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Por Diogo Horta
Crítica a partir do espetáculo “Ficções” com Vera Holtz e direção de Rodrigo Portella assistido no dia 24 janeiro de 2024 no Sesc Palladium, em Belo Horizonte.
Uma grande explosão. A atriz de cabelos brancos entra em cena. O músico entra em cena. O ponto entra em cena. Os contrarregras entram em cena. A luz entra em cena. O som entra em cena. O Big Bang. Uma grande explosão dá início ao mundo como conhecemos hoje. Não! Uma grande explosão dá início ao mundo no qual vivemos hoje transformado, sobretudo, pelas mãos e pelas mentes de um único animal: o Homo Sapiens.
O espetáculo “Ficções”, com Vera Holtz e direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, é inspirado no livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade”, escrito pelo israelense Yuval Noah Harari, que, por sua vez, aborda como o Homo Sapiens, um animal insignificante (HARARI, 2018), se tornou o animal mais importante do planeta e as consequências desse processo para o ecossistema e todos os seres vivos.
Em cena, uma atriz é atravessada por vários personagens em uma criação vertiginosa que nos aproxima do cerne da obra do autor israelense: a capacidade do Homo Sapiens em criar e acreditar em histórias e o que estamos fazendo com o caminho que trilhamos, como espécie, ao longo dos últimos milênios.
Fotos de Flavia Canavarro
O livro de Harari, apesar de sua densidade e complexidade de informações, possui uma narrativa intensa, fluida e contínua na qual cada página constrói os argumentos da página seguinte e assim por diante. Dessa forma, se instaura um ritmo marcante e um convite para que o leitor raciocine criticamente sobre as questões apresentadas, sobretudo o poder conquistado pelo Homo Sapiens, a organização da humanidade e as questões decorrentes deste processo.
Assim também é “Ficções”. A dramaturgia e direção de Rodrigo Portella são fiéis ao livro ao extrair provocações fundamentais e instaurar um ritmo também marcante com uma narrativa que inquieta o espectador. Assim como Harari, Portella lança mão de várias informações e argumentos concatenados para puxar o longo fio da humanidade, demonstrando como os Homo Sapiens viveram e se organizaram, e também, como vivem e se organizam nos dias de hoje. O mais importante, no entanto, é que isso é feito de diversas formas e com diversas camadas na encenação, não apenas por meio do texto.
O cenário, a iluminação, a trilha sonora, o figurino e as projeções somam camadas de sentido que envolvem o público e criam imagens potentes que ressoam a todo o tempo no espectador. Destaca-se aqui o cenário que vai evoluindo ao longo da encenação com dois elementos centrais: uma grande rocha cênica e um retângulo de metal. Esses elementos vão sendo dispostos de forma a organizar diferentes imagens e fazem uma trajetória que vai da suspensão total desses objetos por cordas, no início, até finalizarem no chão e com a rocha cortada ao meio no final. Algo que antes dava a sensação de ser etéreo e distante, passa a habitar o mundo da atriz e a se relacionar diretamente com ela. A evolução do cenário talvez dê uma pista de como a peça vai se tornando mais palpável e se aproximando do espectador ao longo da sua dramaturgia, saindo do distante Homo Sapiens de milênios atrás e chegando no presente do espectador na sala do teatro.
No que diz respeito ao texto, o espetáculo é intenso, com frases e raciocínios rápidos que nos provocam de pouco a pouco, e com humor ácido, a nos atentarmos para a nossa condição humana e seu impacto ao longo do tempo no mundo. A atriz já no início informa que viverá vários personagens, apresentando gestos que usará para identificar cada um deles. O espetáculo deixa claro, desde o início, que estamos em um teatro diante das camadas de ficções a serem percorridas.
A relação do espetáculo com o livro “Sapiens” também é clara. Um dos blocos de cenas que compõem a peça, são conversas ao telefone entre uma atriz e seu marido, cujo nome também é Harari. Nessas conversas são trazidos vários pontos fundamentais do livro e chama a atenção nesses diálogos a forte presença da ironia. A ironia também é recurso presente no texto do autor israelense e ganha valor ainda maior no espetáculo, colocando o espectador em uma posição de aproximação e distanciamento, ao mesmo tempo, pronto para rir de suas próprias desgraças.
