– por Mário Rosa e Clóvis Domingos
Crítica a partir do espetáculo De Carne e Concreto, do Grupo AntiStatus Quo Companhia de Dança (Brasília).
De Carne e Concreto é um trabalho que transita entre dança contemporânea, performance e artes visuais, apresentando o corpo, em sua imanência e materialidade, como suporte para se abordar questões como vida urbana, coletividade, consumo e contato humano. Além disso, considerando aspectos formais das partituras presentes, é forte a ideia da aproximação entre dança e instalação na perspectiva de um campo expandido do movimento e das artes plásticas, constituindo um interessante jogo de percepções, interações, vazios e participações tateantes.
Numa proposta de criação de uma experiência compartilhada entre bailarinos e público, a ocupação horizontal do espaço multiuso da FUNARTE e a indicação inicial para que os espectadores-participantes adentrem tal espaço com uma sacola de papel na cabeça criam estados de expectativas, entusiasmos, estranhamentos e certa desorientação. O espaço se constrói pela presença de cada pessoa que ali o habita, além de dois enormes conjuntos de sacos pretos alojados em dois cantos da sala.
O início do trabalho é instigante, pois, ao portarmos as sacolas de papel em nossas cabeças com aberturas apenas para os olhos e os narizes, nossa participação como espectadores já é acionada, além de estarmos livres e dispersos numa sala na qual não se tem nenhuma indicação do que se pode ou deve fazer. Assim, implicados coletivamente, nos passeamos pelo espaço, mas há também aqueles que preferem ficar sentados próximos às paredes. Também é possível observar as reações das pessoas que vão chegando à sala e, de alguma forma, as sacolas, ao cobrirem os rostos, funcionam como máscaras, além de nos padronizarem, dando a impressão de que todos estão numa espécie de passeio num shopping center.
No decorrer da ação, algumas pessoas conduzem grande parte dos espectadores-participantes pelo espaço e já não sabemos quem ali é público e quem é bailarino. Um caráter de anonimato se instaura e é possível perceber os mais disponíveis para essa dinâmica proposta e outros mais reticentes e incomodados. Até que, depois de um tempo considerável, com inúmeros e pequenos blocos de pessoas caminhando de mãos dadas pelo espaço, aos poucos vão sendo retiradas muito lentamente as sacolas das cabeças, revelando assim o rosto de cada um. Momento interessante pelo olhar que se troca, o reconhecimento de outro corpo vivo, as relações e contatos estabelecidos entre pessoas estranhas, as conexões corporais já surgidas entre os participantes.
Essa poderia ser considerada a primeira parte da construção de uma instalação coreográfica que causa um impacto sensorial muito forte, pela vivência de extensões e dispersões do tempo e dos estados de corpo, pelo uso do espaço na procura e tensão de um onde ficar, no invisível e visível dos bailarinos, no visível e, por vezes, no invisível dos sentidos criados. Fato é que corpos se encontraram, se tocaram, se estranharam, se fragilizaram e buscaram ajuda. A ativação corporal, além de coerente com a temática do trabalho, de alguma forma gera delicadas camadas de adesão dos espectadores-participantes.
Uma segunda instância dramatúrgica acontece então com a exploração dos sacos pretos pelos bailarinos. A retirada de materiais precários vai ganhando velocidade e ocupando o espaço, e eles constituem também como corpos. Pouco tempo depois, a exposição e manuseio dessas materialidades revela a “saúde” dominante dos acúmulos, dos excessos, do consumo. As sonoridades e ruídos que surgem nesses atos de pegar, amassar, pisar sobre, descartar e anexar ao corpo acabam por produzir uma espécie de música, acompanhada da respiração ofegante pelo intenso movimento realizado pelos bailarinos. Seus corpos começam a se deformar ao juntarem em si tantos objetos, a ponto de não mais conseguirem caminhar, se mexer, se sustentar, se equilibrar. Composição e decomposição se alternam, a forma e o informe do corpo também.
Em meio a destroços, a violência e a competição explodem. Corpos em luta. Nesse combate, os materiais se perdem e o que sobra é o corpo nu: pele, ossos e vísceras. Impossível não se afetar nesse ponto. Há algo de tribal e ancestral nessa violência expressa, algo que confirma nossa agressividade animal. Ou seria algo de demasiado humano na lógica de um esgarçamento das formas de sociabilidades de um capitalismo cada vez mais irrefreável e alienante? A violência explode sim e em vários momentos. Contudo, há também, após o abandono das embalagens, não uma fuga do mundo, mas a possibilidade de um “junto” que titubeia e, ainda assim, cria momentos de composição e beleza. Corpos como massas, linhas e forças. O estar junto que se renova, que não busca a pureza das coisas, mas que assume embates e afirmações. Um detalhe: neste momento, os espectadores não têm o espaço para participação como no início da proposta, se tornam até o final observadores dos movimentos que acontecem em cena.
