– por Marcos Antônio Alexandre (Faculdade de Letras/UFMG-CNPq) –
Olhar crítico sobre o FIT-BH 2016.
Fotos de Glenio Campregher, Guto Muniz e Daniel Protzner.
Muito se falou sobre a 13ª Edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte – FIT BH 2016. Uma edição que nasce em meio a uma grande crise, imersa em um clima de instabilidade política, no qual uma grande parcela da população e da sociedade e da classe artística brasileira sente que os seus direitos democráticos foram lesados em prol de jogos de poder que configuraram a retirada temporária da presidenta Dilma da condução da nação brasileira. Um festival que também já nasce divido, lembremos que uma comissão “abandona o barco” e outra o “assume” no meio do caminho… e aqui não entro e não me interessa entrar/e ou conhecer os meandros que circundam tais aspectos, até porque reconheço a importância do festival para a cidade e sei de sua relevância para o cenário regional e nacional. No entanto, não posso ser omisso e pelo menos não tocar no fato de o festival propor como temas “A Arte do Encontro”, “Arte e Resistência”, trazer trabalhos que representem temáticas recorrentes (performance, instalação, intervenção urbana, clown, concertos, circo etc.) e deixem de fora obras que poderiam muito bem dialogar com a proposta do festival, como as voltadas para o Teatro Negro (como foi amplamente cobrado nas redes sociais durante o período do evento e em algumas apresentações pela classe artística, uma vez que o tema da “resiliência” faz parte constante dos negros e de tantos outros sujeitos invisibilizados que configuram as cidades brasileiras).
Diga-se de passagem, polêmicas não faltaram a esta edição do Festival, desde a divulgação dos espetáculos selecionados para participarem da Mostra Local, pelo fato de não ter havido, nesta edição, uma chamada pública para seleção dos trabalhos, ao velho problema das traduções simultâneas que, em alguns espetáculos, não funcionaram – falta de sincronia e outros problemas na legendagem – e prejudicaram o entendimento do público no caso das apresentações em línguas estrangeiras.
Transitando pelos espetáculos que se apresentaram nesta Edição do FIT, as peças locais trouxeram a diversidade dos trabalhos artísticos que vêm sendo produzidos na cidade, de palco e rua, voltados para o campo da pesquisa e da experimentação, peças que dialogam com a linguagem performativa como Maxilar Viril, da Maldita Cia de Investigação Teatral, e Calor na Bacorinha, do Coletivo Bacurinhas; ambos profundamente políticos, marcados pela estética performativa, tocam nas questões do gênero, mas por vieses distintos, resguardando as particularidades de cada coletivo e as suas qualidades. Na Maldita, o trabalho com o jogo linguístico, a ironia das palavras, o jogo espacial e a disposição pela ocupação de uma dramaturgia de espaço; nas Bacurinhas, a dramaturgia do corpo e da palavra feminina como estratégia de empoderamento para tratar de questões de gênero como instrumento de denúncia e formas de legitimação de microinstâncias de poder da voz e do corpo das mulheres.
Há que se destacar também os trabalhos do Espanca, Real, e da Primeira Campainha, À Tardinha no Ocidente, peças que revisitam o contemporâneo por vieses distintos e bem instigantes. Se, em Real, o Espanca parte de fatos “reais” que aconteceram em cidades brasileiras e foram manchetes de grandes periódicos nacionais; em À Tardinha no Ocidente, a Primeira Campainha ressignifica os fatos históricos e, assim como a memória é manipulada, as atrizes jogam performativamente com o “real”, dando nuances com pílulas de ironias para revisitar a “História Oficial Brasileira”. O Real, do Espanca, tira o espectador de seu centro, o limiar do “real” e do “ficcional” é rompido em cena, a título de exemplo na cena do “linchamento”. Rompe-se ali a barreira tênue do metaficcional, e eu me sinto muito próximo no universo sedutor do realismo mágico de García Márquez.
