— por Joyce Athie —
Crítica a partir dos trabalhos apresentados na primeira noite do 17º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, realizado entre 15 e 18 de setembro de 2016, em Belo Horizonte (MG).
A pergunta-mote do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto de 2016 – “Que lugar você ocupa?” – não carrega exatamente um tema para a edição que devesse perpassar os trabalhos que ali estão sendo apresentados. Tampouco os artistas conheciam a indagação antes de se inscreverem para o evento. Mas, na primeira noite do festival, parecia que estavam todos ali querendo dar uma resposta ao questionamento posto. (In)consciente coletivo? Uma pulsão social? Uma coincidência ou obra da organização? O fato é que cada uma das quatro cenas que se apresentou na quinta-feira, dia 16, de modos específicos, trouxe reflexões sobre os espaços sociais e os modos de vida com perspectivas políticas, mesmo quando, à primeira vista, tratava-se de um tema de ordem íntima e amorosa.
O lugar de protesto estava nitidamente demarcado, o que transmitia um vívido desejo por se posicionar diante das farsas golpistas e do conservadorismo que resolveu mostrar as caras sem disfarce. Assim também, a própria casa parece querer, coerentemente, responder ao que pergunta. Nos intervalos da cena, a personagem Marta, de Cleo Magalhães, é quem ganha as luzes dos palcos em uma performance drag queen, com elementos de um cabaré divertidamente político.
Começamos a noite com “O Bug”, de Belo Horizonte, trabalho em que o fator político se refere aos modos de se relacionar, em específico, à construção de uma relação amorosa entre um homem e uma mulher, mas que, extrapolando a cena vista, refere-se aos modos de interação e trocas afetivas da atualidade. A representação de uma conversa de WhatsApp ganha humor para além do texto, já construído com diálogos carregados de comicidade, quando insere um elemento de deslocamento daquilo que já vivemos cotidianamente: são frases sendo “ditas” por seres com rosto de papelão.
Quem são eles nem é pergunta necessária de se fazer. Rimos porque nos identificamos no dia a dia de nossas formas de nos comunicar. A ironia – que cara é essa? – está na indicação de que aquele rosto quadrado, de feição única, um tremendo papelão, é o esconderijo onde hoje a maior parte de nós está, projetando e criando realidades em mundos virtuais, presentes de um ambiente que ora nos distancia, por exemplo, dos olhos nos olhos, e ora aproxima. Afinal, de máscaras postas, criamos maiores possibilidades para a revelação daquilo que somos, daquilo que almejamos ser. A esta cena inicial, aos criadores, lanço uma primeira pergunta, tola e apenas da ordem do “e se”. E se fosse posto, ao exercício da criação, representar uma conversa de WhatsApp, Messenger ou outras vias internéticas, sem balõezinhos ou frases projetadas na parede? Como seria? Desnudos das máscaras da realidade virtual, as relações entre um casal seguem o fluxo de uma convivência. Se amam e fazem coisas juntos, fazem companhia, compartilham e caminham como cúmplices quando dão ar para as individualidades, até chegar a um fim, à separação daquilo que parecia tão casado no ritmo e nas direções tomadas.
A coreografia que se instaura e ganha o espaço fala de outra forma, para além daquela projetada no tecido branco, revelando pelo corpo e pelos gestos a trajetória de uma relação de início, meio, fim e todas alegrias e angústias desse percurso. As referências cibernéticas e tecnológicas, desde o nome do espetáculo, aos ruídos e às referências à comunicação visual, assim como o fim de uma relação me leva a pensar sobre “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman, sobre a fragilidade das relações que construídos, na agilidade quase instantânea em que os laços se apertam e se desfazem. A cena me faz pensar na política dos afetos, no amor também como gesto político, das formas de se relacionar e se comunicar como frentes de resistência a modos industriais de interação social.
