Crítica a partir do filme “Greta”, de Armando Praça.
– por Clóvis Domingos-
Fotos de divulgação do filme
Prezada Greta,
permita-me te escrever esta carta e talvez roubar um pouco da tua solidão, teu mistério, tua existência tão reclusa. É que de alguma forma você apareceu em minha vida a partir de uma obra cinematográfica brasileira. É preciso explicar: você estava ali ainda que de forma sutil, discreta e silenciosa (bem a seu modo né?), talvez observando com curiosidade e compaixão as vidas feridas de Pedro, Jean e Daniela. No poético e pungente filme de Armando Praça que traz o teu nome, você estava ali e eu vou te explicar porque:
estava ali presentificada nessas vidas destituídas de qualquer glamour e fama, essas respirações miúdas e precárias, no testemunho das horas angustiadas de gente ordinária e pobre, corpos e sexualidades dissidentes e quase ofuscadas, mas que a arte do cinema consegue iluminar. Pedro, um enfermeiro homossexual idoso que se encontra com Jean, acusado de um crime e, paralelo a eles a presença de Daniela, uma mulher trans que luta contra uma doença crônica renal. Mas eles, Greta, não desistem, querem viver apesar de. Há um momento em que Pedro diz para Jean: “eu tenho muitos sonhos para realizar”.
você estava ali neste filme que se equilibra entre delicadeza e devastação, nos desequilibrando em nossas narrativas e desejos, uma obra teatral (Greta Garbo quem Diria acabou no Irajá, de Fernando Mello) transposta para as telas e que apresenta significativos paradoxos: se trata de um filme lento com a utilização de planos e enquadramentos estáticos, mas que por outro lado revela toda a movimentação interna dos personagens em seus intensos conflitos . Praça convida a nos deter sobre essas personagens “banais” e marginalizadas, nos faz penetrar em seus tempos tão longos e exaustivos (a felicidade sempre demorada quando não adiada), habitar seus silêncios, prestar atenção em seus corpos machucados.
você estava ali porque ali era mais cinema que teatro ou talvez era uma peça filmada. Mas nesse filme não há mais o riso fácil e garantido das agruras de um gay solitário e estereotipado como sempre aconteceu nas inúmeras montagens nacionais desde os anos de 1970 (será que devido ao contexto ditatorial da época a comédia seria a única forma de tratar desse tema? Fora as proibições e perseguições da censura ao texto e ao espetáculo). Agora são tempos outros: há humanidade, respeito, a gargalhada fica adiada. Um nó na garganta e um senso de responsabilidade se efetuam e nos desafiam. Onde há fragilidade é preciso haver responsabilidade ética. De que vidas estamos aqui falando? Na reescrita do texto para as telas a perspectiva parece ter sido trazer à superfície todo o drama que estava submerso na piada deslocando o incômodo que agora muda de lugar. O modo como a câmera opera e a opção por diálogos secos e diretos confirmam isso: são camadas mais obscuras do humano que pedem uma nova relação antes impedida ou talvez mais diluída, no caso do teatro, pela onipresença da caricatura e do deboche.
você estava ali porque ali a solidão é protagonista, mas aos poucos ela se transforma em solidariedade e ainda há a força do sonho (como fantasia e possibilidade de reinvenção) para que a vida possa ser suportada. Mesmo doente Daniela canta “Bate Coração” (a animada canção eternizada pela alegria esfuziante de Elba Ramalho), ainda que num arranjo melancólico e arrastado, uma cena antológica que vem logo depois de um momento de sexo e carinho entre Pedro e Jean. Sim, muitos corações pulsam entre dor e possibilidade de amor. Pedro quer ser chamado pelo teu nome, Greta, quer ser ele, ser ela, ser você, ser muitos e muitas, além de todos os possíveis e impossíveis. Uma vida imaginada na multiplicidade.
