Por Soraya Belusi
Ter um texto de Newton Moreno como base para a encenação é ao mesmo tempo um desafio e um presente. Nas rubricas que antecedem o texto, o escritor e diretor pernambucano, um dos nomes mais inventivos e produtivos da atual cena da dramaturgia brasileira, propõe a peça como um exercício para um ator-contador. “Daqueles que reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento”.
Obra premiada com os prêmios Shell e APCA, “Agreste (Malva-Rosa)” já foi levada aos palcos sob a visão de Marcio Aurélio, tendo sua qualidade dramatúrgica enfatizada e ressaltada pela montagem. Recentemente, voltou à cena sob a direção de Stephane Brodt e Ana Teixeira. Em ambos, a linguagem não faz concessão ao regionalismo que a fonte nordestina da história poderia impregnar, mas faz dela, assim como a fábula de Newton, trampolim para tocar em questões arcaicas e universais, de extremos, gêneros, do amor e da sexualidade.
A encenação de Alice Stefânia multiplica essa referência de um único condutor da fábula para oito narradores-personagens distribuídos no elenco que forma o elenco da Casulo Dramaturgia de Atores. No palco, quatro músicos recebem o público ao som típico da rabeca do sertão do país. Os tons crus da cenografia e da iluminação revelam ao fundo redes que formam uma espécie de emaranhados de casulos, de onde nascem (surgem) uma série de bichos-homens do agreste que dá título ao texto.
Newton fala de uma história de amor cujo perigo parecia pairar antes mesmo de acontecer. Inspirado nas histórias que ouvia de mulheres-lavradoras do interior de seu Estado, cujo desconhecimento acerca de seus próprios corpos e sexualidade era imenso, Newton apropriou-se da figura da mulher que se finge/(tra)veste de homem (recurso tão conhecido na obra de Guimarães Rosa) para falar de um amor incondicional, que se basta, de um casal praticamente apartado do convívio social. Cujo único abalo é a ignorância alheia, coletiva, a descoberta da sexualidade do outro.
Um dos artifícios da montagem de Alice Stefânia é justamente tornar palatável essa narrativa a um público infantojuvenil, de certa maneira adocicá-la, mas sem retirar-lhe a contundência, a poesia e o humor corrosivo. Se os códigos são acessíveis ao público, não são, por isso, menos sofisticados, como as imagens arcaicas a que parecem se remeter as partituras criadas no fundo das cenas, a utilização das partituras de ação física e vocal (como na cena da ladainha coreografada, por exemplo).
A música é aliada constante da encenação. É ela que pontua cada momento da narrativa, suas transições e retomadas, cria o ambiente sertanejo da contação de histórias, dialoga diretamente com os atores na composição da cena. A ideia de personagem não existe, fazendo com que o elenco se reveze entre os diversos elementos da história e potencializando a força do conjunto do grupo.
Os elementos da cultura popular nordestina são muito presentes na encenação, o que pode, em alguns momentos, dar uma leitura dramatúrgica presa a uma visão regionalista. Mas esse risco acaba sendo equilibrado pelas poucas mas relevantes imagens arquetípicas, até chegar ao fim redentor dessa tragédia, em que a cena final remete à sacralidade de uma “Vênus Dormindo”.