— Por Elisa Belém —
Nos últimos anos, diversos tipos e modos de ocupação das ruas dos centros urbanos têm ocorrido com frequência. Num movimento global, manifestações de toda ordem levam multidões às ruas. O ato de ocupar revela, por si, a necessidade de resistência.
No entanto, a rua é também o lugar de outros modos de ocupação temporária. O acontecimento na rua, nos adros das catedrais, nas praças ao redor de igrejas e em suas proximidades, é habitual em diversas festas e eventos religiosos no Brasil. Os cortejos e as procissões também são comuns, percorrendo os bairros das cidades e clamando a participação de seus moradores. Como peregrinos, muitos fiéis e brincantes, caminham com fé.
Curioso pensar que com a expansão dos centros urbanos, algumas dessas festas e manifestações continuam a ocorrer, mas ficam restritas a determinadas regiões das cidades. Olhar para essas formas de atuação na rua pelo ponto de vista de uma artista da cena, leva a perceber algumas nuances nesses eventos.
No último dia 12 de junho, pude acompanhar uma parte da cerimônia de coroação[1] da Rainha do Reinado Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, do bairro Concórdia, como Rainha Conga do Estado de Minas Gerais, no bairro Jaraguá, em Belo Horizonte (MG). Presenciar o evento me trouxe diversas recordações de infância, quando via as guardas de Congado e Reisado nas cidades dos meus avós. A minha memória é que achava as roupas e adereços muito bonitos, mas, para mim, havia algo triste. A execução de algumas canções e músicas era como um lamento. Essa memória me pareceu distante do que vi nas ruas de Belo Horizonte (MG), talvez até mesmo pelo fato especial do ato de coroar a nova Rainha, que era por si, uma ocasião alegre.
Acompanhei a celebração de uma Missa Campal numa rua fechada do bairro Jaraguá. Ao final da missa, se deu a coroação comemorada com fogos de artifício. Em seguida, diversas guardas de Congo e Moçambique se organizaram para iniciar um grande cortejo. Cada guarda se apresentou com suas vestimentas e adereços específicos, suas músicas e canções, seus instrumentos e suas danças. Idosos, adultos de meia idade, jovens, crianças e meninos bem novos estavam ali, com sua graça, fé e musicalidade – como se já tivessem nascido e vivido com um tambor ou outro instrumento em suas mãos. Uma senhora ao meu lado me contou que acompanha há diversos anos o Congado. E que é uma bênção presenciar, que seu corpo sai todo limpo dali. Ela me contou também que em um ano via uma mulher grávida dançando, dali a pouco tempo, a mulher e seu filho já dançando. Algo assim, como nascer, crescer e morrer.
O longo cortejo que reuniu guardas de diversas regiões e cidades próximas seguiu pelas ruas do bairro traçando um desenho até retornar ao local de partida. Em cada guarda, uma sonoridade. No meio, a imagem de Nossa Senhora e de Santo Antônio. Ao final, a nova Rainha acompanhada e venerada. Há quanto tempo ocupamos a rua e nos esquecemos que o fazemos – penso enquanto sigo, hora mais para frente, hora ao final do cortejo. Sento também para ver a totalidade do cortejo passar, numa casa antiga de esquina, com pessoas que saíram de suas casas, dos bares e pararam ali. A festa é por dentro de cada um – como o som te ocupa, como as cores te atravessam. O retorno é comemorado com o disparo de papeis prateados sobre as guardas. Uma longa mesa atravessa a rua à espera dos fiéis. Algumas palavras encerram o cortejo e faz-se o convite para receber a comunhão do alimento disposto na mesa: frutas, biscoitos, pães.
Ao ver a mesa comprida coberta com toalhas brancas, penso nos vários trabalhos da linguagem da performance art com alimentos e ações na rua. Naquele ato de fé de uma festa religiosa, há alguns norteadores semelhantes às ações da performance: um evento relacional, um ato de comunhão, de diluição entre um espectador e um atuante. Na verdade, não há nada para ser assistido e sim, vivido, no que concerne à uma experiência de participação e feitura de um ato.
Me sinto estrangeira em minha própria cidade, por desconhecer que essa festa existia tão perto. E, ao mesmo tempo, sinto um certo desconforto por ser uma artista, uma pesquisadora e saber tão pouco sobre algo de uma riqueza e profundidade ímpar, que acontece na vizinhança. Por que os nossos referenciais de performance e da cena ainda continuam sendo, de forma privilegiada, provenientes de outras culturas? O teórico e diretor teatral Rustom Bharucha, defendeu, por motivos semelhantes, a necessidade de um desenvolvimento da intraculturalidade no âmbito das artes da cena na Índia, em contraponto à interculturalidade. Talvez não seja necessário excluir os intercâmbios e práticas interculturais, mas é urgente buscar formas de intraculturalidade no Brasil. Por sua extensão e diversidade, o país tem variadas formas e ocorrências de manifestações culturais, religiosas e festivas. Que modos de performatividade e teatralidade podem ser reconhecidos aí? Que dança é essa? Que musicalidade é essa? Que corpos são esses? Que cores são essas?
Acho que Santo Antônio me convidou para namorar a cultura que está aqui ao meu lado. E que desperta memórias. Por mais estrangeira que me sinta em minha própria cultura, não a tomo como alheia a mim.
[1] Mais informações na página Reinado Treze de Maio, no facebook.