– Por Soraya Belusi –
Crítica a partir do espetáculo “Urgente”, da Cia. Luna Lunera (MG).
O que contém um espetáculo teatral é tão significativo quanto aquilo que ele exclui. É a partir de determinadas opções em sala de ensaio, lugar de experimento, risco e indeterminação que uma obra se constrói. Pelo menos é assim que se faz teatro em uma casa do bairro Colégio Batista, sede da Cia Luna Lunera, que compartilha com o publico belo-horizontino seu “Urgente”. Ser testemunha da construção de uma de suas obras[i] e compreender os percursos desse grupo de atores-criadores reforçou minha percepção de que o espetáculo é – cada vez mais na cena contemporânea e pelos modos de criação que esta proporciona – processual.
Neste sentido, não há um ponto de chegada a ser atingido ou uma estética a priori a ser seguida nem uma forma ideal a ser alcançada. São as escolhas estabelecidas no consenso e no dissenso do coletivo em sala de ensaio que definem as presenças e ausências perceptíveis no resultado final. Por isso, para refletir sobre “Urgente”, o que proponho é voltar ao primeiro ensaio aberto do grupo[ii], às memórias que aquele acontecimento deixou registrada em mim como experiência, para dialogar com o que permaneceu e com o que foi descartado da obra.
E, na evidência dessas escolhas, ressaltar alguns elementos que permeiam a linguagem do grupo ao longo de suas criações e as facetas que estes assumem em sua mais recente montagem. Levantarei alguns pontos como a relação direta com o espectador, o autobiográfico e sua ficcionalização, a polifonia como linguagem e a tensão entre o dramático e performativo. Não se trata aqui de julgar as escolhas feitas pelo coletivo-criador, mas sim, perceber como esses materiais ganham novas articulações e que efeitos isso gera na formulação da obra.
Para abrir o processo de criação ao espectador ainda em uma etapa incipiente do trabalho, a Luna Lunera, junto com as diretoras Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa, do Areas Coletivo de Arte, criou uma série de dispositivos para que os exercícios/experimentos desenvolvidos em sala de ensaio pudessem ser organizados. Aquilo que antes nasceu de forma autônoma, sem ligação ainda aparente, começava a ganhar o que chamarei aqui de uma primeira dramaturgia, que consistia, basicamente, no entrelaçamento dos materiais elaborados no processo de criação.
Criava-se, já ali, um pacto com o espectador, ancorado na descrição do que se daria em cena: a apresentação de retrospectivas de cada um dos atores, de encontros e escutas entre eles, de jogos com o tempo, que se materializavam, como escreve o dramaturgo Carlos de Brito e Mello no programa do espetáculo, como investigação de “modos de configuração e experimentação do tempo”.
Neste sentido, esta primeira dramaturgia conseguia dar conta de compartilhar a experiência do tempo entre artistas e espectadores. Ambos tinham que lidar, no aqui e agora da apresentação, com essa percepção. Dá para contar uma vida em 2 minutos? Quanto tempo dura uma cena? Como percebemos o tempo quando estamos juntos no teatro? Essas questões eram compartilhadas entre palco e plateia com extrema potência – ainda que, obviamente, houvesse uma irregularidade natural no material apresentado, afinal, a apresentação era, em si, mais um passo do processo. E é justamente aí que residia sua beleza na sensação de que o passado criado era ali reinventado e revivido na presença do outro. A urgência que serviu de mote para a criação era ali compartilhada entre as partes, era preciso criar um tempo próprio do encontro – pensando o teatro como acontecimento, ação, convívio.
Outra característica que permeia as obras do grupo e que, naquele momento, aparecia de forma evidente, era a processualização da dramaturgia, transformando o próprio texto (cênico e verbal) em criação diante do espectador. O que, num primeiro momento, podia ser visto apenas como um exercício assumia a dimensão de material cênico completo, ainda que inacabado.
Mas o que antes mantinha essa dimensão claramente processual na cena foi, ao longo do processo, tomando outras formas que se percebem no espetáculo – ainda assim, os rastros da criação estão notadamente na tessitura do espetáculo. Aquela descrição do material que seria apresentado no ensaio aberto transborda para a criação final em forma de epílogo, narrativa do que o espectador verá em cena, uma espécie de esqueleto da dramaturgia/encenação que se desenrola no palco: – dois atropelamentos, um reencontro, quatro retrospectivas, um beijo, um teste de audiometria, duas desilusões, um desabamento etc.
Mas há uma diferença primordial entre as duas formas com que essa descrição é usada em momentos distintos do processo – sim, “Urgente” continua em processo, uma das marcas mais admiráveis da companhia mineira –: a sensação de que uma coisa se dava no presente, e outra no passado. É como se, no ensaio, o espectador fosse lançado a vivenciar o aqui e agora, o juntos, do teatro. E, na cena que se desenvolveu para a estreia, a escolha se dá pela criação de “um passado em comum”. E as percepções de uma e outra opção são muito diferentes.