A música tem função central no espetáculo. É por meio dela e de suas características, como sonoridades, ritmos, tensões, relaxamentos e vibrações, que se organiza a encenação de Portella. Federico Puppi traz a força do som para o palco com carisma e diálogo cênico precisos, envolvendo a plateia do começo ao fim. A música é um respiro em muitos momentos, ajuda o espectador a aliviar a tensão, a contemplar e a se divertir. Mas não só. A paisagem sonora do espetáculo é tão importante para a encenação que em determinado momento ficamos apenas com ela. Sem atriz, sem músico, sem iluminação, nada… uma escuridão apenas preenchida pelo som. Ouvimos guerras, gritos, choros, comemorações, momentos históricos, Marilyn Monroe canta “Happy birthday to you” em meio a tiros e guerras. O silêncio também ecoa e diz muito.
Outro elemento fundamental é a metalinguagem. Desde o início do espetáculo Vera Holtz destaca a presença dos espectadores no teatro e até questiona os motivos que os fizeram sair de casa para estarem ali. Em outro momento questiona porque ela mesma está ali fazendo um espetáculo de teatro. Além disso, do meio para o final do espetáculo, a atriz passa a narrar e a representar supostas pessoas da plateia com suas visões e argumentos sobre o próprio espetáculo. É como se a peça tivesse provocado várias discussões na plateia e a atriz narra a discussão que houve interpretando cada um dos espectadores. Dona Vera (para usar a menção que a atriz faz de si mesma em cena) encarna, com diversos sotaques em um diálogo vertiginoso, pelo menos cinco diferentes tipos de espectadores que começam a discutir sobre o espetáculo e a obra de Harari. Em todos os momentos, mas sobretudo neste, vemos uma atriz gigante, com um texto complexo e um domínio da cena que intercala leveza e tensão dando o tom da montagem.
No seu momento mais denso, Vera ecoa as vozes de mulheres oprimidas, silenciadas e diminuídas, ao dizer, apenas, ser cada uma delas. Algo como: _Eu sou a mãe de dois filhos violentada na rua. Eu sou a liderança de povos ameaçados de extermínio! Ao elencar vários exemplos de mulheres e suas situações de violência vamos identificando casos reais. O final desse bloco denso de fala cortante se encerra com a frase: “_ E isso não é ficção!”. A plateia aplaude fervorosamente e não é difícil concluir que muitos espectadores estão emocionados. Em meio a tantas abordagens que conduzem o espectador para perceber a ficção na nossa sociedade, a dita ordem imaginada (HARARI, 2018), há um eco de dor e angústia de várias mulheres reais que se presentificam em cena.
O espetáculo dá um nó. Envolve o espectador em contradições, pois ao mesmo tempo que questiona o futuro da humanidade, nos faz rir de nós mesmos e nos mostra que essa realidade ficcional que vivemos é real, mesmo que inventada, e que não nos resta outra saída a não ser pela ficção. Nesse sentido, ao mesmo tempo que aponta a necessidade de ter esperança nas futuras gerações, os milhões de anos que nos trouxeram até aqui dão a sensação de que fizemos tudo errado até então. E ficam as perguntas: Para onde vamos? O que estamos fazendo aqui? Você está satisfeito?
Diante de um esforço milenar para dominar a agricultura, os demais seres vivos, a ciência, o ecossistema, o planeta e as tecnologias, o Homo Sapiens de hoje é questionado: Você está satisfeito? Supõe-se que a maior parte das pessoas responderia “Não” a essa pergunta. Ao propor um jogo no teatro, Vera Holtz convoca todos os espectadores a ficarem de pé e se sentarem quando estiverem de acordo com afirmações como: se você acha que trabalha pouco; se você acha que recebe um salário justo pelo seu trabalho; se você está satisfeito com o seu corpo; entre outras. O resultado é que praticamente todos permanecem em pé, comprovando a insatisfação dos Homo Sapiens ali presentes.