você também estava ali porque ali bate de verdade a força de um coração e o mundo bate e abate sobre a pele de quem tem menos. O diretor Armando Praça afaga suas personagens (ainda que para isso agrida de algum jeito alguns espectadores) nesse drama tão urgente para esse nosso país cada dia mais politicamente ferido. Entre o tapa e a carícia a vida engradece e agradece.
você estava ali naqueles espaços sombrios, com pouca luminosidade e muita transgressão: espaços claustrofóbicos (espécie de grutas escuras) nos quais a vida parece encolhida, apertada, “nas gretas”, isto é, lugares restritos para a expressão das sexualidades. Daí a opção por geografias da penumbra. A direção joga aqui mais uma vez com paradoxos instigantes: o hospital, em princípio tão pudico, que seria apenas um espaço que lida com a doença, a dor e a morte, na película, resplandece como um ambiente extremamente sexualizado, colorido, vivenciado como desejo, perigo e promessa de efêmeras alegrias. Já as saunas gays são espaços de reelaboração de angústias existenciais, a percepção e confirmação da solidão nossa de cada dia, a frustração dos encontros tão esperados, a busca de se amenizar as carências afetivas. Greta, não estamos mais em Irajá, bairro da cidade do Rio de Janeiro, mas agora em Fortaleza, no Ceará, que mais se transforma em Fragilidade. Os corpos dos personagens, suas feridas expostas e iluminadas pela câmera-afeto de Praça, ganham relevo diante do estado de decomposição dos quartos e becos abafados ou das paredes sujas dos ambulatórios médicos. Entre a denúncia social do descaso da Saúde Pública há uma brecha, um buraco, uma greta a anunciar as micropolíticas desses corpos que ardem, queimam, não toleram a paz nem a norma.
você estava ali nessa solidão que deseja companhia, que anseia pela salvação através do outro, a necessidade que há num “velho peito” por qualquer sentido e motivo para ainda continuar e acreditar. Você estava ali nas histórias dos personagens cansados a pedir por mais uma nova chance: a saúde para Daniela, o encontro amoroso para Pedro e uma nova história para Jean. A ferida de Jean é visível em seu corpo (causada por um tiro), a de Pedro está na alma velha e fatigada e a de Daniela está na redenção por seu reconhecimento enquanto mulher antes da chegada da morte. O encontro é uma ferida que abre novas feridas ao mesmo tempo que cura outras. Um bater de corações pelo milagre da amizade, apesar das misérias e “porque o que se leva dessa vida, coração, é o amor que a gente tem pra dar”. Porosidades, deixar entrar e sair, se afetar, poéticas da vulnerabilidade. Greta também é uma expressão popular para designarmos a vagina, espaço de prazer, produção de vida. Esse filme fala de recomeços e possibilidades de se apaixonar. Há uma frase linda do dramaturgo mineiro Anderson Feliciano que diz assim: “é a vida me rasgando para que caiba mais mundo”.
você estava ali em algumas pessoas que abandonaram a sessão do filme por não suportarem se deparar com tamanha solidão e também vastidão, com a diversidade de desejos e escolhas, com o medo que nos visita diante do imponderável, por se ofenderem com uma obra que nos convida a habitar territórios existenciais densos, com algumas realidades mais desfavorecidas com que evitamos nos confrontar. Daniela afirma: “a felicidade nem sempre é divertida, Pedro”. Greta Garbo, quem diria, acabou dentro e perto de mim!
você estava ali naquela sala vazia e, no final da exibição do longa, éramos poucos na sala, e sem ruído saímos anônimos dali retornando para nossas vidas minúsculas, mas acompanhados por tua figura e pela atuação tão comovente e corajosa de artistas como Marco Nanini, Demick Lopes, Denise Weinberg e Gretta Sttar (será uma homenagem a você?).
você estava e esteve ali, Greta, nesse filme para poucos. Você também é para poucos. Ou somente para Pedro. Ou para quase ninguém. Greta, o filme, já saiu de cartaz aqui em Belo Horizonte, como você um dia saiu definitivamente de cena.
você talvez não estivesse ali…..