A relação direta com o espectador, tão marcada no ensaio aberto, se resume, na montagem, às retrospectivas dos atores, que guardam também os momentos em que o(s) tempo(s) é(são) de fato sentido(s) pelo público. O que antes era inerente à forma, pela própria maneira como o dispositivo de apresentação dos materiais foi estabelecido, tornou-se quase acessório no espetáculo, saindo do campo da interação/relação para o da estetização, o que talvez seja responsável por diminuir a “afetação” capaz de mobilizar o espectador.
A utilização de materiais com fonte autobiográfica não é nenhuma novidade nos processos criativos da Luna Lunera, sendo materializados na dramaturgia de seus espetáculos de formas completamente distintas. Mas, independentemente do grau em que isso aparece na cena, há sempre uma tensão entre o real e o ficcional, borrando esses limites aos olhos, ouvidos e percepção do público.
Voltando ao primeiro encontro com os elementos criados em sala de ensaio, ainda em 2015, o que se apresentou ao espectador na mostra de processo tinha caráter eminentemente autobiográfico. Havia uma informação, dada pelos criadores durante a conversa após as apresentações, de que a seleção de materiais realizada para aquele momento excluía uma série de outras propostas que estavam sendo experimentadas em sala de ensaio, como a criação de personagens dramáticos, suas histórias e possíveis relações.
É justamente esse material ficcional, ausente da seleção feita inicialmente para se apresentar ao espectador, que assume caráter principal na configuração “final” do espetáculo. É a ficção que está em primeiro plano, por meio da apresentação dos conflitos e relações que os personagens estabelecem. São os personagens, não os próprios atores-performers, que estão em evidência – exceto, como já foi frisado, nos momentos das retrospectivas.
Mas a evidenciação do ficcional em cena não consegue apagar os rastros autobiográficos do processo e é justamente na tensão que se dá entre as duas formas que o espectador, assim como acontecia em “Prazer”, criação anterior do grupo, tende a transitar. A constatação, nas retrospectivas, de que questões aparentemente ficcionais são, de fato, parte das vidas daqueles criadores, leva o espectador a outras relações possíveis com o material dramatúrgico e a instantes de identificação capazes de mobilizar pensamentos e sensações sobre a própria vida em relação com os dilemas da cena. Quando essa tensão/conexão de ficção e autobiografia se estabelece é que “Urgente” parece provocar mais o espectador, tornando vida e arte indissociáveis – e, com isso, uma experiência de tempo.
As caixas da cena-processo que Marcelo Souza e Silva apresentou em sua retrospectiva e na sua cena-escuta estão em “Urgente”. Preenchem não só o pequeno espaço de seu personagem, como também parecem emoldurar toda a cenografia, minúsculos cubículos nos quais parecem estar presas as vidas ali apresentadas. O Carnaval, tema de uma das improvisações de Cláudio Dias, também transborda para a cena como paixão/ofício de seu personagem, assim como a recém-maternidade de Isabela Paes.
No começo, era só o processo que se desenvolvia aos olhos do espectador. Não se tratava de uma formalização definitiva do material levantado, mas, sim, de mais um dia de ensaio no qual aquilo que foi criado podia ser novamente experimentado, refeito, revivido, reavaliado. Havia ali, potencialmente, uma forma performativa de lidar com os materiais criativos, com formulações quase independentes e instáveis, que assumiam seu potencial polifônico, sem uma preocupação unitária, algo que o dramático, formulação final com a qual dialoga o espetáculo, em maior ou menor proporção, acaba por impor à obra.
Se antes o espectador era convidado a sentir/brincar/reconstruir o tempo – tanto o do aqui e agora do encontro, quanto aquele que se passou e o que está por vir –, agora ele é chamado a refletir sobre o tempo. O que era ação tornou-se verbo. E com ele veio um ritmo melancólico, uma anedonia quase tchecoviana, um painel de humanos que carregam a melancolia da consciência de que o tempo passa e transforma-se em ruína.
[i] Durante a criação do espetáculo “Prazer”, a Luna Lunera permitiu que esta autora acompanhasse o processo de criação, que tornou-se o objeto de análise da dissertação O processual na cena contemporânea – Práticas de criação e poéticas teatrais que enfatizam o percurso e a experiência da Cia Luna Lunera na gênese de “Prazer”
[ii] Em outubro de 2015, o grupo aceitou um convite da curadoria do projeto Conexões, assinada por mim e por Luciana Romagnolli, para apresentar ao público os primeiros exercícios/materiais levantados em sala de ensaio no processo de criação de “Urgente”, na Funarte-MG