— Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq —
Crítica de “Vaga Carne”, de Grace Passô.
“Cadeiras, tempos, escritos, brancos, pretos, excessos, excessos, existem, não existem, existem, existem, pato, imagens, vozes existem, matérias…” […]
“Companheiros, já invadi vários patos, patos…, tá os cães são superiores,[…] Cavalos, a crina, o rabo, são espaços lindos…”
Palavras, palavras e palavras…imagens…, palavras-imagens, imagens-palavras… Um emaranhado de palavras e de múltiplas imagens toma conta de minha cabeça e imagino que da dos espectadores também, tudo muito intrincado no meu inconsciente que tende a buscar razão para tudo…
Qual é a força de cada palavra-imagem?
Jorro de palavras, de discursos, de palavras-discursos… Sim, múltiplos discursos num corpo de uma mulher… é o que presencio em cena logo no início do espetáculo/ritual. E o que vejo – assim como eu me encontro naquele momento – são espectadores extasiados. Baco se faz ali presente no espaço da cena e o theatron – lugar de onde se vê – é preenchido por uma multiplicidade de sentimentos, sons e sentidos. Lembremos que o lugar aqui “de onde se vê” é também o lugar “de onde se sente” e é isso que Grace Passô entrega ao seu espectador, fazendo de sua plateia um público copartícipe de seu espetáculo-rito.
“Vozes vorazes pelas matérias” […]
“Eu entrei numa caixa de som que dizia que este país é justo.” […]
“Vocês se identificam com ela? Identificam ou não?” […]
“Fala”
“Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras. Vamos invadir o corpo desta mulher com palavras…”
Ocupar esta mulher com palavras. Ocupar o corpo com palavras… Frases que saem da boca, do corpo da atriz, do corpo da mulher/ -voz/ – sujeito/ – ser-essência/ – poros, e que são colocadas para o espaço de convívio do espectador, que, na arena ritualística, já se encontra entregue completamente disposto ao jogo ritualístico, como se embebecido por Dioniso-Zagreu.
“Partituras físicas” são desenhadas no e do corpo-presença da atriz, da mulher, tudo é corpo, gesto, palavras… tudo é muito mais do que isso…Nem sempre as palavras alcançam os sentidos que queremos atribuir e o rito cênico (que eu também poderia aqui nomear como instâncias do ato performativo e/ou rasuras de uma encenação pós-dramáticas, mas, definitivamente, as nomenclaturas, neste momento, não me interessam tanto) se torna mais forte que o meu olhar de espectador e/ou teórico que se habituou a assistir[participar] a[do] cena[rito] tomando notas em folhas esparsas para não perder, como se fosse possível, as impressões nos espaços recônditos da memória.
“Burro, racista, homofóbica, você é pura mídia, você é patética” […]
“Escuta esta palavra com todos os sons, escuta!” […]
As palavras-discursos tomam proporções mais abrangentes, ultrapassando a dicotomia significante x significado. Os vocábulos são ressignificados pela plateia, ganhando dimensões polifônicas, pois fica claro que não representam apenas discursos lançados ao vento e ao tempo. É evidente que os vocábulos foram e são minuciosamente escolhidos pela voz/mulher. Como bem assevera a atriz, encenadora e autora Grace Passô:
Me interessava, num primeiro momento, criar uma situação em que o que se fala e o que se age fosse vertiginosamente diferente. Um ser, uma existência que fala coisas, mas age de forma completamente diferente. O cenário da peça é um corpo de mulher e a personagem da peça é uma voz, uma voz que ela consegue invadir e mergulhar e vivenciar, experimentar qualquer matéria humana, não humana, por dentro. Existe uma trajetória desta voz, que, ao invadir esse corpo de mulher, começa a narrar esse corpo enquanto matéria, enquanto coisa, na sua concretude, enquanto matéria, os seus órgãos, o que se passa ali dentro. Mas, ao longo desta trajetória, esta voz começa a narrar o corpo enquanto construção social, o que este corpo deseja, como ele deseja ser visto, como ele lida com o julgamento do olhar do outro, ele vai entendendo a dimensão da existência e o que significa ser mulher e enquanto construção social. Na verdade, isso tudo é um pretexto para falar de nossos corpos e de como eles se relacionam, como eles se veem entre si.[1]
Logo, alguns longos e intensos minutos de silêncio. Black out e começo a sentir a respiração de corpo/presença do meu lado direito e, quando novamente o espaço é iluminado, me dou conta de que a voz se corporificou como matéria e está sentada numa cadeira que estava livre de meu lado. O espaço de convívio amplifica ainda mais para mim, pela proximidade com a atriz-mulher-corpo-voz e também pelo fato de que naquele momento todos os olhares se desviaram para a nossa direção, visto que, de uma hora para outra, querendo ou não, começava a integra a cena-rito.
Suor, poros, movimentos mínimos, pequenas partituras são ampliadas, amplificadas e ganham dimensões maiores que a gestualidade em si. As palavras-discursos vão assumindo uma narrativa que leva o espectador a vários “lugares sociais”, pois o que se vê nas cenas-rito não se trata, de forma alguma, de um discurso isento.