Les Girafes, Opérette Animalière é o espetáculo que abre a 13ª edição do festival. E a sensação que fica é de déjà vu. Envolver o público em um clima circense em uma proposta de rua cheia de cores e ritmos é uma fórmula que já foi utilizada inúmeras vezes e, talvez, seja a hora de ser repensada: um espetáculo “bonito”, que envolve muitos figurantes locais, e também envolve o público que se sente atraído pelas gigantes girafas vermelhas que ocupam o espaço da Praça da Estação. Talvez, o mais interessante tenha sido a fusão da performance espetacular com a performance política – a intervenção performática se confundiu com a manifestação pró-Dilma, que, sem dúvida, naquele momento, era mais interessante aos olhos de muitos que ali transitavam, pois o espetáculo não tinha a mesma força visual de outras performances mais impactantes de outras aberturas anteriores. Sinal da queda de investimento financeiro no festival ou de que esta fórmula, realmente, já se esgotou?
Horror, Vacui Hamlet
Um dos acertos do Festival foi produção dos “Espetáculos de Projetos Especiais”, que constaram de apresentações gratuitas de peças que foram concebidas dentro das escolas de formação artística de Belo Horizonte. Foram apresentados seis trabalhos, entre os quais destaco Horror, Vacui Hamlet, da Cia Teatro Adulto, da Escola de Teatro da PUC Minas, dirigido por Cynthia Paulino. Ela assina a dramaturgia que tem como base a obra clássica Hamlet, de Shakespeare, e fragmentos de Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche. Em cena, Luiz Arthur empresta o seu talento para representar as contradições e as tonalidades paradoxais que compõem a psique do jovem príncipe da Dinamarca inebriado por todos os conflitos causado pelo frio assassinato de seu pai pelas mãos do tio Cláudio, quem usurpara o trono do Rei, tomando para si a coroa e a esposa. A rainha, Gertrudes, é representada pela atriz Samara Martuchelli, que também tem um papel fixo, e as demais personagens, pelos demais atores, que se dividem nos papéis do novo rei Cláudio, Polônio, Horácio, Laertes, Fortimbraz, Ofélia, coveiros, entre outros.
A direção de Cynthia Paulino é marcante. Por meio de um figurino em tons de preto, ela transforma o seu elenco em um coro, travestido com máscaras de caveiras, que vai comentando e estabelecendo as tessituras das ações dramáticas da peça. Esta estratégia, além de estabelecer os enlaces textuais, cria um jogo interessante em que os atores, vestindo e retirando a máscara, vão compondo personagens distintas ao longo da peça. É a mesma estratégia que a diretora utiliza ao fazer com que os seus atores possam vivenciar, diante dos olhos do espectador, distintas facetas do rei Cláudio – o rei “fingidor”. Cada ator passa a coroa para o outro, que volta a vestir a sua máscara e, por sua vez, retoma o seu lugar no coro das caveiras. Dessa forma, são capazes de exercitar nuances diferenciadas da personagem do rei traidor a partir de uma perspectiva que possa extrair a melhor característica de cada um, pensando que o trabalho foi gestado com atores que, no primeiro momento, estavam em formação.
Saltam à vista a qualidade e o uso da trilha sonora pesquisada e escolhida para compor o espetáculo, bem como o trabalho coreográfico executado, que traz uma roupagem contemporânea para o texto clássico. Lembremos que esses aspectos são marcas importantes que já integram os trabalhos artísticos da diretora. A atuação de Luiz Artur surpreende por vieses distintos. A sua presença na peça e a propriedade com que o ator profere o texto shakespeariano não só dão legitimidade ao texto espetacular proposto, mas também trazem harmonia e segurança para o elenco com quem divide a cena. O ator promove o jogo nas cenas, logra instaurar por meio de inflexões vocais as nuances irônicas propostas pela personagem Hamlet. O paradoxo do humor e da loucura também é aceso a partir de partituras corporais e faciais. Não posso deixar de fazer menção à harmonia do elenco como um todo e às gratas surpresas de ter podido observar o desempenho dos atores Luiz Drumond e Tomás Sarquis, que corporificaram, respectivamente, entre outras personagens, os papéis de Polônio e o do coveiro – principalmente, deste último, que apresenta um tempo de humor surpreendente e um ótimo jogo com o público, principalmente se levarmos em conta que, no texto shakespeariano, a cena é trabalhada com dois coveiros e, na versão atual da Cia Adulto, a diretora opta por apenas um, e o ator rouba a cena e ganha a plateia.
