Crítica a partir do espetáculo Tragédia do Quatroloscinco – Teatro do Comum
– por Felipe Cordeiro-
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
Herberto Helder
Quando assisto a um espetáculo de teatro também quero saber da qualidade de sua paixão. Em Tragédia, do Quatroloscinco, nitidamente se percebe uma paixão pelo teatro. Desde 2007 o grupo criou 7 espetáculos (além de projetos paralelos) e já esteve em mais de 70 cidades e 20 estados brasileiros, além de países como Argentina, Cuba e Uruguai.
Não seria absurdo dizer que o coletivo é um dos mais proeminentes do teatro mineiro, se levarmos em consideração a continuidade ininterrupta de suas atividades cênicas e de pesquisa, o grande alcance de público, sua recepção crítica e midiática, bem como a expressiva inserção no mercado editorial e no âmbito científico-acadêmico. Todos esses fatores evidenciam um trabalho que foi sendo consolidado, paulatinamente, ao longo dessa primeira década de existência e que serve de inspiração para novas gerações de artistas e pessoas dispostas a participar do debate público que o teatro propõe. E é importante que essas fagulhas de utopia ainda existam, principalmente em uma profissão tão escamoteada, eternamente mambembe e que condiciona a vida dos artistas a uma permanente gambiarra.
Falando em teatro, Tragédia marca o primeiro contato do grupo mineiro com os clássicos teatrais. Mesmo que se trate de um texto autoral (como todos os anteriores), o espetáculo estabelece um diálogo ostensivo com a trilogia tebana. Ítalo Calvino, que por ironia do destino nasceu em Cuba, não na Itália – terra de seus pais, escreveu que um clássico é aquele livro que “nunca terminou de dizer o que tinha para dizer”, e que “persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”.
É a partir do flerte com esses cânones da cultura ocidental que o 4los5 arma seu circo. Mas, como canta Maria Bethânia, eles também não te mostram “todos os bichos de uma vez; armam o circo com não mais que uns cinco ou seis”.
Fotos de Luiza Palhares
Numa primeira análise da obra, pode-se dizer que a Tragédia do grupo é uma tragédia do logos, da razão, da fala, do discurso, da exposição de possibilidades e aporias. Por quê? Porque o grupo escolhe alguns dos principais fósseis do campo teatral para desenterrar na frente dos seus espectadores. De antemão, a obra já fala diretamente com a parte de seu público que possui certo convívio com aquele ambiente – o do teatro. Por mais que o grupo promova sua versão do coro grego, com atores narrando informalmente os contextos e as peripécias da ação, é inegável que algumas chaves de leitura prévias auxiliam na localização metalinguística daqueles corpos que o grupo convoca.
Mas, então, todos esses elementos da tragédia classificam o espetáculo dentro desse gênero do trágico? Sim e não. Por ser um espetáculo das possibilidades do logos, é considerável, de acordo com a flexibilidade das argumentações, afirmar que sim, que o grupo organiza sua tenda em torno de uma visão trágica do mundo, com direito a hybris, anagnórisis, katastrophé, cathársis e todos esses palavrões do teatro grego. E também é possível dizer que não, uma vez que, de acordo com Jacqueline de Romilly, o bode que emprestou seu nome ao gênero teatral acabou invadindo o vocábulo moderno e contemporâneo da emoção – ou mesmo de nossas manchetes policiais.
No entanto, a peripécia cênica do grupo (para continuar brincando com essas expressões do gênero), a mudança repentina do que se espera desse nome TRAGÉDIA, acontece quando, com o avançar da encenação, se percebe que a principal discussão do grupo não gira necessariamente em torno da violência e da destruição (próprias do trágico), mas sim sobre a memória como possibilitadora tanto da geração da violência, como também antídoto para ela.
E isso já é fagulha acesa nos primeiros momentos da peça, quando os atores Assis Benevenuto e Ítalo Laureano abrem o espetáculo falando em guarani. Em grande parte das visões cosmogônicas dos povos originários da América Latina, a Pachamama é essa mãe terra, organizadora da memória, que dá a vida, mas que também come os corpos quando a vida chega ao fim.
A memória é o monumento que fez com que esses clássicos gregos chegassem até nós, mas também foi nela que se perderam muitas visões de mundo que não necessariamente se pautam em padrões eurocêntricos – como esses clássicos gregos que, mesmo tão distantes no tempo e no espaço, eu conheço com mais detalhes do que as narrativas dos povos guaranis – tão mais tupiniquins (“tupi ao lado, vizinho lateral”), mais próximos a nossas identidades.
