Por Soraya Martins
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Reflexões e expansões a partir do espetáculo Conforto, de Ana Flávia Cavalcanti, na 36º Semana Luís Antônio Martinez Corrêa, Araraquara 2024.
Ao longo da vida quais histórias queremos contar, desmontar, recursar e rememorar? Sonhamos futuros com a certeza de que, lá na frente, haverá espaços-futuros para coisas que não imaginamos? Futuro é de quem lembrar?
O espetáculo Conforto, quarto trabalho autoral de Ana Flávia Cavalcanti, com a participação de sua mãe, Val Cavalcanti, é sobre memórias, histórias, sensações, cheiros, paisagens, sobre o gosto de sal-geleia-café-cachaça na boca, sobre água na boca do que não se provou e falou, que a atriz faz questão de não esquecer, para que o não esquecimento seja uma possibilidade de voltar ao passado como forma de fazer emergir dele algo novo, algo que conforte e afague o seu corpo.
Dividido em três capítulos, a peça é tecida pelos diapasões das memórias da infância, adolescência, vida adulta e do que está por vir – antes, agora depois e depois ainda – da atriz. A partir de suas memórias, Ana Flávia, com ironia, improviso e uma relação de cumplicidade/proximidade com a plateia, (que ganharia mais verticalidade se não fosse o palco italiano), articula uma crítica que joga luz sobre as desigualdades socioeconômicas, raciais e de gênero que assolam o Brasil e tenta construir espaços e relações empenhadas em reconfigurar, na concretude do conforto, um território de mais justeza para as pessoas de todas as classes e cores. De acordo com o texto dramático, conforto está relacionado “ao poder aquisitivo e às garantias dos direitos trabalhistas”.
Na primeira parte, no saguão do teatro, o público é recebido com uma espécie de altar em que se tem um vídeo mostrando o autopasse da Vó Ana no natal, um vaso com espadas de São Jorge, planta que ao mesmo tempo é amuleto contra energias negativas e símbolo da prosperidade, folhas verdes ao redor desse vaso exalando o cheiro do amaciante confort, um dos elementos sinestésicos mais importantes da peça, e um painel de fotos que só ao final, quando o público, já embebido das memórias da atriz, atualiza seu significado.
Ao entrar no teatro, a plateia, ao som de Lecy Brandão cantando o samba “As coisas que mamãe me ensinou”, se depara com Ana Flávia e Val Cavalcanti, sentadas, cada uma de um lado do palco, à espera das pessoas para escutar, viver junto e sentir o [des]conforto de suas histórias e memórias. Dona Val, com a delicadeza de quem passou por uma cirurgia recente e a alegria de estar viva ao lado da filha, personificando os versos que dizem: “A mãe da gente…é um caso diferente/Muito mais que comovente/Que não dá pra comparar”, conta sua vivência como empregada doméstica e diarista em casas de família. Brancas famílias que atualizam, desde a falsa abolição, a estrutura escravocrata que forja os modos de trabalho e as relações de dominação na sociedade. A narrativa-prólogo de Val anuncia a performance oral e corporal da atriz-filha, centrada nas dores e delícias e marcas de ser filha de empregada doméstica.
Foto de divulgação: Jorge Bispo
Em um cenário em miniatura, cor de rosa, que reproduz a cozinha de uma casa, vestindo-se de paquita – alusão às assistentes de palco, brancas e loiras, da apresentadora Xuxa, em evidente marcação hierárquica de padrão de beleza e acessos outros-, Ana Flávia traz à tona as orientações de comportamento de Dona Val quando a levava para o trabalho:
não pegar os brinquedos da filha da patroa.
não abrir a geladeira e comer os danones.
não deitar no sofá branco.
Com essas orientações, a atriz expõe as diferenças socioeconômicas entre a casa da patroa e da empregada, estabelecendo um jogo dicotômico que nutre todo o capítulo: lá e aqui, geleia orgânica e pão com manteiga, roupa lavada com confort e roupa sem confort. A partir do dispositivo do cheiro, com um borrifador contendo amaciante confort, Ana Flávia, caminhando pela plateia, perfuma excessivamente o teatro, marcando, também, com o cheiro, as dicotomias entre rico e pobre, entre quem tem e quem não tem. Roupa cheirando a confort é metáfora da riqueza, contrapõe-se ao cheiro de quem pega o elevador de serviço, templo que mina o sono de pessoas cor da noite.
No jogo de dicotomias, para aquelas que só acessam a área de serviço, o contrário de confort é conforto, performado em cena como o lugar de bem estar material: casa própria, café da manhã com frutas e pães e ricota e geleia e sucos, poder aquisitivo. “Garantias dos direitos trabalhistas, como remuneração ajustada ao valor real da moeda corrente, acesso à saúde, cultura, mobilidade e, também, às subjetividades do indivíduo”. Tudo muito legítimo. Mas casa, saúde, comida, diversão e arte não seriam direitos inalienáveis para todas as pessoas do mundo? Estariam, mesmo, na esfera do conforto? Será que os lampejos desejantes de pessoas de mãos coloridas, como as minhas, estariam sendo capturados por uma ingênua ideia de acesso, representatividade e superação disseminada na atualidade? Penso. Penso. Penso. E, por hora, escrevo: para aqueles que pulsam na falta do básico, casa própria, café com frutas-geleias-sucos, direitos trabalhistas é, sim, [in]felizmente, um conforto.