Uz
Entre os espetáculos nacionais trazidos para o FIT, o grande equívoco foi sem dúvida UZ, da La Vaca Cia de Artes Cênicas, de Florianópolis. Se proposta parecia simples como revela a sinopse (“os habitantes de UZ vivem em paz, guiados pelos ensinamentos da Igreja. Até que um dia, Grace, a mais virtuosa entre as mulheres, escuta a voz de Deus. Ele ordena que ela mate um de seus filhos. Para cumprir essa sagrada missão, Grace não deixará pedra sobre pedra”), o que se vê em cena é um espetáculo que, partindo de uma temática específica – a religião – busca trabalhar com o humor de forma crítica e irônica, mas acaba exacerbando os estereótipos. Se o objetivo era propor uma reflexão sobre as possíveis influências de algumas religiões nas vidas das pessoas, o que se vê em cena é uma triste alegoria de algo mal logrado. As personagens são estereotipadas desde o figurino até a caracterização da maquiagem, que é carregada, nos gestos e nas partituras físicas propostas para cada tipo representado.
As personagens da peça, a partir de um texto que tem o propósito de cumprir a suposta ordem de um Deus para a redenção dos pecados do mundo, dirigem umas às outras palavras como “gorda”, “negro”, “bicha”, ou seja, não há uma reflexão sobre os termos “politicamente incorretos” que são lançados em tom de chacota durante as cenas. Não se propõe uma discussão sobre gênero, etnicidade ou crença religiosa; “negro”, “gordo”, “homossexual” são produtos de um mesmo fruto. Ao final, tenta-se salvar o discurso dando voz à personagem que tinha sido considerada em toda peça como autista – a ideia de que a personagem do “bobo” pode falar tudo, pois representa a “voz da consciência”, mas, neste caso, o discurso, a meu ver, não redime, não isenta o trabalho. Não obstante, como recepção é recepção, não posso deixar de mencionar que, na apresentação à que tive acesso, parte do público recebeu o espetáculo com gargalhadas sonoras, uma parcela se retirou durante a representação e, ao fim da peça, o grupo foi aplaudido de pé pela maioria dos presentes, como é de costume pelo público de Belo Horizonte.
Fotos de Glenio Campregher e (2) Daniel Protzner.
Estrangeiros
Dos espetáculos estrangeiros, destacaram-se Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento, do Colectivo de Investigación Apacheta, da Argentina – um ótimo trabalho de jogo de atores, trazendo os questionamentos relacionados com os temas da memória x desmemória x desaparecidos: nuances da história argentina que se confundem por meio das reminiscências da avó, a matriarca da família, e o tempo presente representado pelo aniversário do neto Branko; Mary’s Baby – Frankenstein 2018, do Thétre Diagonaie, da França, um solo de uma ótima atriz com uma proposta espetacular polifônica e perfeitamente mediada pelos recursos da intermidialidade; e Dark Daughters Band, do Dakh Theatre, da Ucrânia, um show musical muito performativo e potente que contaminou plenamente a plateia. As meninas ucranianas, aparentemente dóceis, conseguiram desconstruir em cena o imaginário pueril, transitaram em diversos ritmos e, neste caso, o idioma não se converteu em uma barreira linguística, como aconteceu com o espetáculo dos gregos (Οι έμποροι των εθνών [Os Mercadores das Nações], em que a legenda, mais uma vez, não funcionou e o público simplesmente ficou apenas no entendimento global da proposta, que até era interessante e com bons atores), muito pelo contrário, o público se sentiu completamente inebriado pelo ritmo e pela sonoridade do trabalho apresentado.
