Crítica a partir do espetáculo ”Nightvodka”, de Eid Ribeiro e grupo Armatrux (BH)
– Por Soraya Belusi –
Maturação é fruto do tempo. É preciso deixá-lo agir, sobre coisas e pessoas, para que haja uma transformação. A pressa, algo tão proeminente na nossa experiência de contemporaneidade, aqui é inimiga de uma possível transformação. Isso torna-se evidente ao acompanharmos os resultados de uma parceria entre o grupo de teatro Armatrux e o diretor Eid Ribeiro, uma tabelinha que se iniciou há exatos dez anos.
‘‘Nightvodka’’, a mais recente montagem do coletivo mineiro, que fez sua primeira temporada no CCBB, é uma celebração a essa relação teatral que completa uma década. E pode ser vista como uma condensação dos estudos e experimentações de linguagem que diretor e atores vêm construindo ao longo dos anos. Elementos que já podem ser notados desde o infantil ‘‘De Banda pra Lua’’ e que, no último trabalho, estão elevados em sua máxima potência.
Eid recorreu ao livro ‘‘Vozes de Tchernóbil’’, de Svetlana Alexievich, sobre o massacre nuclear no território soviético, para construir em cena uma paisagem devastada, povoada por pouca luz e muitas sombras, num retrato da humanidade esquecida em suas próprias ruínas, condenada a seguir seus dias sem a possibilidade de esperança redentora – algo recorrente em suas encenações. O espectador é colocado como observador passivo dessa devastação ambiental e humana, assistindo ao abandono alheio – como fizeram as autoridades russas diante de uma das maiores tragédias do nosso tempo.
O texto de Svetlana Alexievich está em cena, mas não a define. Ele é ponto de partida, síntese de um sentimento que parece perseguir – ou persistir – nos trabalhos de Eid. É como se o diretor mineiro convidasse a apatia dos personagens de Tchékhov para se integrar ao universo absurdo de Beckett, em que a repetição se evidencia como único comportamento possível. Não à toa, os personagens em cena se prestam, em grande parte do espetáculo, a repetir, até chegar ao ponto do incontrolável, ações cotidianas – carregar os livros, preparar a mesa, construir um caixão.
A dramaturgia do espetáculo abre mão do formato documental que possui a obra literária para lançar o conteúdo de suas reflexões em âmbito mais universal, possibilitando uma maior empatia com o espectador, que se desprende do fato histórico em si – a tragédia nuclear – para focar-se no abandono humano, algo que conhecemos nas profundezas de nossa existência. Os depoimentos presentes no livro ganham um tratamento em off, procedimento que despersonaliza o que é dito, como se as vozes que brotam na cena pudessem ser de qualquer um, não apenas dos personagens que as narram.
Nesse sentido, é como se estivéssemos de fato lendo um livro cheio de lacunas a serem preenchidas pela nossa experiência de vida, nosso repertório e imaginação. A incomunicabilidade, marca da dramaturgia do teatro do absurdo, se repete aqui, como se os personagens fossem incapazes de dizer algo uns aos outros e também a nós, que os observamos a distancia.
É como se enxergássemos espectros, a faceta fantasmagórica do humano, personagens que morreram em vida – a solidão é uma espécie de morte. Este é um jogo que percorre a obra e consiste no trânsito entre a repulsa e o desejo pelo outro – tão lindamente sintetizada na dança/luta coreografada por Mario Nascimento e pelos atores Eduardo Machado e Tina Dias.
Eid, exímio diretor de atores, coloca o quarteto em cena do Armatrux em situação de desconforto. Ambos, diretor e grupo, se jogam no risco. É na contenção, no silêncio e na concentração máxima que se sustenta a atuação. Saem as gagues e o humor de obras como ‘‘No Pirex’’ e ‘‘Thácht’’ e evidencia-se a tendência para o trágico. Passado, presente e futuro se alinham em cena, numa espécie de virada em que os personagens parecem acordar e nos tirar da nossa própria apatia. O humano insiste em resistir. Mas também insiste em destruir. ‘‘Nightvodka’’ é um grito de alerta – ‘‘é melhor morrer de vodca do que morrer de tédio’’.
FICHA TÉCNICA
Direção e Dramaturgia: Eid Ribeiro
Colaboração Dramatúrgica: Grupo Armatrux / Livremente inspirado em “Vozes de Tchernóbil” de Svetlana Aleksiévitch
Assistência de Direção: João Santos
Elenco: Cristiano Araújo, Eduardo Machado, Raquel Pedras e Tina Dias
Cenário e Figurino: Marco Paulo Rolla
Luz: Wladimir Medeiros
Preparação Vocal: Marina Machado
Direção Musical: Marcos Frederico
Coreografias: Mário Nascimento e Eid Ribeiro
Trilha Sonora: Eid Ribeiro
Professor de Baixo, Guitarra e Piano: Henrique Cabral
Produção Executiva: Luiz Fernando Vitral
Maquiagem: Linda Paulino
Fotos: Bruno Magalhães – Nitro
Comunicação: Uhuru
Assessoria de Imprensa: Luz Comunicação – Jozane Faleiro
Gestão de Projetos E Assessoria Jurídica: Drummond e Neumayr – Artmanagers
Contabilidade: Lucrar Contabilidade
Auxiliar Administrativa: Cynthia Souza
Coordenação de Produção: Tina Dias
Coordenação de Planejamento Artístico: Raquel Pedras
Coordenação Técnica: Cristiano Araújo
Coordenação de Planejamento e Mobilização de Recursos: Paula Manata
Coordenação Administrativo – Financeira: Rogério Araújo
Grupo Armatrux: Raquel Pedras, Tina Dias, Paula Manata, Cristiano Araújo, Eduardo Machado, Rogério Araújo
Realização: Grupo Armatrux