Segunda parte do panorama crítico do 26º Festival de Curitiba, com foco nos espetáculos Mata Teu Pai, de Grace Passô e Inez Viana (BH/RJ), Blank, de Nassim Soleimanpour, com Du Moscovis (Irã/RJ); e Amadores, da Cia Hiato (SP).
– por Luciana Romagnolli –
Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017
Leia aqui a primeira parte do panorama crítico sobre o Festival de Curitiba 2017.
O gesto de reinterpretação do mundo por perspectivas deslocadas da centralidade masculina heteronormativa, visto nos trabalhos da Toda Deseo, move também a apropriação da narrativa mitológica em “Mata Teu Pai”, espetáculo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba, em março deste ano.
“Mata Teu Pai” traça o caminho da mitologia grega ao feminismo contemporâneo, reconectando dois pontos distantes da história mundial à luz de Medeia, personagem vista pela dramaturga Grace Passô como a encarnação da força da mulher de qualquer tempo. Desprendida das palavras com as quais Eurípedes (480-406 a. C.) eternizou o mito da feiticeira infanticida, a autora reimagina, mais de vinte e quatro séculos depois, a figura trágica da mulher traída e abandonada pelo marido, dando novos contornos às suas paixões – o amor e a fúria. “Deixa eu mesma me contar”, diz sua Medeia.
Na versão de Grace, já publicada em livro pela editora Cobogó, Medeia aparece febril, cercada de mulheres migrantes como ela. Essa condição de estrangeira tanto é um comentário que a autora imprime no texto sobre as relações políticas contemporâneas, especialmente contra o seu quinhão de xenofobia, fascismo e racismo, quanto pode ser vista como metáfora da própria condição da mulher em sociedades patriarcais, seu sentimento de inadequação e não pertencimento quando assume como naturais formas de vida que lhe são impostas.
Uma das qualidades da escrita é essa temporalidade tensionada entre o atual e o atemporal, que preserva a potência arquetípica do mito, mas a redireciona às urgências de uma sociedade específica, concreta, viva, atingida por clamores de refugiados e das lutas pelos direitos ao próprio corpo.
À sua maneira, “Mata Teu Pai” ecoa uma condição de estrangeira no próprio corpo explorada por Grace em “Vaga Carne”, sua criação anterior. Contamina-se pela mesma inquietação de perscrutar identidades, desestruturar e contrapor os modos de subordinação do sujeito – no caso, a misoginia que aprisiona as identidades femininas. Sua Medeia é a afirmação do desencaixe desses padrões, um corpo de mulher com sua força aflorada, em sua máxima insubmissão.
Parir e amar, competências associadas à constituição feminina, são celebradas no discurso dessa Medeia arquetípica como potências extremas do corpo da mulher, provas de sua força que não devem ser transformadas em obrigações que a oprimam – como as concebe a cultura da maternidade compulsória e do amor incondicional da mãe ou da esposa disposta a tudo sofrer, acolher e perdoar. “De nós esperam os filhos, de nós esperam amor e amor e amor, de nós esperam a força descomunal, o trabalho, dentro e fora de casa, de nós esperam o gozo, a beleza, até o mistério. E nós acreditamos nisso. É ridículo. Tanto que adoecemos de amor por pessoas que nem amamos”, diz Medeia. Na condição limite de desespero em que se encontra, a personagem leva tais capacidades às últimas consequências: se pode dar à luz, também pode “tirar a luz”.
Esse discurso poético-político é lapidado com ecos e repetições que revestem seu discurso com a aderência dos refrões musicais. Configura-se como uma situação de encontro teatral com uma plateia, a quem Medeia afetuosa e provocativamente interpela, atribuindo a posição de suas filhas. A teatralidade dessa proposição ressoa outras estruturas armadas por Grace ao longo de sua trajetória desde o Espanca! para produzir pela dramaturgia uma forma específica de relação palco-público. Cria, assim, uma implicação dos espectadores como agentes da mesma sociedade, compartilhando responsabilidades éticas para que, juntos, possamos “revisar” o mundo.
Eis o que a autora executa. Ao revisar a história de Medeia, revê-la por outro ângulo, a partir da perspectiva de outro tempo, outro gênero e outro corpo, as reações e ações dela se alteram. Não cabe mais o ódio à amante ou à madrasta, ao qual hoje sabemos ser produto da misoginia. É Jasão o responsável, é contra ele que Medeia se insurge com toda visceralidade de que é capaz e sem temer as contradições decorrentes de suas paixões.