Segundo Harari, todo o poder e desenvolvimento do Homo Sapiens, até trouxeram, apesar de todos os conflitos e questões humanitárias ainda existentes, “algum progresso real no que concerne à condição humana, com a redução da fome, das pragas e das guerras.” (HARARI, 2018, p. 427). No entanto, o autor afirma que o Homo Sapiens continua insatisfeito e que vem dominando de tal forma determinados aspectos da vida que pode ser comparado aos deuses. Dessa forma, o autor israelense lança a questão: “Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?” (HARARI, 2018, p. 428).
Ainda sobre satisfação (ou felicidade, talvez), “Ficções” cita brevemente “Dias Felizes” de Samuel Beckett. Tal fato pode se dar, em primeiro plano, porque a própria atriz Vera Holtz já deu vida à personagem Winnie em uma montagem anterior e deve ter um carinho por essa obra de Beckett. No entanto, se analisarmos mais um pouco, a menção a “Dias Felizes” é mais que isso: é situar “Ficções” no universo beckettiano no qual o homem está no centro de uma teia complexa, à espera, imóvel, sem saber para onde ir. Não há satisfação, não são dias felizes, temos tudo e não temos nada. E agora?
Tomada pelas reflexões do próprio espetáculo, a atriz, ao final, informa ao seu marido que está indo viver como uma caçadora-coletora. Sem banho, sem trocar de roupas, sem celular, sem nada. Viverá nômade pelos restos dos dias e garantirá sua sobrevivência com a caça por conta de seus polegares opositores. A decisão, no entanto, é tão absurda que nos identificamos mais com o marido que permanecerá na casa, cuidando do filho. Apesar disso, fica latejando a pergunta: e se largarmos tudo e sairmos por aí errantes? Me lembrei das pessoas em situação de rua. Será que algumas delas já escolheram viver como caçadores-coletores?
Apesar do tom niilista, não saímos do espetáculo descrentes de tudo e sem esperanças. Se as ficções que partilhamos hoje foram criadas por Homo Sapiens, novas ficções continuarão sendo criadas, resta saber com qual intuito. O final de “Ficções” reflete sobre o tempo trazendo de algum modo a insignificância dos nossos dias se comparado com a longa história do universo. Nossa vida inteira não significaria mais que o tempo do som de uma palma na perspectiva do universo. O que faremos com isso, então? Apesar de nossa pequenez, o espetáculo aponta para a importância de nossas ações ao longo dos milênios e que o processo de renovação da nossa própria espécie não deixa de ser uma chance de mudanças futuras, mesmo que lentamente.
Por fim, é preciso dizer que, apesar de todas as questões e reflexões suscitadas, “Ficções” é uma experiência coletiva divertida e emocionante que nos atravessa e nos faz partilhar uma vivência artística singular repleta de sensações e interpretações diferentes. Ver a capacidade de criação e abstração de alguns Homo Sapiens (Vera, Felipe, Rodrigo, entre outros) nessa obra é sinal de perspicácia, responsabilidade e trabalho árduo. Isso me satisfaz. Volta a pergunta: Você está satisfeito? Da minha parte, respondo: se estou satisfeito não sei, mas tenho certeza que saí do espetáculo bem satisfeito.
FICHA TÉCNICA:
VERA HOLTZ em FICÇÕES
Inspirada a partir do livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade”, de Yuval Noah Harari
Idealizada por Felipe Heráclito Lima
Escrita e encenada por Rodrigo Portella
Performance e Trilha Sonora Original: Federico Puppi
Interlocução dramatúrgica: Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: João Pimenta
Iluminação: Paulo Medeiros
Preparação corporal: Tony Rodrigues
Preparação vocal: Jorge Maya
Programação Visual: Carlos Nunes “Cadão”
Fotos: Ale Catan
Direção de produção: Alessandra Reis
Gestão de projetos e leis de incentivo: Natália Simonete
Produção executiva: Wesley Cardozo
Administração: Cristina Leite
Produtores associados: Alessandra Reis, Felipe Heráclito Lima e Natália Simonete
Corealização em Belo Horizonte: Festival Teatro em Movimento – Rubim Produções/ Patrocínio: Rede Itaú e Instituto Unimed-BH. Assessoria de imprensa: Luz Comunicação – Jozane Faleiro.
REFERÊNCIAS:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. 38ª ed. Porto Alegre, L&PM, 2018.