O que me parece, talvez, frágil, seria o esquecer das máscaras comuns que usamos cotidianamente, até nas relações íntimas. Ao criticar a cara de papelão criada para ser vestida nos ambientes virtuais, o risco é se esquecer, simbolicamente, das máscaras que nos acompanham dia a dia. Onde estamos sendo a gente? Ao fim, me resta a dúvida sobre como olhar para o que representaria na cena o seguir. Uma mera repetição de erros ou uma eterna e constante busca pelo preenchimento das angústias? Uma fuga da solidão, o caminho mais fácil ou um horizonte a ser trilhado a partir de experiências somadas?
Segundamente, teve Fora Temer! e fora reacionários. Teve grito dado ao preconceito e à ignorância que estão, vale dizer, entre nós e em nós. Antes de olhar para a cena “Auto-Curadoria: Uma Dramaturgia de Atitude”, é preciso dizer da curiosidade de ver Kayete em outro território além daquele que lhe trouxe popularidade como o rádio e os esquetes de humor. No Cenas Curtas, ao contrário, entrou em cena para falar das dores, aparentemente, a partir de um aspecto autobiográfico, de revelação daquilo que o riso pode cortinar. Vocês estão rindo de que?, pergunta provocativa. Kayete estava presente, dentro de um ringue, disposta a lutar por si e pela sobrevivência de seus pares. No ringue, disparou informações, desabafos e provocações ao público. Trouxe para a plateia a responsabilidade pelo preconceito. Os inimigos não estão distantes, não são o outro. Podem estar entre nós, nos nossos olhares, na nossa falta de atenção e no nosso excesso de egoísmo. Além das provocações que trouxe para a plateia, em especial aquela do Cenas Curtas, normalmente, já familiar à linguagem teatral e tendenciosamente aberta para a experimentação artística, Kayete trouxe uma ameaça, um gesto de violência ao público, também ele revestido de seus preconceitos.
A cadeira que seria lançada foi interrompida no movimento e me deixou uma pergunta sobre o que a impedia de seguir e levar a ameaça a cabo. A cena veio carregada de um desejo de falar de questões que lhe são próprias, sentidas no corpo. Vale ressaltar que, não desmerecendo outros trabalhos que refletem sobre as questões trans, o que se viu ali foi um sujeito falando sobre suas vivências, ocupando seu lugar de fala. Não havia representação de um sobre outro alguém. Talvez, por isso, temas tão de dentro tenham aparecido na cena como o trabalho da drag queen nos palcos e não nas casas noturnas. Vai me julgar? Ali o enfrentamento estava posto também a seus pares. Houve atitude. Outras intimidades também transpõem a cena como, por exemplo, o envelhecimento de travestis. O tema, tão comum, posto com essa ordem de intimidade e desabafo, foi, no entanto, um lembrete de que as pressões pela estética, por uma natureza jovem, pelo padrão, assola também quem se posiciona pelo desvio do que é imposto. Ainda não estamos livres.
Vale ressaltar que, no entanto, talvez por isso, a pele da primeira pessoa ganha destaque. O que está ali é uma urgência: pessoas trans estão sendo mortas. Talvez seja exatamente este lugar de fala e a necessidade de falar e ser ouvido que leve a cena a dar menos importância ao que comumente associa-se ao performativo, o corpo. Assim, a necessidade de falar, de colocar para fora, de chacoalhar e fazer gritar seja o que leva à ênfase à frase, ao dito verbalmente, ao discurso que se quer ver compreendido. Uma fala extremamente direta, sem rodeios, o lugar do depoimento, mesclada a uma ideia de intimidade e separação com o público. Interessante observar a necessidade sendo atendida pelo verbo, embora, o corpo ceda espaço para a palavra. A ordem da intimidade, a fala sobre a dor e sobre os afetos – ou da falta dele – e do grito, assim como as relações constantemente provocadas com o público levaram Kayete a um lugar de fragilidade, risco, exposição, desnudamento. E foi interessante vê-la nesse lugar. Mais do que as falas de enfrentamento e resistência, talvez esse lugar de se postar frágil seja a atitude e o nocaute da dramaturgia porque muito se fala do risco nas artes, mas quem realmente o vive sem possíveis suportes?
