– Por Victor Guimarães
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Agora Crítica, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica a partir do espetáculo A Luta, com atuação de Amaury Lorenzo e direção de Rose Abdallah, visto em 25 de agosto no Festival Sesi em Cena, no Teatro Sesiminas.
Meia luz, um palco inteiramente nu, e um ator descalço, de calça e paletó acinzentado e regata branca. Ele caminha lenta e ordenadamente, pé ante pé. Enquanto isso, as luzes da plateia se apagam e ouvimos uma intrincada montagem musical, com fragmentos díspares que se entrelaçam, da ópera “O Guarani” à “Canção do Subdesenvolvido”, de helicópteros a gritos infantis, de melodias sertanejas a rajadas de bala. Estilhaços dos emblemas da formação do país se digladiam na trilha sonora, enquanto Amaury Lorenzo tateia com os pés a extensão do espaço esvaziado. A música cessa, o silêncio na sala está conquistado, e agora estamos a sós com esse homem, que começará a recontar a história de Canudos, baseada no terceiro livro de Os Sertões de Euclides da Cunha. Daqui em diante não haverá música, nem cenário, nem entradas e saídas de cena. Só um ator, um texto, e uma história crucial da formação do Brasil moderno contada e revivida no corpo e na voz.
Fotos de Débora Agostini
A Luta é feito de uma encruzilhada estimulante: é ao mesmo tempo minimalista ao extremo e grandiloquente em suas ambições; animado por uma prosa épica, verborrágica, e enraizado numa performance corporal intensa. A história é conhecida, e começa com uma piscadela às famosas descrições de Euclides da Cunha da terra seca do sertão, em simbiose com o elemento humano. O sertanejo nessa prosa é como as árvores da caatinga que se retorcem em busca de água, e por isso se põe de cócoras, todo torto, em posição de descanso, apenas para despertar em posição imediata de combate, quando é preciso cavalgar rápido atrás de uma rês desgarrada ou se defender de um ataque iminente. A presteza elástica do homem do sertão, tal como evocada em Os Sertões, se traduz em coreografia, e durante todo o monólogo o corpo de Amaury Lorenzo se retorce, tomba, se desfaz em espasmos, para em seguida levantar num átimo. Sua voz atinge todas as variações possíveis, do urro ao falsete, no tempo de uma frase.
Até certa altura, há um investimento primoroso na criação de trajetos para esses braços e essas pernas, em rimas imprevistas com o texto. Gestos intrincados, movimentos afeitos à dança contemporânea ou a uma espécie de espasmódica viva, sem tentativa de imitação imediata. Esse é também o tempo, no texto, da elaboração de um emaranhado mais ambíguo, já que às forças civilizatórias, ao militarismo e ao elitismo da recente República no final do século XIX não se opõe uma utopia libertadora, e sim a teocracia de Antônio Conselheiro, gerida com mão de ferro e abraçada por seus fiéis. Evita-se, num primeiro momento, um maniqueísmo fácil, que opusesse as forças malignas do Estado aos sonhos de liberdade do povo.
No entanto, quando o texto de Ivan Jaf começa a se assentar na narração das sucessivas campanhas militares para aniquilar Canudos, e na resistência dos seguidores do Conselheiro, ao passo que a performance cresce em ambição – um só homem para representar a ação de vários exércitos –, a invenção coreográfica e vocal perde em intensidade, e começamos a habitar um império da mímese ilustrativa. Narra-se uma cavalgada e cavalga-se pelo palco. Conta-se das armas de repetição das forças republicanas e imita-se os ruídos repetidos das balas. Diz-se dos gritos e gritos se seguem à descrição, numa espécie de pleonasmo cênico. Tudo se torna mais previsível, e há vários momentos em que uma épica ambiciosa cede ante um didatismo enfadonho.
A comparação entre dois lances de luz é sintomática. Num deles, durante a narração de uma das campanhas militares, três refletores cruzados projetam o corpo do ator em sombras idênticas no fundo do palco. Noutro momento, ao mencionar um sobrenome em francês de um militar de alta patente, o ator começa a cantar a Marselhesa, e as luzes de cima têm as cores da bandeira da França. Na primeira escolha, adivinha-se uma maneira sutil de multiplicar o corpo e indicar uma multidão, sugerindo ainda o encalço do ator por sua própria sombra. Na segunda, há um reforço ilustrativo de um símbolo reconhecível e cristalizado, quase como numa vinheta publicitária.
Esse também é o limite do texto, que passa a apostar em gatilhos fáceis para agradar entendidos. Interessado na prosa de Euclides da Cunha no começo, e fazendo-se boas perguntas (como narrar uma paisagem?), a partir de certa altura qualquer hora é hora para fazer uma piadinha entredentes à plateia: fala-se em tiros “da esquerda, da direita e do centrão”, menciona-se de passagem a famigerada facada no então presidenciável, e chega-se até, no melhor estilo Zorra Total, a completar com uma reboladinha a menção do nome “Bittencourt”. Nesses momentos, que passam a ser numerosos perto do fim do espetáculo, abre-se espaço para uma dramaturgia complacente, aparentemente mais inclinada a arrancar uma risada cúmplice e imediata do que a convocar a plateia a uma interrogação em comum ou a um deslocamento qualquer.
Ao final, o que resta é a lição reiterada de que, no Brasil, a ideia de civilização representada pela República esteve sempre impregnada do horror das cabeças decepadas em Canudos. Mas o próprio espetáculo tem em seu interior as forças para narrar essa repisada história de uma outra maneira, menos sequestrada pela estagnação do sentido na mímese coreográfica ou no humor indulgente. A Luta é bem mais vigoroso quando esboça uma intrincada épica do corpo, assentada na entrega memorável de um ator extraordinário. Visceral aqui não é metáfora: o espetáculo também é feito do suor que brota como corredeira do rosto de Amaury Lorenzo, da saliva que salta da boca em jorros intensos, dos rugidos que vêm das entranhas. Nessa batalha de um corpo consigo mesmo, há mais sentido do que num exército de frases lapidares.
Ficha técnica
Autor – Ivan Jaf
Direção e idealização – Rose Abdallah
Ator – Amaury Lorenzo
Direção de movimento – Amaury Lorenzo e Johayne Hildefonso
Direção de arte – Rose Abdallah
Iluminação – Ricardo Meteoro
Música original gravada – Alexandre Dacosta
Pesquisa sonora e preparação vocal – Amaury Lorenzo
Produção executiva – Marcio Netto
Direção de produção – Amaury Lorenzo, Rose Abdallah e Sandro Rabello
Realização – Abdallah Produções, Bambu Produções e Diga Sim Produções