reaprendendo a levantar e a seguir.
[1] A Casa do Beco surgiu em 2003, a partir do trabalho artístico do Grupo do Beco (criado em 1995). Localizada aos pés do Aglomerado Santa Lúcia/Morro do Papagaio, na região Centro Sul de Belo Horizonte (MG). A Casa é espaço de intercâmbio de experiências culturais diversas.
[2] Frase de Rosa Parks, reelaborada na escrita performática de Anderson Feliciano, Outras Rosas. Essa Frase também serviu de mote para a performance de Soraya Martins, também chamada Outras Rosas. Pra mais informação, segue a crítica da performance:https://www.horizontedacena.com/outras-rosas-abrem-passagens/
[3] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
[4] LEPECKI, Andre. Coreopolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. (2011) 2012.