É justamente nesse destemor, nesse sem limite da imaginação de uma Medeia indomável, que a escrita de Grace encontra sua força artística. É quando o gesto político se recusa a obedecer aos contornos da racionalidade ou a estar a serviço da defesa de um ideal de modo simplista ou maniqueísta que a arte pode se realizar em sua extrema potência de perturbação e disrupção. Uma afetação muito além da experiência cotidiana, das zonas por onde nossas percepções e afetos costumam trafegar.
Na montagem dirigida por Inez Viana, Medeia confronta-se com a plateia a quem dirige diretamente seu discurso. O espaço cênico se modifica pela iluminação criada por Nadja Naira, ora acendendo a luz sobre o público, e nos incluindo como parte da cena, ora disparando os refletores como bombas que fazem do palco uma região de conflito. Dão à encenação o tom de gravidade e de grandiosidade necessários ao mito, sem qualquer espetacularização que esvaziasse sua humanidade.
A atriz Débora Lamm, tantas vezes vista à vontade em personagens cômicas, sustenta a tragicidade furiosa de Medeia. Em torno dela, gravita um grupo de senhoras da sociedade local, não atrizes. No Rio de Janeiro, onde “Mata Teu Pai” estreou, eram moradoras da região da Gamboa. Em Curitiba, outras senhoras – e dois senhores – atenderam à chamada pública. A presença delas povoa o palco com imagens femininas de uma faixa etária com baixa representatividade social mas alta significação para os discursos de empoderamento e emancipação da mulher que perpassam a peça. Carregam, ainda, a latência de um coro (de inspiração grega) ainda um tanto indefinido em sua função e na relação com a protagonista.
Nos dois momentos em que as interações se intensificam, na forma de um beijo e do amamentar, criam-se algumas das cenas mais belas do espetáculo, como coágulos de sentidos e sentimentos de processamento não óbvio, e as discrepâncias de idades, corpos e imagens geram um curto-circuito em nossas pré-concepções. Entretanto, caso sejam essas senhoras representantes das vizinhas refugiadas de Medeia – a síria, a paulista, a haitiana citadas no seu discurso –, tais singularidades ganhariam expressividade se marcadas em suas aparências, em vez da uniformidade dos tons de pele da imigração europeia que constituiu Curitiba.
Trabalhar com não atores, como as senhoras do coro, tem sido um recurso recorrente no teatro contemporâneo, como desenvolvimento de pesquisas que exploram as tensões entre a presença e a representação, o real e o ficcional da cena ou, mais amplamente, a vida e a arte. Esses corpos que não passaram pelos processos de formação de ator, não praticaram previamente nem assimilaram técnicas de voz, presença, jogo e atuação, não estão habituados com a posição de evidência em cena, eles compensam tais inabilidades com suas imagens e personalidades singulares e com uma carga de vivência, de história pessoal, que transparece nos modos de agir. Suas presenças tendem a conferir um efeito de realidade à encenação, e o que não é menos sensível ao público, de proximidade, familiaridade e carisma, que pode ser trabalhado a favor da dramaturgia.
Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba 2017
Blank
É carisma o trunfo de “Blank”, jogo cênico concebido pelo iraniano Nassim Soleimanpour (“Coelho Branco, Coelho Vermelho”). O dramaturgo comanda a peça com as indicações para a encenação: a cada apresentação, um ator ou atriz diferente deve ser chamado a atuar sem conhecer o texto, que só chegará às suas mãos já diante do público. Ele ou ela deve seguir as indicações escritas nas páginas impressas, preenchendo as lacunas com ajuda da plateia. Basicamente, a orientação é para que se construam – em diferentes graus de superficialidade – biografias do autor, do ator e de um espectador escolhido.
Na apresentação realizada por Du Moscovis, a simpatia do ator – e a simpatia prévia do público por ele – funcionou para que conquistasse a plateia rapidamente. É interessante observar que a seleção de atores e atrizes famosos por seus trabalhos na televisão para participar de um espetáculo de experimentação formal é um modo inteligente de suprir uma demanda da coordenação do festival por artistas com apelo de público. A escolha, entretanto, esbarra nos próprios limites de “Blank”. E estes são bem anteriores às variações de carisma ou desempenho do ator surpreendido pelo texto ou dos espectadores convidados a participar.