A nudez também se dá num momento posterior ao movimento de acúmulo e abandono de embalagens de produtos de consumo nos corpos dos bailarinos. A longa duração desta ação repercute no modo como nos tornamos sensíveis aos corpos nesta proposta. Há um percurso que vai de uma zona de um real ordinário à virtualidade dos corpos. Acontecimento do corpo. Um trabalho que provoca sensações e não necessariamente emite alguma mensagem e sim um bloco de sensações: o corpo em suas brechas, sua opacidade, suas necessidades, seu desassossego, nosso ocultamento e nossa exposição. No corpo: nosso cansaço, nossa aposta do quanto cabe nos acúmulos, a vontade de que exploda a matéria viva que era tão fina, os nossos desejos contidos. O corpo que não aguenta mais! O trabalho, nesses movimentos, produz uma suspensão daquilo que até então se mostrava mais explícito. Os gestos abrem para o impreciso, há uma beleza na exploração dos espaços, há um provisório encontro entre os corpos (a aposta no presente), há a força e a violência de um corpo que encontra seus pontos de não negociação, em que a vida (não como valor em si) vivida pede por expansão.
Cabe ressaltar que a nudez aqui se apresenta de forma deserotizada, isto é, os corpos se tornam planos de discursividade política. O desnudamento também opera no campo da percepção e, dessa forma, corpo é matéria plástica, massa, volume, superfície para desenhar formas no espaço.
Retomando alguns aspectos já mencionados, cabe destacar que De Carne e Concreto é uma performance que se constrói numa dramaturgia que alterna momentos de expansão e contração, sístole e diástole, explosão e recolhimento, som e silêncio. Isso se dá tanto pelo tempo dilatado que se materializa no espaço, com a junção dos bailarinos, espectadores-participantes e os materiais recicláveis; quanto na sequência de movimentos e ações que forçam a duração e ressoam pelo excesso, pelo desconforto, por uma afecção aleatória e dispersiva. Às vezes era perceptível o decomposto de uma interpretação mais objetiva da realidade concreta que, numa volta, recompunha o sentido ainda pela noção do sentimento, de um pedido de contato que parecia restaurar um corpo fragilizado. Não se ressalta aqui um problema em cena, mas o quanto o corpo do espectador pode ser levado pelas forças deste trabalho, o quanto ele encontra obstáculos, o quanto ele pode dançar e estar próximo e tocar com e sem orientação, o quanto ele deseja estar somente próximo, uma presença que contamina a outra e que refaz a vida quando uma perspectiva moral de mundo e dos afetos já se encontra caída e misturada ao muito do descartável.
Uma questão que também perpassa este trabalho é o como viver junto tanto na perspectiva de uma vida social de partilha e encontros e dissensos e negociações das tantas imagens construídas e evocadas, quanto na proposta da própria instalação coreográfica: que lugar ocupar naquele evento? Que performance é também possível ao espectador-participante? Quais os limites da experiência deste estar junto proposto (o quente e o frio desta instalação, quando o público passa a ser somente observador)? Neste sentido, a discussão sobre o comum, fortemente presente nos dias atuais, é relevante, pois há uma disposição em considerar o público como elemento importante da instalação coreográfica, de massa consumista à multidão de singularidades que pode alterar e compor quadros, passando também pela redução a um bloco de entusiastas das formas e das imagens já consolidadas de resistência e protesto.
Por fim, cabe destacar que a instalação pode ser percebida também a partir de uma narrativa bem definida, no que se refere às sociedades do nosso capitalismo tardio, aos processos de alienação, à gorda saúde dominante do consumo e das imagens e às tentativas de desmontes dessas imagens e da abertura de frestas para novos movimentos. São novas configurações de um estar junto, com a tensa constatação de que é neste mundo que algo pode ser criado e sem idealizações.
Apresentação vista no dia 17/08/2017 na Funarte na abertura do Festival de Teatro Brasileiro (Cena Distrito Federal).
FICHA TÉCNICA:
Direção artística: Luciana Lara
Concepção e pesquisa: Luciana Lara em colaboração com bailarinos e artistas colaboradores convidados
Elenco: Camila Nyarady, Christian Cantarino, Déborah Alessandra, João Lima, Luciana Matias, Márcia Regina, Raoni Carricondo e Clara Sales
Bailarinos colaboradores: Camila Nyarady, Carolina Carret, Christian Cantarino, João Lima, Luara Learth, Raoni Carricondo, Robson Castro e Vinícius Santana.
Colaboradores convidados: Marcelo Evelin, Gustavo Ciríaco e Denise Stutz
Figurino: Luciana Lara e elenco
Assessoria de iluminação: James Fensterseifer
Cenotecnia, montagem e produção: Marconi Valadares
Fotos divulgação: Mila Petrillo, Luciana Lara e Marconi Valadares