O dramaturgo francês Joël Pommerat (Cici Olsson/Divulgação) |
Teatro íntimo
Um dos maiores destaques da cena teatral francesa, Joël Pommerat começa a ser reconhecido também no Brasil com a montagem de seu texto Esta Criança.
(*) por Daniel Antônio
No intervalo entre as apresentações duplas de seus espetáculos no Atelier Berthier, em Paris, o dramaturgo e diretor Joël Pommerat circula pelo café do teatro. Ele e seus atores conversam tranquilamente com o público. No entanto, no dia da entrevista para o Horizonte da Cena, o semblante concentrado do diretor sugere alguma impaciência. Com um sanduíche na mão, ele pergunta: “Posso comer durante a conversa? Ainda não almocei”. Era só fome, mas a cena é recorrente no cotidiano do artista, que tem um ritmo intenso de trabalho. Preço que ele paga por ser o grande destaque da cena teatral francesa.
O sucesso de Joël Pommerat na França ainda não tem a mesma força no resto do mundo. No Brasil, porém, isso começa a mudar. Graças ao diretor Marcio Abreu, um texto desse autor acaba de ser montado pela primeira vez no país. Abreu optou pela peça Esta criança para apresentar a obra de Pommerat ao público brasileiro. A montagem estreou em 2012 com atores da Cia. Brasileira, de Curitiba, e com a presença de Renata Sorrah no elenco.
O diretor carioca escolheu um método radical para se apropriar do texto de um autor que é também reconhecido como um grande encenador: “Não vi a versão original, nem mesmo em vídeo. Jamais poderia encenar tendo visto. Meus processos de criação no teatro também são dramatúrgicos em grande medida. Esta Criança me parece um texto bastante permeável na sua condensada precisão”, diz Marcio.
“Precisão” talvez seja a palavra certa para definir o trabalho de Joël Pommerat. Adepto de uma estética minimalista, quase sem cenário, a luz nos espetáculos dirigidos por ele tem a força de uma palavra bem escolhida. Em espaços quase vazios, no limite entre o real e o fantasmagórico, seus experientes atores mostram versatilidade ao interpretar os mais diferentes papéis, dos mais densos aos mais divertidos. Para Marcio Abreu, é impossível dissociar o dramaturgo do encenador : “As duas peças que tive a oportunidade de ver (Cercles/Fictionse Ma Chambre Froide) são inscrições no espaço. São escrituras potencializadoras de sentidos. São quase como literatura no espaço físico, entre as pessoas”.
O público e a crítica no Brasil parecem ter aprovado o estilo ao mesmo tempo conciso e fragmentado de Pommerat. A encenação brasileira ganhou quatro prêmios Shell: direção para Marcio Abreu, cenário para Fernando Marés, iluminação para Nadja Naira e atriz para Renata Sorrah. Representando diversos papéis, até mesmo de crianças, Sorrah encarou o texto de Pommerat como um desafio prazeroso: “A primeira vez que lemos Esta Criança, tivemos a intuição e depois a certeza de estarmos diante de um texto essencial, que possuía uma linguagem precisa, como se fossem fragmentos de alta tensão. Ficamos sentados com um nó na garganta, sabendo que teríamos que ser nós mesmos”, diz a atriz.
Cena da montagem brasileira de Esta Criança (Sandra Delgado/Divulgação) |
Autor premiado
Atualmente, Joël Pommerat é artista associado dos prestigiados Teatro Odéon, em Paris, e do Teatro Nacional da Bélgica, em Bruxelas. Além do prêmio Molière de melhor autor em 2011, outro grande momento da carreira de Pommerat foi a apresentação de três espetáculos na edição de 2006 do Festival de Avignon. Nesse que é considerado um dos maiores festivais do mundo, ele foi anunciado como grande representante de um “teatro íntimo”.
Nascido na cidade de Roanne, interior da França, ele conquistou aos poucos tal sucesso. Tímido, ou talvez apenas concentrado, fica difícil imaginar que ele tenha começado profissionalmente como ator, aos 19 anos. Mas a carreira em cima dos palcos durou pouco. Ele logo decidiu trilhar um caminho mais autoral, dedicando-se totalmente à escrita e à encenação. Em 1990, fundou a companhia Louis Brouillard e, desde então, trabalha praticamente com os mesmos atores. Essa fidelidade é um reflexo da importância que Pommerat atribui ao trabalho do ator. Apesar de esteta, o essencial da sua obra está na palavra dita pelos intérpretes.
Felizes juntos
Pommerat não esconde a felicidade com o sucesso da montagem brasileira: “Só poderia estar feliz. Na França, os diretores não montam meus textos. Estou realmente feliz”. Sentimento que ele pode dividir com a equipe brasileira. Para Renata Sorrah, o encontro com o texto francês foi transformador: “Gostaria tanto de dizer a Joël Pommerat e a seu grupo que nós também escrevemos esse texto, que nós também somos cúmplices e fazemos parte desse poema”, afirma a atriz.
A companhia Louis Brouillard encerrou em março deste ano a temporada do seu último trabalho, La Réunification des deux Corées, no Atelier Berthier, em Paris. No mesmo local, Pommerat reestreia nesta semana a peça Cendrillon. Criada em 2011, ela é uma livre adaptação do clássico “Cinderela”.
No café desse teatro, entre mordidas em seu sanduíche e brincadeiras com seus atores, Pommerat conversou com o Horizonte da Cena sobre seu processo de criação, Fernando Pessoa e a peça Esta Criança.
1) Você dividiu a peça Esta Criança em dez cenas curtas que mostram diversas situações entre pais e filhos. De alguma forma, elas afirmam uma dificuldade inerente a esse tipo de relação. Por que esse enfoque?