Em seguida veio “Ama”, também ocupando o lugar do protagonismo, da valorização da identidade negra e de um olhar para o periférico. A cena parecia ter saído de um programa popular de humor de televisão, mas daqueles roteirizados com inteligência. Levou Medeia para o morro, compondo um diálogo entre a tragédia grega e os modos e costumes despojados, mais libertos e sem papas na língua, de uma bicha da periferia. O empoderamento do homem-negro-homossexual-não-heteronormatizado da periferia constrói um cabeleireiro, consciente de suas questões, centrado em cada valor de sua cultura e da sua identidade, e que carrega no corpo a alegria como fator de resistência.
No morro, a cena revela todo modo de resistência pela permanência de uma cultura que se desenvolve no Brasil, tomando características específicas, mas que tem suas origens nas matrizes africanas. A religião, a identidade, o modo de usar o cabelo, a música e uma série de referências linguísticas e culturais são postas em cena. O interessante é que o trabalho trata do encontro e do embate de dois mundos – o morro e a elite, o preto e o branco –, sem deixar de traçar os elos e os canais de comunicação e afetação, sem perder de vista os embates e os enfrentamentos dos diferentes.
Também me interessa ver a mudança que ocorre na personagem Ginga/Medeia. Aparentemente colonizada no encontro com o mundo branco, ela retorna ao seu lugar de origem negando uma série de valores, hábitos, estéticas, crenças e gostos. O retorno à periferia, mesmo que em uma simples passagem pelo cabeleireiro amigo, parece ser como um respiro de energias e lembranças daquilo que se é e que não precisa ser mudado ou transformado por padrões colonizadores. Entre Ginga e Medeia, roda uma gira que lembra a mulher de suas raízes e seus poderes. Em tempos de boicote à umbanda e ao candomblé como representantes das crenças de matriz africana nos centros ecumênicos dos Jogos Olímpicos, falar de religião é uma pertinência.
Chegamos, por fim, ao “Cabaré Voltei – Oswald Rói Ubu”, um manifesto híbrido, sarcástico e performático em que se projetam tensões da ordem do dia. O deboche já conhecido pelos belo-horizontinos das Marinas – a Viana e a Arthuzzi – ganhou adeptos em uma conversa em que se fala a mesma língua, com os curitibanos Gabriel Machado e Ricardo Nolasco. Vieram vestidos de antropófagos shakespearianos, daquilo que fomos vomitados e daquilo que continuamos a recriar de tudo que se devora. Em um manifesto político que se respalda na atual realidade brasileira, é contundente valer-se de Oswald de Andrade para se pensar que nação é essa que estamos construindo.
A podridão do reino descrito por Shakespeare, espelhado com outras feições, nos leva a enxergar nossa política em que tudo se faz pela conquista de uma coroa e é cada golpe de se fazer pensar no que é possível a humanidade. Também de Oswald vem uma reflexão crítica pelas imagens, por corpos que se colocam em cena prontos para debochar de tudo e de todos, inclusive, de si. É como um banquete em que, de fato, se come e põe para fora uma gama de pensamentos, de posturas satíricas, de ideias abertas e inconclusas, de humor sarcástico e de uma série de modos e ferramentas usadas para desconstruir, sujar o palco, fazer cair uma ordem dada e velha.
Tudo isso posto à mesa, é melhor comer porque, se for para buscar um entendimento racional de cada prato ali servido, a comida esfria. Ainda assim, percorre-se a cena com perguntas quase inevitáveis como “de onde veio isso?”, “de onde copiou e colou isso?”, “que referência é essa”? Caminho que talvez traga novas informações se nele encontrar respostas, mas que, ao fim, se não encontrar, tudo bem. Porque a cena que tanto suor, água, pó e tinta derrama é um grito bem inteligível de mais um (até quando for necessário) “Fora Temer” para terminar a noite.