Por fim, gostaria de me ater à peça The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven [O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu], do Queen Jesus Plays, da Escócia, um trabalho sensível e muito bem resolvido cenicamente. Também pautado na temática religiosa, mas por meio de uma perspectiva do transgênero. A atriz trans, Jo Clifford, personifica Jesus em cena e num espaço alternativo, a Sala de Colunas, do Museu Mineiro. Ela entra carregando uma mala, na qual contém tudo que utilizará durante a peça, o pouco material do qual ela irá se desfazendo ao longo do espetáculo. O público se senta em banquinhos bem próximos uns dos outros, de forma que todos possam se ver e observar tudo que se passa ao seu entorno, e é nesse espaço de proximidade e de convívio no qual Ela adentra – “This is the time. This is the place. This is where we meet each other”[1] – e vai dividir e com os espectadores as histórias do evangelho, seus relatos pessoais e coletivos, que serão ressignificadas a partir de perspectivas sociopolíticas e ideológicas:
“We confused people,
And I loved that in us most of all.
Because we are the hijra from India
and the kathoey from Thailand
and the waria from Indonesia
and the bissu from the Archipelago
and the fa’fa’fine from Samoa
and the muxe from Mexico
and the travesti from Brasil
and the two-spirit people from North America
and the shamans form Siberia
and the yan daudu from Nigeria
For verily,
verily I say unto you,
because it is undoubtedly true,
that every culture in every place and time has known of us,
and celebrates us, mostly,
except this one, which is in the minority.
And I don’t understand why now,
in those few places on this tormented earth
where we openly flaunt
our dear and beautiful selves,
we should so often have to live off the streets
as harlots and whores”.[2]
A peça da atriz reivindica um ativismo, mas o faz repleto de poeticidade. A sua performance corporal remete a uma prédica, mas com um profundo ato de leveza, sem levantar o tom de voz, ela conduz o espectador para a reflexão e, ao final da montagem, todos estão rezando/orando com ela:
“And bless all of us in this beautiful city.
Bless us in our times of you and happiness
and in all the times we have been frozen in terror.
Remind us we are not alone.
Don’t let us ever forget.
for he is she
and she is he
and we are they
and they are we
and ever shall be
for ever and for ever and for ever
Amen.[3]
Afinal de contas, teatro é convívio, teatro é rito, teatro é ação…
teatro é ou deveria ser
sempre
fonte de reflexão…
principalmente nestes nossos tempos sombrios de tantas incertezas políticas…
[1] CLIFFORD, Jo. The Gospel Accoding to Jesus, Queen of Heaven / O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Trad. Natalia Mallo. www.stewedrhubarb.org., 2016. p. 2 (Esta é a hora. Este é o local. É aqui onde nos encontramos.)
[2] Idem. p. 6. (Nós confundimos as pessoas, / e isso é o que eu mais amava em nós // Porque somos a hijra da Índia / e a Kathoey da Tailândia e a waria da Indonésia / e a Bissu do Arquipélago / e a fa’fa’fine do Samoa / e a muxe do México / e a travesti do Brasil / e o povo de dois espíritos da América do Norte / e as shamans da Sibéria / e as yan daudu da Nigéria. / Pois em verdade, / em vem verdade vos digo, / por ser uma verdade indubitável, / toda cultura de todo lugar e tempo tem conhecimento de nós, / e nos celebra, / exceto esta, que é uma minoria.)
[3] Idem. p. 52. (E abençoadas sejamos todas nós, aqui nesta bela cidade. / Abençoadas sejamos em nossos momentos de alegria e felicidade / e em todos os momentos em que formos congelados pelo terror. // Lembremos que não estamos sós. / Não nos deixeis jamais esquecer. / que ele é ela / ela é ele / nós somos eles / e elas somos nós / assim foi e assim será / para sempre para todo o sempre / Amém.)