Embora aparente ser um exercício democrático de criação coletiva em que o público torna-se coautor, o jogo proposto é completamente dominado por Soleimanpour. Não há espaço, tempo, ambiente ou dinâmica para que outros agentes, sejam ator ou espectadores, realmente coloquem-se como criadores, porque estão alheios aos propósitos maiores que conduzem a dramaturgia. São como o gerente da fábrica e os operadores do maquinário, respondem a comandos de um sistema maior do qual estão alienados. Na apresentação vista, o resultado foi uma profusão de boas tiradas vindas de uma plateia aquecida, até que a dramaturgia fosse perdendo potência ao longo do preenchimento de suas lacunas.
Desta vez, o efeito de realidade da espectadora chamada ao palco, no lugar de atuante, e o carisma dos envolvidos não bastaram para levar o jogo além das ligeirezas, aquelas primeiras respostas que podem trazer alguns insights, mas carecem de reflexão para ultrapassar o lugar comum. Talvez em um teatro menor, onde a proximidade entre palco e plateia permitisse a instauração de um ambiente criativo, fosse possível outra abordagem. Mas isso dependeria de testar o quanto a dramaturgia de Soleimanpour é capaz de se abrir àqueles que a operam, em vez de manipulá-los.
Fotos de Lina Sumizono/ Festival de Curitiba 2017
Amadores
“Amadores” é o primeiro espetáculo em que a Cia. Hiato, dirigida por Leonardo Moreira, trabalha extensivamente com cidadãos não atores, escolhidos a partir de anúncios de jornais e de audições. A cena é armada como uma espécie de show de talentos dividido em rounds durante os quais esse grupo de pessoas apresenta-se, seja mostrando uma habilidade (cantar, dançar, tocar um instrumento, lutar etc.), seja relatando a si mesmas.
A Hiato avança sua investigação sobre as relações entre o real e o ficcional depois de absorver histórias pessoais dos atores na construção dramatúrgica da peça “O Jardim” (2011) , cruzar relatos pessoais e ficcionais em depoimentos em primeira pessoa, que assumiam o caráter de testemunhos, no conjunto de solos “Ficção” (2012) e colapsar os limites da ficção de encontro às suas balizas éticas em “2 Ficções” (2014). No “solo” de Thiago Amaral, aliás, ele convidava ao palco o pai para reparar uma relação cindida pela homofobia. Aí já estava a semente de um atuante não ator assumir uma posição de autoexposição numa narrativa de superação, como vemos em “Amadores”.
O novo espetáculo do grupo paulista desestabiliza a balança ao colocar em cena meia dúzia de atores e dezenas de amadores, cuja característica amorosa, denotada no título, reverte-se em um tipo de carisma próprio da identificação com figuras que não escondem suas falhas, seus limites nem seus desejos, enquanto dão o melhor de si para impressionarem os outros – nós. As escolhas do diretor miraram os candidatos com habilidades artísticas a exibir e, especialmente, aqueles com histórias de superação – o critério “dramatúrgico”. Mas valorizaram também a simpatia e a singularidade de corpos variados, alguns com inerente qualidade de presença ou competência para manejar simbologias, tempo, espaço e a atenção alheia em suas narrativas, a ponto de ganharem protagonismo – ou seja, o critério “cênico”.
Essas performances amadoras sustentam-se na crença de que qualquer vida é passível de ser contada como ficção. Mais do que isso, o processo de dar sentido à vida, em nossas sociedades ocidentais ao menos, é sempre uma prática narrativa regida por elementos ficcionais. É o que permite, por exemplo, a construção do “personagem” de uma reportagem de jornalismo literário, que empresta da literatura os recursos ficcionais para fazer da irredutibilidade que é uma pessoa algo cabível numa história. Ou no caso da narrativa em primeira pessoa, quando somos nós mesmos a relatar-nos por procedimentos ficcionais, destacando sentimentos e ações em busca de alguma coerência, algum propósito para a existência, como fazem os amadores do espetáculo.