De acordo com Diana Taylor, as performances e memórias culturais nas Américas podem ser entendidas a partir de dois trânsitos: as memórias de arquivo e as de repertório. As primeiras mantêm um núcleo material – registros, documentos, resíduos arqueológicos, ossos – que resiste à mudança. O arquivo preserva o que Freud denominou “traço permanente da memória”, sendo a materialidade do que permanece, o que excede o vivo. Já as memórias de repertório preservam “a memória do corpo – performances, gestos, oratura, movimentos, dança, canto, e ainda, lembranças traumáticas, repetições e alucinações – ou seja, todos os atos que normalmente são concebidos como conhecimento efêmero, não-reproduzível”.[1]
E é justamente nesses nós da memória que o Quatroloscinco também dá um nó na encenação e vira sua mesa de sinuca[2]: Tragédia não é apenas uma peça do discurso e da linguagem. Porque mesmo que efetive parte de sua dramaturgia em discussões quase didáticas sobre eurocentrismo, verdade científica e silenciamento de minorias, o grupo consegue construir esteticamente um plano ficcional que sustente dramaticamente tais proposições. E isso é urdido a partir dos idiomas que escolhem dar vida, a fim de materializar no corpo as traições da linguagem e das traduções; da construção apoteótica de sua Antígona, interpretada por Rejane Faria; e do próprio ato teatral que, mesmo que seja orquestrado a partir de arquivos, só ganha vida no repertório instável daqueles corpos.
Antígona, desde que as performances rituais passaram a ser chamadas de teatro, desafia poderes tirânicos movida pelo desejo de cumprir sua hybris, a impetuosidade de enterrar seus mortos indo contra as leis da cidade. Junto com Medeia, ela é a personagem feminina mais revisitada na história do teatro ocidental.
Mesmo que tenha suas origens na Grécia, e que esse teatro tenha marcado profundamente a produção latino-americana desde a colonização até a contemporaneidade, suas releituras mais importantes em solo americano partem de um lugar de enunciação próprio e antropofágico. Foi assim na Antigona furiosa, da argentina Griselda Gambaro (um dos nomes mais relevantes da dramaturgia latino-americana); na Antigona peruana do Yuyachkani (um dos grupos mais longevos e reconhecidos de toda América Latina); ou, pensando em nossa própria produção local, na Antígona do espetáculo Klássico (com K), do belo-horizontino Mayombe (que, dentre outras realizações da pesquisa, rendeu à sua interprete, Flávia Almeida, o prêmio de Melhor Tese de Doutorado da UFMG em 2018).
A questão nacional é sempre importante quando se revisita Antígona, pois é a partir dela que os grupos, das mais variadas maneiras, dialogam com as violências próprias de seu presente. No caso brasileiro, do Quatroloscinco: o armamento da população, a violência estatal, a intolerância, a incomunicabilidade de diversos setores políticos da sociedade (sejam esses alinhados à direita ou esquerda), e todos os problemas de gênero, classe e raça que caracterizam o país desde a invasão portuguesa.
O contato do grupo com o texto propriamente trágico é feito de forma orquestrada com a linguagem cinematográfica – peculiaridade da direção de Ricardo Alves Jr., que também é diretor de cinema. A embocadura dos lamentos clássicos só é revisitada em um momento ou outro (basicamente nos “Ai de mim”, da Antígona, e nos cantos de Marcos Coletta, que flerta com Tirésias e outras personas). No restante do tempo, o texto trágico é virtualizado a partir de projeções ao vivo, microfonação e de um tom mais íntimo, fator que cria sobreposições temporais insuspeitas, a partir do flerte entre o clássico e a tecnologia.
Apesar do trânsito entre essas duas linguagens, o trabalho de Alves Jr. não joga com o histrionismo e a suntuosidade, como na Medeia de Pasolini, mas ataca o clássico por um viés mais informal e profano, de porta e fundos de bar, mostrando que a tragédia pode despontar em ambientes domésticos, como ao redor de uma mesa de família ou uma mesa de sinuca. E esse é um movimento de aproximação do texto com uma realidade mais imediata dos espectadores. No entanto, a direção também mantém perene um distanciamento crítico perante todas essas linguagens estéticas, por meio do desnudamento do arsenal cinematográfico e do ritmo de sua montagem.
