Klássico (com K), do Grupo Mayombe
por Marcos Coletta
Klássico (com K) é o mais recente espetáculo do Mayombe Grupo de Teatro, de Belo Horizonte, que cumpre temporada de 19 de abril a 19 de maio no Esquyna – Espaço Coletivo Teatral, e resulta de 14 meses de pesquisa e criação.
É difícil escrever sobre o trabalho do Grupo Mayombe, com o qual já trabalhei como ator em dois espetáculos e fui co-autor de um deles. Meu envolvimento com este coletivo de artistas é estreito demais para me abster de todo e qualquer traço afetivo ao falar de suas criações. Desta vez, porém, por não participar do processo, tive pouco contato com a montagem de “Klássico (com K)”, o que me coloca em uma posição mais confortável para tentar, aqui, fazer alguns apontamentos.
Antes, creio ser necessário iluminar algumas informações importantes sobre a história do Mayombe, um grupo de 18 anos, nascido dentro da Faculdade de Letras da UFMG (FALE), e que nos anos iniciais se desenvolveu como um grupo de pesquisa em teatro hispânico, integrado por alunos e professores da FALE e ligado às atividades acadêmicas, ainda que não dependente delas. Durante sua trajetória, sempre marcada pela rotatividade de integrantes, o caráter acadêmico do grupo abriu espaço para uma postura mais “teatral”, o que muito se deu pela entrada de alunos do Curso de Teatro na equipe, ampliando seu alcance para além dos muros da Universidade. Em 2005, o espetáculo “O Julgamento de Don Juan” começa a indicar a profissionalização do Mayombe como grupo teatral, e em 2007, com “Por esta porta estar fechada, as outras tiveram que se abrir”, o coletivo firma um novo tipo de contato com o público, a crítica e a criação no contexto do teatro contemporâneo, resultando em sua efetiva entrada para o circuito cultural profissional de Belo Horizonte. Em 2010 estreia “A Pequenina América e sua Avó $ifrada de escrúpulos”, e agora, em 2013 “Klássico (com K)”. É interessante pereceber este movimento que parte de uma pesquisa acadêmica para desembocar em um grupo de teatro profissional que atualmente possui mais atores do que alunos da Letras. Da formação inicial, permanecem Sara Rojo, diretora do grupo, e Marcos Alexandre, ambos professores doutores da FALE, responsáveis por cultivar a essência ideológica e identitária do Mayombe. A saídas e entradas frequentes de integrantes reverberam na benéfica diversidade estética dos espetáculos. Sara Rojo, que concentra sua direção mais no conteúdo discursivo e político dos espetáculos do que em técnicas de atuação, concede aos atores grande autonomia criativa.
“Klássico (com K)” é um símbolo claro da maturação deste longo processo de retro-alimentação entre a área acadêmcia/teórica e a área teatral/artística. Representa também a confirmação de um lugar singular construído pelo Mayombe, bastante diferente da trajetória de outros grupos teatrais da cidade. É, ainda, segundo o grupo, o fechamento de uma trilogia iniciada em “Por esta porta…”, em torno de uma visão utópica do homem contemporâneo. E também, uma incursão audaciosa pela literatura clássica ocidental.
CLÁSSICO, mas com K
Pouco antes da estreia do espetáculo, o grupo decidiu mudar seu título de “Clássico”, para “Klássico (com K)”. No corpus da peça, percebemos a necessidade da troca. O Mayombe propõe sua releitura de personagens fundantes da cultura ocidental: Medeia, Antígona, Ulisses e Fausto, reunidos ali de forma quase alegórica, sem qualquer verossimilhança histórica. São figuras pinçadas de seus contextos e soltas em um espaço-tempo indefinido, como animais em cativeiro, distantes do habitat natural, expostos ao visitante/público. Situação tão comum na cultura pós-moderna, onde todo e qualquer personagem ou fato pode se tornar ícone de consumo sem qualquer pano de fundo – são as camisas de Che Guevara nas lojas de departamentos. As personagens, como exilados, demonstram seu banzo e explicitam sua desorientação contraposta com os diversos trajetos demarcados no chão do palco.
Os atores empreendem então o desafio de “defender” seus personagens clássicos no estádio-arena-show montado. O match criado é campo por onde cada ator tenta percorrer uma trajetória cênica e pessoal, onde todos os recursos podem ser utilizados – técnicas de atuação, narrativas, coreografias, plágios, dublagens, apresentação de palestra, travestismo, luta corporal, mimese, charlatanismo, e até a simples presença, que quando aparece desarmada e fragilizada, aproxima o espectador. Defender as personagens é a forma encontrada pelos atores de se colocarem diante do público e justificarem a necessidade de sua presença (ou ausência) no mundo.