O segundo capítulo intitulado “Abraço do Pai” traz escolhas estéticas que alimentam de maneira muito especial a poética de Conforto. Da falta material, a atriz passa para a falta do pai através de um procedimento que acentua as distâncias entre pai-e-filha. No fundo do palco, tem-se uma projeção: é um vídeo que dá a ver o encontro de Ana com seu pai. Não se escuta o diálogo entre eles, mas lê-se os lábios de pai e filha, que, como espectadora da própria falta, assiste ao vídeo e narra o diálogo e os movimentos que o público apreende por meio das imagens. A atriz brinca com as sobreposições de linguagens para colocar em cena as camadas e complexidades da relação com o pai. Eles se abraçam. Outra sobreposição de linguagem. Música ao vivo. Violoncelo. Eles se abraçam, mesmo se amargo for já ter sido. Chorar, aqui, é inevitável, assim como sentir o gosto do sal do sal do sal…
Parênteses. (Ana traz para o palco uma questão profunda que toca de modo especial muitas famílias pretas: o abandono paterno quase ditando as formas de relação. Tal abandono performa, na ausência, as muitas vezes em que as crianças ficam com água na boca da palavra-pai, quase nunca pronunciada ao longo da vida. No Brasil, o abandono paterno é uma realidade assustadora. De acordo com levantamento da Central Nacional de Informações do Registro Civil, em 2020, 6,31% das 1.280.514 das crianças que nasceram foram registradas apenas com o nome da mãe).
Eles se abraçam. O vídeo “O abraço do pai” foi gravado em frente à casa do pai de Ana, onde vive com outra mulher. Lá atrás, no início da peça, em vídeo projetado, a atriz, ficcionalizando sua história com a de sua mãe Val, em uma interpretação que alimenta com brilho nossas retinas, nos conta que, quando o pai abandonou a família, sem casa, teve como teto uma mesa. Gravar o vídeo em frente à casa do pai a leva rememorar e querer revisitar todas 29 casas em que viveu. Visita. E distribui fotos para a plateia que registram às voltas para as casas. Projeta no fundo do palco fotos das 29 casas e conta, numa relação íntima com o público, inúmeros casos de delícias e dores ocorridos dentro dessas casas e nos seus entornos. Casa (substantivo feminino): 1- Edifício de formatos e tamanhos variados. 2- Família, Lar. Casa é palavra que move e co-move Ana Flávia, dentro e fora de cena.
O terceiro capítulo recebe o nome da rua, em Algodões, onde Ana Flávia mora atualmente. Vemos essa casa projetada no fundo do palco. Nessa casa, comprada com dinheiro de seu trabalho como atriz, de frente para o mar, ela mergulha no prazer do abrigo. Ressignifica as faltas e as ausências e sua própria forma de ser e estar no mundo. Na Bahia, ela planta algodões para colher lar e sonhos, delicadezas e prosperidade. Me arrisco a dizer que ela também planta espada de São Jorge no seu mar.
Parêntese: (ao final da peça, servido um baquete, com frutas, pães, geleias e sucos para plateia, Ana diz algo mais ou menos assim: “Você, patroa, pague um uber confort para sua empregada. Pague aquela escolinha de natação para o filho da sua empregada. Assine a carteira dela!” Penso. Penso. Penso. E escrevo: acho que não é sobre pagar uber, natação e assinar carteira. O corpo feminino da negrura não deve ocupar todos os lugares, porque há lugares que não deveriam nem existir. As pessoas devem ser responsáveis por fazer sua própria comida, limpar sua sujeira, lavar com ou sem confort sua própria roupa. A empregada doméstica de hoje é a escrava de mesa e banho de ontem).
Ana Flávia Cavalcanti, ao logo de três capítulos-cenas, performa fragmentos de memória, de histórias e de narrativas na tentativa de suturá-los. A sutura, como coloca a artista visual Rosana Paulino, diz não de um bordado, um tipo de costura bonita, mas de um procedimento que consiste em costurar as bordas de um corte ou ferimento, para fechá-lo. Sutura, aqui, é uma palavra que explode as delimitações da medicina e se torna um termo costura-política-estética, uma costura do refazimento das pessoas que se fabulam, principalmente, a partir dela. Ana parece pegar esse termo/procedimento, assim como faz Paulino, e aplica-lo em Conforto para suturar e, acima de tudo, fissurar sua própria história.
Parênteses: (o ato de fissurar, assim como entendo e acho bonito e venho tecendo como noção, dentro do contexto dos teatros pretos, é entendido como ato de fender os regimes de representação e registros de representatividade calcados nas homogeneidades e estereotipias sobre as formas de ser e estar negra e negro em cena e no mundo. Fissurar é re(elaborar) esteticamente novas formas de encenar os dramas negros e, mais do que isso, reelaborar novas maneiras de fazê-los sentidos).
Foto:@hannavadasz
Ana Flávia Cavalcanti traça, em Conforto, outros mundos possíveis para si, trança histórias que ultrapassam a narrativa somente da dor e, sobretudo, elabora esteticamente imaginários plurais, individuais e coletivos. Assim, escolhe o palco como lugar para tensionar as melancolias, os ressentimentos e as alegrias. O teatro como mecanismos de tensionamentos. A partir dele – teatro – Ana produz centelhas e lampejos da ordem dos desejos utópicos e da fabulação, ambos empenhados na busca pelo sublime, por novos modos de relação, de existências e de festa.
Ficha Técnica:
Concepção, direção e atuação: Ana Flavia Cavalcanti
Supervisão artística: Isabel Setti
Performer convidada: Val Cavalcanti
Cenário: Marília Piraju
Figurino: Ana Flávia Cavalcanti e Marília Piraju
Trilha sonora: Lua Bernardo
Iluminação: Cynthia Monteiro
Videoarte: Tiago Silva
Fotografias: Felipe Ávila
Direção de Produção: Rafael Ferro
Produção Executiva: Jandilson Vieira
Assistente de Produção: Mariana Molina
Assessoria de Imprensa: Pedro Madeira e Rafael Ferro
Preparação Vocal: Isabel Setti