– por Luciana Romagnolli e Soraya Belusi –
Olhares sobre a programação nacional do FIT-BH 2016.
Não é preciso voltar muito no tempo. Em 2012, “Ópera dos Vivos”, “O Idiota” e “Estamira”. Em 2010, “Memória da Cana”, “Vida”, “O Banquete”. A lista pode variar de acordo com a sensibilidade e as preferências artísticas de cada um, mas é certo que o FIT-BH costumava ser um festival onde se podia ver alguns dos trabalhos mais marcantes da produção teatral brasileira contemporânea. Sem esquecer do tempo em que trouxe a “Trilogia Bíblica”, do Teatro da Vertigem, este, sim, mais longínquo. Em 2014, quando a instabilidade curatorial ainda principiava, a programação de espetáculos brasileiros vindos de outros estados já mostrava apatia, à exceção da pesquisa de linguagem madura de Enrique Diaz em “Cine Monstro”. Então chegamos à edição 2016.
O que se poderia dizer do teatro brasileiro atual pelo recorte que dele fez a curadoria? Que forma de fazer e de dar a ver o teatro a curadoria coloca em evidência? Qual dos grupos, jovens ou veteranos, de maior relevância artística por suas experimentações ou por consolidação de uma linguagem, puderam ser vistos? E qual o lugar do FIT-BH para a produção nacional, como espaço de visibilidade e legitimação? Enfim, qual o lugar do teatro brasileiro no FIT-BH 2016? E qual será em 2018? 2020?
Os cortes orçamentários trazem limitações concretas, mas qualquer um que já tenha trabalhado com curadoria e produção teatral sabe que as negociações são possíveis, o teatro brasileiro não vive de cachês astronômicos. O que pesa, mais do que o dinheiro, é a falta de planejamento e – o mais importante – falta de olhar. Cabe aqui enfatizar que uma curadoria se delineia não apenas pelo que ela apresenta em seu recorte, mas também pelo que ela exclui de sua seleção. E a ausência de teatro negro é a exclusão mais gritante, a evidenciar como o racismo – a despeito de toda discussão que se tem feito na cidade e dos coletivos negros organizados, como o Grupo dos Dez – permanece na estrutura do festival.
Brasil?
Em conversas com três curadores desta recente edição do FIT-BH – Eduardo Moreira e Diego Bagagal, que entregaram os cargos previamente por discordâncias com os atrasos da produção, e Dayse Belico, chamada a substituí-los –, percebe-se que a prioridade recaiu sobre a programação internacional. Isso poderia ser muito bem uma opção, como o faz, por exemplo, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), priorizando a produção contemporânea em artes cênicas ao redor do mundo e elegendo apenas dois ou três brasileiros com proposições estéticas arrojadas – afinal, o Brasil faz parte do mundo. Se fosse uma declarada tomada de posição curatorial, tal decisão traria outro perfil/caráter ao festival em relação à sua história, mas ainda assim poderia ser justificada. Por enquanto, não é o caso.
Porém, a ausência sintomática, em quantidade e qualidade, de trabalhos nacionais na grade do FIT-BH neste ano indica muito mais que faltou maior circulação pelo território brasileiro. Moreira esteve no Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre e na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp. Bagagal não foi a festivais no Brasil, e Belico esteve em apenas um, o Floripa Teatro, muito concentrado na cena de Florianópolis e cidades vizinhas.
Quem frequenta mostras nas diversas regiões brasileiras sabe que nem Santa Catarina está entre os estados com a produção mais pulsante – o que não o impede de abrigar grupos interessantes, como a Téspis Cia. de Teatro – nem tal festival figura entre os principais do país, como são o Festival de Curitiba, o Mirada, o Porto Alegre em Cena, o Fiac (Salvador), por onde passam espetáculos de diversos cantos do Brasil. Com isso, não se pretende dizer que os festivais são o único lugar onde curadores podem fazer sua prospecção ou que se deva repetir curadorias alheias, mas é importante considerar que são locais de convergência de uma programação dispersa num país continental, e ignorá-los seria desprezar o trabalho e o pensamento curatorial que já desenvolvem. Em outras palavras: é óbvio que não basta visitar dois ou três festivais para se conhecer a diversidade da produção brasileira, mas é difícil que se conheça sem ir a ao menos dois ou três grandes festivais onde amostras dessa diversidade se encontram. E fica a pergunta: fora dos festivais, o que a curadoria viu?