Mas, para quê recorrer aos Clássicos? Uma hipótese razoável seria considerar que tais personagens não são apenas importantes figuras literárias e artísticas, mas chaves elementares para a construção do pensamento e do comportamento ocidental. Seria possível buscar nestes marcos originários uma possível remediação para os nossos atuais vazios, para nossa náusea contemporânea, ou, pelo menos possibilitariam a chance de reencontrar alguns rastros apagados, alguma pista da nossa falência como projeto de humanidade? Recorrer aos clássicos é olhar para trás, percorrer nossa genealogia, cientes de que nós, latinoamericanos, somos os filhos tardios e bastardos.
Medeia, Antígona e Ulisses moram na mitologia grega, o que nos remete às concepções primevas da sociedade organizada. Um modelo inicial do que entendemos hoje por civilização. Estaria lá nossa herança perdida, nosso legado esquecido após 2500 anos de “evolução”? E temos ainda a presença de Fausto, personagem eternizado por Goethe na transição do século XVIII para o XIX, obra-símbolo do romantismo (considerado a antítese do espírito clássico) e da idade moderna. O “Klássico (com K)” cria o ambiente iconoclasta propício para a co-habitação destes quatros personagens, livre de qualquer reverência ao cânone, desossados de sua rigidez modelar. O “Clássico” sugere respeito, obriga ao comedimento, ao solene. Já o “Klássico” nos convida à luta-livre, ao antropofágico, e ao que ainda temos de ironia e delinquência. Para quem conhece os mitos e as histórias oficiais que envolvem estas personagens, é prazeroso acompanhar a apropriação irreverente e as tensões de identidade propostas pelos atores. Já para os que não tem esse conhecimento prévio, a própria luta dos atores para convencer o público de que as angústias de seus personagens são importantes já é um caminho fruitivo. Este Klássico quer se aproximar mais dos populares clássicos do futebol para profanar as pretensões apolíneas do classicismo artístico. Retira o consagrado (sacrare) do seu pedestal e o restitui ao livre uso dos homens.
UTOPIA
É sem dúvida uma palavra inerente ao pensamento do Mayombe. Sara Rojo, chilena radicada no Brasil, vivenciou com 17 anos o golpe militar de 11 de setembro (curiosa data) de 1973, que bombardeou o Palácio de La Moneda e depôs o presidente Allende, para dar lugar a 17 anos de crimes contra os direitos humanos e repressão violenta. Neste contexto, Sara alimentou sua posição política libertária, esquerdista e utópica frente ao mundo. O Mayombe é, portanto, um lugar encontrado por Sara para desenvolver e partilhar enunciações que vão além do caráter artístico ou teórico, é também um ponto de encontro de artistas e pensadores que, de certa forma, comungam de um ideal utópico, de um lugar de resistência, de um não-lugar, de um “ranço setentista” como brinca, mas com razão, a atriz do grupo Marina Viana. Em “Klássico (com K)”, é evidente a presença vital da Utopia no discurso dramatúrgico, essencial para o entendimento dos confrontos entre os atores e os personagens que defendem. A utopia é o próprio disparador do conflito central da peça, não como o sonho ingênuo de um mundo perfeito e puro, mas como uma esperança questionada diante das fraturas e fragmentações da contemporaneidade. Se para muitos, a Utopia morre com o século XX, para o Mayombe ela vive, ainda que dilacerada, mas resiste. Neste sentido, o corpo desta utopia contemporânea seja mais parecido com os auto-retratos de Egon Schiele, frágeis, convulsos. Os corpos dos personagens de Klássico também se assumem trôpegos e soluçantes, duvidosos de si, à procura de uma referência. Como diz a atriz Flávia Moreira em um de seus depoimentos: “Antígona dança calada dentro de mim e, como eu, acredita naquela luzinha do fim do túnel que o século vinte soprou”.
Inevitável se remeter ao primeiro espetáculo da trilogia, que mostra personagens perdidas definhando em seus ambientes individuais, mas que, por uma catástrofe que envolve a todos, precisam se expor e agir coletivamente – uma referência à utopia de um passado recente, que acreditou na mobilização e na cooperação coletiva em prol de uma sociedade comum, de seres mais livres, unidos e autônomos. O Mayombe abre e encerra sua tríade com a opinião de que é preciso encontrar “o buraco que a gente precisa furar pra escapar da gente mesmo e ir.”