Entretanto, o relato de si mesmo é sempre parcial e preserva pontos cegos, “assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva”, como observa a filósofa Judith Butler (2015, p. 55). Depende da perspectiva desse “eu” que narra sempre submetido aos limites perceptivos, cognitivos, geográficos e históricos de sua própria vivência. É, portanto, um relato cingido pela insuficiência, posterior aos acontecimentos que fazem possível o “eu” e sua história se inscreverem na linguagem, de modo que cabe a esse “eu” recuperar, reconstruir e fabular origens e circunstâncias que não pode conhecer. “Na construção da história, crio-me em novas formas, instituindo um ‘eu’ narrativo que se sobrepõe ao ‘eu’ cuja vida passada procuro contar”, diz Butler (2015, idem). Essa opacidade do eu em relação a si mesmo, ou sua “transparência parcial”, evidencia a relacionalidade que vincula o sujeito à linguagem (na qual se concebe), à alteridade (o eu só se constitui diante do outro) e ao mundo social (com suas normas que nos precedem).
De algum modo, esse limite do relato pessoal paira como questão sobre “Amadores”, na tensão entre o que os não atores ambicionam mostrar de si e o que os espectadores são capazes de ver. Essa diferença é ressaltada pela condução dramatúrgica, que inscreve a autoexposição desses “personagens” de si mesmos na linguagem hollywoodianos da história de autosuperação. O filme “Rocky”, de Sylvester Stallone, é convocado como exemplo das narrativas com as quais o sistema cultural nos impregna e que modelarão nossa compreensão do mundo, das biografias e dos indivíduos, para dar sentido e coerência às experiências belas, terríveis e triviais de uma vida e que de outro modo não se unificariam num corpo em constante transformação.
Ao assumir criticamente os contornos de um roteiro de superação e refletir sobre os efeitos dessas formas narrativas ventiladas pela indústria cultural na nossa compreensão de mundo – ao mesmo tempo em que o acúmulo de apresentações provoca nos atuantes amadores a percepção crescente sobre os seus processos de elaboração e enunciação de suas próprias histórias, desfazendo ingenuidades por trás da ideia de “depoimento verdadeiro” -, a dramaturgia favorece uma tomada de consciência sobre as narrativas que se cria (que criamos) para justificar uma identidade e um destino. E, ao atrair nosso olhar para o palco, nos redireciona à vida mesma.
O modo como um recorte social diverso é colocado em cena e desperta nosso interesse antropológico em “Amadores” faz lembrar “100% São Paulo”, peça do coletivo suíço-alemão Rimini Protokol apresentada na MITsp 2016, mas com abordagem verticalmente distinta. Se lá eram os números que regiam o show – as pessoas sobre o palco correspondiam às estatísticas do censo da cidade e respondiam a questionários ao vivo, submetidas a um dispositivo que não lhes concedia espaço ou tempo para expressão de singularidades -, aqui são as vivências singulares que se mostram, rompendo as pré-concepções que as primeiras impressões fornecem. Não só aquelas associadas à visão de mundo reacionária, mas – escapando dos maniqueísmos – também contra preconceitos que possamos ter diante da mulher burguesa, por exemplo, que descama sua história trágica de abortos involuntários sucessivos e sua força não adivinhável por quem julgue o estilo da bolsa que ela carrega.
Assim como “Rocky”, outras referências pop quase onipresentes na constituição dos habitantes deste pedaço do planeta, como Xuxa, são empregadas para conseguir mais que a adesão, a identificação do público em relação a essas narrativas impostas massivamente sobre uma sociedade. São os discursos que nos vestem, nos absorvem na vida cotidiana, e impelem a refletir sobre quais outras formas de compreensão do ser no mundo seriam possíveis. (Algo semelhante ao que “Blank” almeja ao lançar a atenção sobre a escrita biográfica, sem contudo construir relações formais e simbólicas suficientes para deflagar.)
Como na “Gaymada”, a alegria dos amadores está a serviço de uma reflexão que nos liberte de preconcepções sobre os outros e sobre nós mesmos. Há um celebrar da vida feito com a consciência crítica e o deboche de quem insiste em desfrutar, não se abater nem se submeter. Ainda que seja por influência da narrativa do lutador. Assim, a Hiato atinge um ponto excepcional na investigação contemporânea sobre as relações entre real e ficção, em que já não interessa tanto estabelecer a realidade no teatro, mas desvelar a ficção na vida.
BUTLER, Judith. Relatar a Si Mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
>> Leia em breve, na terceira parte do texto sobre o Festival de Curitiba 2017, as críticas a partir de “Farinha Com Açúcar”, do Coletivo Negro, “Macumba”, da companhia Transitória, “Nós”, do grupo Galpão, e “Protocolo Elefante”, do Cena 11, entre outros trabalhos apresentados.