Olhemos a programação de espetáculo nacionais do FIT-BH 2016, para além da produção da própria cena belo-horizontina. O Clowns de Shakespeare é o grupo mais reconhecido, ao mesmo em tempo que guarda relações muito próximas com Belo Horizonte, seja pela linguagem inspirada pelo Grupo Galpão, seja por já terem sido dirigidos por Eduardo Moreira e Gabriel Villela. Pela curadoria de Moreira, viriam com uma trilogia, dentro de uma proposta de continuidade da relação da cena belo-horizontina com grupos que os espectadores locais acompanham há mais tempo. Entretanto, o que se viu foi apenas um espetáculo dos potiguares, “Abrazo”, feito para adultos e crianças. Para Eduardo, a programação brasileira ficou descaracterizada. Também já constava da grade apresentada por ele e Bagagal o flash mob “Tropa”, do grupo Laje, de São Paulo.
Chama a atenção que outros quatro trabalhos brasileiros presentes no FIT-BH tenham se apresentado no Floripa Teatro. O mais conceituado deles é “Mundo Mudo”, espetáculo dirigido pelo outro nome forte desta edição, Georgette Fadel, com a companhia Azul Celeste propondo uma visão clownesca de “Fim de Jogo”, de Beckett – e que já aparecia na grade montada pela primeira dupla de curadores. Os outros são “Cinco Semanas em um Balão”, da companhia Sabre de Luz, de São Paulo, voltado às crianças e famílias, e dois trabalhos da catarinense Cia. La Vaca, “Uz” e “Kassandra”. Se considerarmos a distribuição geográfica, portanto, foram três criações do estado de São Paulo, uma do Rio Grande do Norte e duas de Santa Catarina – um dos modos de mostrar a pouca representatividade do recorte. E se a curadoria nacional não se pautou pelo consagrado, tampouco foi pelo risco, pela experimentação, pelo novo.
Humor?
O mais difícil de compreender é a vinda dos dois trabalhos de uma mesma companhia, sem proposição curatorial que justificasse tal concentração. “Uz”, aliás, gerou reações de revolta de artistas, professores e críticos da cidade, que perceberam conteúdo preconceituoso do espetáculo. A curadora Dayse Belico argumenta que, embora homofóbica, a peça esteja justamente criticando os rótulos com os quais a sociedade discrimina usando a religião como desculpa. No entanto, em arte, é sempre muito complicado pressupor que o público terá uma visão crítica daquilo sobre o que ri – e “Uz” faz rir de pessoas gordas, gays, etc. Não cabe mais, a esta altura das discussões críticas sobre teatro na cidade, utilizar o pressuposto de preconceito com o gênero da comédia para rebater as críticas na recepção do espetáculo durante o FIT. Uma piada homofóbica, como uma piada racista, não é crítica, mas reiteração de imaginário preconceituoso. A comédia é capaz de ser melhor do que isso quando o riso recair sobre quem está na situação de opressor – for ele o ridicularizado – e não de oprimido. De outro modo, a adesão à piada será justamente reforço da opressão – como os tantos críticos do espetáculo sentiram, todos eles espectadores de teatro aptos a fazer uma leitura não ingênua do que viram.
“UZ” parte de uma discussão supostamente religiosa, em que uma mulher devota é obrigada a matar um de seus filhos a pedido de Deus, para desbancar para uma “comédia de erros pastelão” em que todos, todos os estereótipos dos maus programas de humor de sábado à noite estão postos em cena. A montagem catarinense tem qualidades inegáveis no que tange ao acabamento, à qualidade do trabalho dos atores e de um certo desenho de cena. O pecado é original: a banalização de uma discussão que parece ser, a priori, o ponto central da dramaturgia – o que poderia suscitar questões como a consequência do domínio religioso sobre as “leis” de uma sociedade, um tema de extrema relevância no país que vivemos hoje – se transformar numa corrida frenética, e cheia de obstáculos cômicos, que faz com que os habitantes da cidade revelem sua personalidade real – seres “depravados”, como diz a peça, e enrustidos: o pastor “veadinho”, a gorda retardada e sapatão, a beata tarada, o militar homossexual… Todos, tipos desenhados ao prazer do risível, do patético e do clichê que os rebaixa e desqualifica. Ao fim da experiência, a razão pela qual aquela mulher devota queria/precisava matar seus filhos estava completamente soterrada pela enxurrada de artifícios discutíveis para a adesão ao humor rasteiro.