EXPOR O FRÁGIL
Como costuma acontecer com espetáculos recém-estreados, ainda há diversas fragilidades e lacunas não intencionais. A presença de uma personagem romântico como Fausto, tão diferente dos demais, pois é totalmente díspar dos modelos gregos, é pouco explorada pela dramaturgia. A ação dramática, que mesmo fragmentada e multidimensional parece se querer dramática, pois há a perseguição de objetivos em prol de um resultado final, se perde um pouco em sua própria estrutura, caindo de forma brusca em conflitos subjetivos intimistas. O próprio engajamento dos atores na defesa de seus personagens, proposto de forma incisiva no início, é instável, o que até pode encontrar sentido ao se referir à instabilidade de nossas convicções pós-modernas, no estado líquido de nossos objetivos. Há também uma heterogeneidade nos registros de atuação e no grau de entendimento da proposta espetacular pelos atores. As dificuldades de cada um, no entanto, são expostas e utilizadas em prol da encenação, criando um discurso metalinguístico. Expor o frágil foi uma maneira encontrada pelos artistas de usar como potência o que seria uma deficiência, assim se cria mais uma camada de conflito: há o conflito do homem contemporâneo com seus modelos clássicos e há o enfrentamento dos atores com a complexidade de seus personagens. Em alguns momentos, o peso simbólico da personagem vence a atuação, que, por sua vez, se confessa aquém do que representa. Este é um mérito da dramaturgia: criar uma relação de combate e ao mesmo tempo de revelação e superação entre ator e personagem.
Obviamente, a temporada de estreia é o momento ideal para por à prova todos os elementos do espetáculo, detectar ruídos, potencializar o essencial e lapidar as arestas, o que só é possível quando o processo deixa a sala de ensaio e entra em contato com o público. Mas, mesmo em sua estreia, “Klássico (com K)” instiga o espectador e aponta diversos caminhos de envolvimento e diálogo. Para os artistas do Mayombe, este espetáculo ainda renderá ricas descobertas, e para o público, já se realiza como uma experiência sincera, sagaz, divertida e reflexiva.
Este comentário foi removido pelo autor.
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REFLEXÕES SOBRE CLÁSSICOS, PROCESSOS E PARTIDAS.
Em um final de semana deste mês de Maio, fui também assistir a “Klássico com K”, do Mayombe, grupo cujos trabalhos e trajetória eu admiro e considero de relevância para o cenário teatral de Minas Gerais.
Embora durante a peça tenha me sentido envolvida, quando cheguei em casa, alguns pensamentos em pedaços me rondavam. Compartilho.
O “K” do Klássico
Começa a peça. Somos recebidos por uma irreverente figura. Logo, entenderemos que ela será a comentadora desse jogo: referência direta aos narradores radiofônicos de partidas de futebol.
Depois, nos deparamos com mais quatro atores. Eles jogarão essa peça, cada um com seus respectivos personagens: Medéia, Antígona, Ulisses e Fausto.
Estamos prestes a vivenciar uma partida, aqui, adjetivada como “clássica”, em uma brincadeira que se refere tanto aos célebres personagens das obras em questão, quanto à tradição brasileira futebolística, em que partidas finais de grandes times são também intituladas como “um clássico”.
O tom de paródia já me chega de cara. Me agrada. Me diverte (não apenas no sentido recorrente do termo, mas também etimológico: “virar em diferentes direções”).
Penso: apesar de “Clássico” e “Klássico” possuírem a mesma sonoridade, o desvio de uma letra pode me abrir a outros caminhos. Isso faz toda a diferença.
Começa o jogo!
1 X 1
Uma outra camada logo se abre. Outra proposta de jogo na peça: o processo de desconstrução do personagem clássico até se chegar a questões pessoais do ator. Ou o inverso: a reconstrução de questões pessoais do ator até se chegar no personagem clássico.
Apesar de ser instigada por tal proposta, sinto que algo se esvai nesse percurso tracejado. Perco a ponte que vai de um a outro. Que vai do personagem ao ator. Do clássico ao pontual. Ou vice-versa.
Claro que as relações entre atualidade e obra clássica podem ser infinitas, inusitadas, abertas, brincantes… Contudo, que ainda sejam relações: que se toquem. Se dilacerem. Se acariciem.