A direção de arte, de Thálita Motta, é engenhosa e potencializa o trabalho da encenação, ao jogar com elementos como as caixas de cerveja, de cor terrosa, que tanto ambientalizam o espaço underground do bar, como também remetem à terra e às colunas gregas – que posteriormente são demolidas por Antígona. Todas essas cores e nuances da cenografia são sombreadas e/ou reveladas pelo desenho de luz de Marina Arthuzzi, Jésus Lataliza e Rodrigo Marçal, que também atua de forma a estabelecer efetivos contrastes entre a encenação teatral e audiovisual.
O novo espetáculo do Quatroloscinco, portanto, nos mostra que a tragédia pode muito. Em nosso entendimento, o grupo dá corpo (e atualiza no corpo e no tempo presente) a versatilidade da Tragédia, conforme também nos conta Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, em seu livro mais recente, Feita no Brasil: a sabedoria vulgar da tragédia ática para o povo tupiniquim catrumano:
“Ela vai além do que se pode estudar, sistematizar e organizar, avançando para a vida prática, mostra afetos indiscretos e misturados que, sobrevindo como assaltantes brutais[3], exigem o pagamento de mágoas passadas que ressurgem cada vez mais vigorosas nos muito pacatos cidadãos; ela mostra a traição, o abandono, o desejo insatisfeito e tantas outras dores contidas, bem lacradas, nos apagamentos da Mãe Memória, ajudadora a um só tempo dos esquecimentos e das recordações. Afetos que sobrevêm sem que possamos controlar e que nos levam a ridículos constrangimentos e, às vezes, até a fracassos irreversíveis”.[4]
O grupo se vale do papel de uma linguagem comum, num plano de comunicação comunitária e artística, para subvertê-lo e tensioná-lo até o limite do nosso ridículo. Com o espelho do teatro, nos enxergamos diante de uma acusatória ignorância perante nossa história política, colonial e suas raízes incrustadas em cada canto dessa terra arrasada. Uma história pautada pelo fracasso e pela violência – não só de nosso país, mas de toda uma civilização.
Mas a peça não se contenta com um niilismo negativo, ela propõe uma nova mirada. Porque o teatro nos ensina a conviver com o incerto, o dobrado, o simultâneo, o improvisado, o virtual, o fluido, o que se esvaiu. Voltando às proposições de Barbosa, ela nos conta que “o sofrimento tem tortuoso caminho e a tragédia o coloca de modo iluminado. Admirar-se com o sofrimento, respeitar aquele que se vê sofrer, respeitar aquele que nos vê sofrer, aquele que nos lê, é o que ela ensina. Saber que nem sempre o que nos lê e vê nos saberá plenamente, assumir que o desejo do outro tanto o impele à compreensão quanto aponta para a fuga e determina um jogo de mostrar-se e esconder-se”.[5]
Ao fim da encenação, me ultrapassam os questionamentos: exibir os mortos na arena pública é tarefa revolucionária ou é o que já fazem os inimigos? Qual é o próximo passo depois da mirada? O que há em Tragédia que responda à paixão pela vida?
E os olhos do elenco crescem diante da tela… Rejútapa orendive? (Você virá conosco?)
Ficha técnica:
Direção: Ricardo Alves Jr.
Dramaturgia: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Atuação: Assis Benevenuto, Italo Laureano, Marcos Coletta e Rejane Faria
Direção de arte: Thálita Motta
Assistência de figurino: Ian Godoi, Carina Fonsc e Poliana Carvalho
Assistência de cenografia: Paola Ferrari e Bruna Silva
Criação de luz: Marina Arthuzzi, Jésus Lataliza e Rodrigo Marçal
Trilha sonora: Barulhista
Música final: Barulhista e Tatsuro Murakami
Operação de som: Fabrício Lins
Orientação corporal: Fernando Barcellos
Orientação vocal: Ana Hadad
Arte gráfica: Letícia Naves
Assessoria de comunicação: Renata Rocha
Fotografia: Luiza Palhares
Vídeos: Fábio Gruppi
Produção: Maria Mourão
Realização: Grupo Quatroloscinco – Teatro do Comum
[1] Páginas 16 e 17 da referência: TAYLOR, Diana. Encenando a memória social: Yuyachkani. In: ARBEX, Márcia; RAVETTI, Graciela. Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FALE/UFMG, 2002.
[2] Objeto estruturante da cenografia e do jogo cênico proposto pela obra.
[3] Metáfora a partir do trecho de Walter Benjamin, que diz: “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção”. (Benjamin, “Quinquilharias”, 1987, p. 61).
[4] Página 22.
[5] Página 199.