O que se espera de um festival público, promovido pela Fundação Municipal de Cultura, é o oposto: a promoção de uma arte libertária, que rompa com preconceitos e discriminações, com representatividade racial e de gênero. A presença de “UZ” na programação fica ainda mais esquizofrênica quando colocada em comparação/oposição a outro espetáculo deste FIT-BH, “The Gospel According to Jesus”, da performer Jo Clifford, da ala internacional da grade. As fragilidades – intencionais ou não – da montagem catarinense ganham mais evidência e colocam ainda mais em questão a visão que a curadoria proporciona ao espectador do teatro que é produzido hoje no país.
A forte e frágil Kassandra
O outro trabalho apresentada pela Cia. La Vaca, “Kassandra”, também coloca em debate questões delicadas, entre a potência e a fragilidade. Muito do interesse provocado pelo espetáculo veio da ambiência na boate Sayonara Night Club, espaço incomum para apresentações do FIT-BH, carregado de uma dramaturgia própria, uma carga erótica que se confunde com objetificação da mulher que se confunde com libertação sexual. Na encenação, a boate fica no limite entre cenário e site specific (conceito também impreciso às vezes). Ou seja, é um espaço que localiza a ação da personagem, contextualiza-a e permite um contato próximo com o público, com quem a atriz Milena Moraes interage numa relação dúbia entre espectadores e clientes. Uma ocupação apaziguadora daquele espaço, que transforma as relações e o olhar sobre elas, amenizados pela situação ficcional que se estabelece.
A Kassandra de Milena é essa figura dúbia, também, síntese da mitologia grega com a tragédia contemporânea das prostitutas transgênero. Uma pós-Kassandra identificada como performer de clubes de strip-tease ou prostituição, tal qual uma imigrante de um país devastado pela guerra que tenta sobreviver pela sedução (o emprego do inglês mal falado é dramaturgicamente muito significativo na construção dessa persona, embora a ausência de legenda seja excludente para parcela dos espectadores, algo que um festival público precisaria solucionar). A condição de escrava sexual da troiana sob o domínio dos gregos abre um paralelo possível – e pesadíssimo – com a das trabalhadoras do sexo, o que é abordado pela dramaturgia de modo adoçado na fala da personagem, a quem a escravidão sexual parece menos degradante do que prazerosa. Em dias de discussão sobre a cultura do estupro, essa é uma postura produtora de mal-estar – ao menos em algumas espectadoras mulheres.
Outro aspecto potente na premissa do espetáculo é justamente essa leitura contemporânea de uma personagem da tragédia grega por uma perspectiva menos restrita ao olhar masculino sobre ela – como são as obras dos tragediógrafos daquela cultura que chegaram até nós, dentre eles, Eurípedes. A dramaturgia ganha novas camadas de sentido quando Kassandra clama por voz para si, dizendo-se personagem destituída da própria tragédia, uma vez que não passa de coadjuvante de “As Troianas”, e cuja loucura seria invenção de um homem. O limite dessa releitura está no que Kassandra demonstra ser consciente e no que não é. Se ela mostra-se capaz de olhar a narrativa clássica da própria história com crítica, por outro lado, não deixa de ser a mulher que se submete à posição de “outra” de Heitor e Agamemnon, goza de seus estupros e repete a triste sina patriarcal e misógina da amante que odeia as esposas oficiais dos homens que ama, mas é incapaz de criticá-los.
(Leia outro texto a partir de “Kassandra” sob a perspectiva queer aqui)
Futuro
Diante disso tudo, mais do que uma crítica a apontar esta ou aquela escolha, o que se pretende é estimular uma reflexão mais cuidadosa sobre o lugar do teatro brasileiro produzido em outros estados no futuro do FIT-BH, lembrando que um festival é sempre um espaço para que espectadores e artistas locais travem contato com o que há de mais estimulante na cena brasileira e troquem experiências. Se o movimento for por uma redução da participação da cena nacional no FIT, há de se considerar modelos como o da MITsp, com um pensamento curatorial muito articulado à programação internacional. Se não, se o FIT ainda se quer relevante como um festival dedicado ao teatro do país, é preciso, mais do que nunca, uma curadoria preparada e com condições de produção para isso.