Entretanto, tenho a impressão que, em alguns momentos da peça, o personagem clássico escolhido se faz completamente dispensável ao relato do ator. E ainda: tenho a impressão que, em alguns casos, o personagem clássico nem chegou a aparecer nessa partida, como um jogador que, minutos antes do primeiro tempo, foi substituído, mas o número da sua camisa ainda consta na seleção.
Penso: estabelecer na regra do jogo que o percurso será do personagem ao ator (ou vice-versa) não é suficiente para que essa partida realmente aconteça.
Quantas vezes nossas potentes propostas teóricas não se perpetuam em cena?
O que falta?
REFLEXÕES SOBRE CLÁSSICOS, PROCESSOS E PARTIDAS.
Em um final de semana deste mês de Maio, fui também assistir a “Klássico com K”, do Mayombe, grupo cujos trabalhos e trajetória eu admiro e considero de relevância para o cenário teatral de Minas Gerais.
Embora durante a peça tenha me sentido envolvida, quando cheguei em casa, alguns pensamentos em pedaços me rondavam. Compartilho.
O “K” do Klássico
Começa a peça. Somos recebidos por uma irreverente figura. Logo, entenderemos que ela será a comentadora desse jogo: referência direta aos narradores radiofônicos de partidas de futebol.
Depois, nos deparamos com mais quatro atores. Eles jogarão essa peça, cada um com seus respectivos personagens: Medéia, Antígona, Ulisses e Fausto.
Estamos prestes a vivenciar uma partida, aqui, adjetivada como “clássica”, em uma brincadeira que se refere tanto aos célebres personagens das obras em questão, quanto à tradição brasileira futebolística, em que partidas finais de grandes times são também intituladas como “um clássico”.
O tom de paródia já me chega de cara. Me agrada. Me diverte (não apenas no sentido recorrente do termo, mas também etimológico: “virar em diferentes direções”).
Penso: apesar de “Clássico” e “Klássico” possuírem a mesma sonoridade, o desvio de uma letra pode me abrir a outros caminhos. Isso faz toda a diferença.
Começa o jogo!
1 X 1
Uma outra camada logo se abre. Outra proposta de jogo na peça: o processo de desconstrução do personagem clássico até se chegar a questões pessoais do ator. Ou o inverso: a reconstrução de questões pessoais do ator até se chegar no personagem clássico.
Apesar de ser instigada por tal proposta, sinto que algo se esvai nesse percurso tracejado. Perco a ponte que vai de um a outro. Que vai do personagem ao ator. Do clássico ao pontual. Ou vice-versa.
Claro que as relações entre atualidade e obra clássica podem ser infinitas, inusitadas, abertas, brincantes… Contudo, que ainda sejam relações: que se toquem. Se dilacerem. Se acariciem.
Entretanto, tenho a impressão que, em alguns momentos da peça, o personagem clássico escolhido se faz completamente dispensável ao relato do ator. E ainda: tenho a impressão que, em alguns casos, o personagem clássico nem chegou a aparecer nessa partida, como um jogador que, minutos antes do primeiro tempo, foi substituído, mas o número da sua camisa ainda consta na seleção.
Penso: estabelecer na regra do jogo que o percurso será do personagem ao ator (ou vice-versa) não é suficiente para que essa partida realmente aconteça.
Quantas vezes nossas potentes propostas teóricas não se perpetuam em cena?
O que falta?
(continuação)
Sobre o porque de se escolher um clássico
Há um tempo atrás, assinei a dramaturgia de uma peça cujo mote primeiro seria “A Metamorfose”, de Kafka.
Eu me lembro que um dia já no final do processo, depois de um ensaio aberto, os atores falavam com os convidados sobre o processo de montagem. Falavam de tudo. Do treinamento desenvolvido com bastões. Das etapas desse treinamento. Das fontes para se chegar aos corpos dos personagens. Da música de fulano e beltrano na escolha da trilha. De nós nesse processo. Falavam de tudo. Só não falaram da obra do Kafka. Se esqueceram.
Naquele dia, voltei para casa triste, porque percebi que havia um equívoco no meu direcionamento enquanto dramaturga. Eu não conseguia desdobrar os motivos pelos quais havíamos escolhido aquele livro, e não outro. E me deixei levar facilmente por outros pontos do processo.
Eu não falo aqui de fidelidade à obra. Eu não falo de purismos. Eu não falo de essência. Eu não falo de integridade. Eu não falo de propriedade. Eu não sei bem do quê eu falo.
Sobre propriedades e usucapião
Eu me lembro quando, pela primeira vez, me apaixonei por poesia. Uma pessoa querida me deu Bandeira. E eu fiquei arrebatada. Sem acreditar naquilo que se abria em mim.