“Menino, menina, minini.” […]
A voz emite palavras soltas, como o exemplo acima descrito. A voz-mulher-corpo trabalha cada vocábulo num timbre diferenciado, provoca o riso e, como aspecto mais relevante neste momento, enuncia o rompimento da categoria de gênero, assim como faz em vários outros momentos com outros aspectos sociais e políticos inerentes às nossas sociedades globalizadas. Há uma ironia fina na emissão de cada registro vocal, sem dúvida um “exercício” e uma forma de brincar com as palavras, mas também um ato performativo para marcar as reflexões que, com sua poética textual dilacerante, busca acionar no corpo-voz de cada espectador para diferentes lugares de fala e vivências. Há que se evidenciar que a corporeidade da voz/atriz/mulher lhe permite brincar com as palavras, provocando na plateia reações inesperadas, do riso solto ao “engolir seco” por não saber como reagir ao corpo que se apresenta em plena potência à sua frente.
Entra um baterista (Ricardo Garcia). Sonoridades outras são trazidas à cena, incorporando novas nuanças vocálicas que são produzidas pelo corpo-mulher, a música extraída dos instrumentos de percussão se mescla com a musicalidade que é integrada, e projetada, na voz, corpo-presença, que se presenta em rito contínuo.
Grace Passô comenta sobre os aspectos criativos da construção de seu texto espetacular, bem como sobre a sua condição de artista e explicita questões pungentes em nossa contemporaneidade e que se fazem presente no seu teatro-ritual:
Em palavras mais simples, não há cenário. A luz, ela é o espaço, ela revela o espaço, o corpo, ela faz uma pintura desse espaço, desse corpo negro.
Ao mesmo tempo em que a gente vive uma barbárie assim no Brasil, eu sinto muita felicidade por estar em contato com pessoas que de fato expandem, de fato, a consciência da minha condição, o que se tem trocado, dito, lutado, refletido, e agido em relação ao racismo brasileiro, em relação ao machismo de nossa sociedade, coisas que realmente pulsam em mim hoje e me tornam uma pessoa mais viva.[2]
As palavras-vozes-discursos que, num primeiro momento, aparentemente não apresentam muito sentido para um espectador “desatento”, em nenhum momento são “ingênuas” e, à suposta “desconexão” entre gestualidade, corpo e voz, vão se somando e ganhando sentidos vários muito maiores do que a decodificação de um corpo-voz que fala, fala, fala, fala e fala… Várias identidades vão sendo trazidas para as vozes-discursos e cabe ao espectador fazer as suas reflexões.
“Se alguma coisa invadir o seu corpo que lhe peça licença.
Se alguma coisa invadir o seu corpo que lhe peça licença.
Se alguma coisa invadir o seu corpo que lhe peça licença.”
“A justiça está aqui.”
“A justiça estava aqui. Onde?”
“Eu juro que estava aqui! Onde?” […]
Há um posicionamento sociopolítico eminente que vai ganhando forma durante a vivência do rito teatral. A encenação que começa com uma voz/ um corpo/ uma mulher/ uma atriz/ uma mulher negra, diz a que veio…
“Ela é uma mulher, é negra…
Ela está aqui, diante de nós em pleno 2017…”
Vaga carne é um “vômito” de palavras, uma explosão de discursos que se manifestam no corpo desta mulher-personagem-atriz/negra. A corporeidade da mulher negra é trazida para cena, talvez da forma mais eloquente e potente nos trabalhos que já tive o privilégio de assistir desta artista mulher negra que se compromete com sua arte propondo para o seu público um rito de vivência em que este se veja no outro e desse convívio possa eclodir, de forma sutil, temas imprescindíveis que ainda devem e merecem ser intensamente discutido pelas artes cênicas como as questões identitárias, de gênero, de preconceito, de segregação…
Reiterando os lampejos de minhas “imagens-palavras”, lembremos que a artista apresenta suas várias facetas em cena, suas várias “vozes-mulheres”, cedendo o seu “corpo-voz” para vivenciá-las, mas ela não o faz e não se sente sozinha no espaço de representação pois divide com o seu público suas palavras-discursos. Em entrevistas anteriores, Grace Passô já revelou que o texto Vaga Carne é o primeiro de um projeto denominado “Grãos de Imagens”, que o mesmo foi escrito há cerca de três anos e que, em princípio, não imaginava que viria a encená-lo. A concepção, atuação e dramaturgia é sua, mas, no entanto, demonstrando seu apreço pelo trabalho em equipe, a artista divide o trabalho de criação de sua montagem com Kenia Dias, Nadja Naira, Nina Bittencourt e Ricardo Alves Jr., sendo a trilha sonora proposta por Ricardo Garcia, que tem uma participação em cena.
Em seu artigo intitulado “A poética teatral em marcos axiológicos: critérios de valoração”, Jorge Dubatti explicita que “O crítico deve aprofundar-se em sua subjetividade, que talvez seja um de seus instrumentos mais preciosos.”[3] Os dizeres de Dubatti vão ao encontro do que geralmente busco para a apreciação, análise e leitura de uma proposta espetacular, que é colocar as minhas subjetividades em diálogo com o trabalho visto. Não acredito em crítica isenta, que deixa de lado possíveis autoquestionamentos dos sujeitos implicados em prol de levantar apenas aspectos artísticos e técnicos de uma encenação. E por isso que assevero que é ciente de sua posição como artista – sujeito de seu tempo – que Grace Passô brinda o seu público com Vaga Carne, sua encenação-ritual, convidando-o a sair do theatron, no mínimo, modificado, como se espera de um rito teatral.
Referências
[1] Transcrição de gravação, publicada pela Revista Cardamono, em 2016.
[2] Idem.
[3] DUBATTI, 2014.