Eu lia.
Não era suficiente.
Eu relia.
Não bastava.
Eu queria comer aquilo.
(O que era aquilo?)
Eu queria comer aquilo.
Literalmente.
Então eu passava e repassava as palavras na boca. Falava alto.
Eu nunca tive propriedade em Bandeira. Mas eu tive um caso carnal, que sempre me retorna outro e vários quando leio Libertinagem.
Tentativa de se explicar sobre o que se fala.
Penso: eu falo daquilo que se dilata ou se deforma dentro de nós no momento em que lemos algo aparentemente tão distante: livros escritos em outro lugar em outro tempo, e ainda assim possíveis de estarem conosco.
Para os jogadores
Os meus pais sempre citam um autor moderno (que já é um clássico!) quando eu começo a choramingar minhas mazelas:
“Quem quer passar além do Bojador
tem que passar além da dor”.
Final de jogo
Volto para casa depois de assistir “Klássico com K”.
Seria injusto dizer que chego em casa sozinha.
Não chego em casa sozinha!
Há jogos. Há boa paródia. Há Marinas cujas presenças sempre me comovem. Há “eu também quero meu Deus ex-machina!!!!!”. Há uma instigante proposta. Há questões de colegas-atores que são também as minhas: o amor distante. Amigos perdidos. Violência urbana. Investir na vida acadêmica ou só fazer teatro? Receitas de comida a dois. Etc.
Mas ainda com a sensação de “bola na trave”.
Que o jogo continue!
Sinceramente,
Sara Pinheiro.
(continuação)
Sobre o porque de se escolher um clássico
Há um tempo atrás, assinei a dramaturgia de uma peça cujo mote primeiro seria “A Metamorfose”, de Kafka.
Eu me lembro que um dia já no final do processo, depois de um ensaio aberto, os atores falavam com os convidados sobre o processo de montagem. Falavam de tudo. Do treinamento desenvolvido com bastões. Das etapas desse treinamento. Das fontes para se chegar aos corpos dos personagens. Da música de fulano e beltrano na escolha da trilha. De nós nesse processo. Falavam de tudo. Só não falaram da obra do Kafka. Se esqueceram.
Naquele dia, voltei para casa triste, porque percebi que havia um equívoco no meu direcionamento enquanto dramaturga. Eu não conseguia desdobrar os motivos pelos quais havíamos escolhido aquele livro, e não outro. E me deixei levar facilmente por outros pontos do processo.
Eu não falo aqui de fidelidade à obra. Eu não falo de purismos. Eu não falo de essência. Eu não falo de integridade. Eu não falo de propriedade. Eu não sei bem do quê eu falo.
Sobre propriedades e usucapião
Eu me lembro quando, pela primeira vez, me apaixonei por poesia. Uma pessoa querida me deu Bandeira. E eu fiquei arrebatada. Sem acreditar naquilo que se abria em mim.
Eu lia.
Não era suficiente.
Eu relia.
Não bastava.
Eu queria comer aquilo.
(O que era aquilo?)
Eu queria comer aquilo.
Literalmente.
Então eu passava e repassava as palavras na boca. Falava alto.
Eu nunca tive propriedade em Bandeira. Mas eu tive um caso carnal, que sempre me retorna outro e vários quando leio Libertinagem.
Tentativa de se explicar sobre o que se fala.
Penso: eu falo daquilo que se dilata ou se deforma dentro de nós no momento em que lemos algo aparentemente tão distante: livros escritos em outro lugar em outro tempo, e ainda assim possíveis de estarem conosco.
Para os jogadores
Os meus pais sempre citam um autor moderno (que já é um clássico!) quando eu começo a choramingar minhas mazelas:
“Quem quer passar além do Bojador
tem que passar além da dor”.
Final de jogo
Volto para casa depois de assistir “Klássico com K”.
Seria injusto dizer que chego em casa sozinha.
Não chego em casa sozinha!
Há jogos. Há boa paródia. Há Marinas cujas presenças sempre me comovem. Há “eu também quero meu Deus ex-machina!!!!!”. Há uma instigante proposta. Há questões de colegas-atores que são também as minhas: o amor distante. Amigos perdidos. Violência urbana. Investir na vida acadêmica ou só fazer teatro? Receitas de comida a dois. Etc.
Mas ainda com a sensação de “bola na trave”.
Que o jogo continue!
Sinceramente,
Sara Pinheiro.