No início de um processo de escrita, eu nunca digo: “é isso que eu vou contar sobre as relações”. Quando escolho um tema, primeiro eu tento compreendê-lo. E é no ato da escrita que eu tento lançar luz sobre os momentos da realidade que me parecem interessantes. Como uma pedra preciosa que a gente encontra no chão e percebe ter algo de relevante. A gente não sabe exatamente o que é, mas a gente pega a pedra e a guarda. Eu não tento dizer coisas necessariamente tristes, eu tento apenas compreender a complexidade das relações, da realidade.
2) Como se dá essa busca da complexidade no seu texto e nas encenações? É algo constante na sua trajetória ?
Sim. O que um escritor pode acrescentar a um tema já conhecido é mostrar como tudo está, de alguma forma, interligado. Talvez para o público seja um pouco decepcionante perceber que o dramaturgo, em vez de simplificar a realidade, a complexifica. É disso que eu gosto. Porém, não quer dizer que eu apresente isso de forma caótica, hermética. Há um mínimo de comunicação com a plateia nos meus espetáculos. Para mim, a complexidade humana, trágica ou não, está diretamente ligada à beleza.
Cena da montagem francesa de Esta Criança (Elisabeth Carecchio/Divulgação) |
3) Mas por que falar exatamente sobre esse tema?
Foi uma encomenda. Eles me pediram pra fazer um espetáculo sobre o que significa ser pai e mãe hoje em dia. No início, não fiquei muito entusiasmado e resisti um pouco, mas acabei topando. Foi interessante trabalhar de forma tão intensa sobre um tema que eu não conhecia bem e que eu pudesse nomear. Acho que, até então, eu era um escritor relativamente abstrato, que trabalhava em cima de ideias um pouco mais soltas. Com Esta Criança, pela primeira vez o tema estava claro. E era isso que me dava medo. Eu tinha medo de cair num teatro fácil. Sem dúvida, esse trabalho modificou minha forma de escrever. Depois dele, meu texto evoluiu.
4) Em La Réunification des deux Corées o humor é muito marcante e na peça Esta Criança ele é menos presente. Qual a importância do humor nas suas criações?
Há algum tempo, comecei a perder o medo do humor. A deixá-lo mais solto. Não sei se é irreversível, mas não tenho medo de afirmar uma derrisão. Antes eu ia até o humor, mas com reservas. Porque em Esta Criança os momentos derrisórios existem, mas não são tão marcados ao ponto de as pessoas rirem muito.
5) Seu trabalho como encenador é também cheio de detalhes. Tudo faz parte de uma dramaturgia?
Sim, minha concepção é de uma escrita teatral global. O texto, a palavra, o contexto, um detalhe do figurino, a maneira de representar de cada ator. Tudo isso junto é que dá sentido. Como dissociar, por exemplo, o texto e a maneira de interpretar esse texto. Um texto pode ganhar outros significados dependendo da maneira que ele é interpretado. É nesse sentido que eu penso que a escrita para teatro é global. Escrever o texto é fazer apenas 15, 20 % do trabalho. A finalidade da escrita teatral é o espetáculo, não a publicação em livro.
Você é um grande admirador de Fernando Pessoa. De alguma forma, a escolha do autor português de trabalhar com múltiplas personalidades está presente no seu trabalho?
O livro de Fernando Pessoa que mais me impressionou é “O Livro do Desassossego”. Posso dizer que eu cresci intelectualmente e aumentei minha sensibilidade com esse livro. Além da qualidade literária, outra coisa que sempre me fascinou foi a capacidade de Pessoa de criar identidades totalmente diferentes para se exprimir poeticamente, estilisticamente e, porque não, politicamente. Penso que ele encontrou uma solução para algo que é bem difícil para um artista que é fazer escolhas e assumir um compromisso. Eu poderia tentar essa, digamos, estratégia de trabalho e, assim, liberar algumas vozes que estão presas em mim. Não sei se será interessante para os outros, mas, para mim, talvez seja.
Então, quer dizer que nos próximos espetáculos poderemos encontrar um Joël Pommerat completamente diferente?
Sim. Escolher um outro nome poderia parecer adolescente. Mas eu acho que, para ir a fundo nessa escolha, é preciso escolher uma outra identidade, sim. Mesmo que não seja em segredo.
Você falou do compromisso de Fernando Pessoa. Qual é o seu compromisso com o teatro?
Há vários. Um deles apareceu com a peça Esta Criança. Uma escrita simples, legível, com um sentido imediato. Algo realista e concreto. Outra parte de mim é mais abstrata. Meu compromisso, atualmente, é privilegiar essa parte mais inteligível da minha sensibilidade. Porque o meu outro lado, ele acaba quase amedrontando os outros. Ele estabelece uma relação menos direta com o espectador.
Você costuma dividir suas peças em cenas bem curtas, nem sempre diretamente interligadas. Porque esse gosto pela concisão e pela fragmentação ?
É uma questão muito importante para mim. É uma escolha, antes de tudo, egoísta. Eu necessitava e tinha um desejo de escolher essa forma. É claro que uma narrativa longa é interessante para tentar aprofundar, mas há algo de interessante na concisão, de focar em um lugar, um tema, uma questão ou uma estética preestabelecida. É um modo também de experimentar, fazer uma espécie de laboratório. Quando comecei a montar La Réunification des deux Corées, eu disse para mim mesmo: “vou explorar e fazer laboratórios e isso vai me servir para as peças seguintes”. Mas eu reconheço que essa escrita, simples e próxima da vida real, talvez esteja no fim para mim. Estou me questionando atualmente. Não sei se estou experimentando coisas que irão me servir depois ou se eu estou indo até o limite para depois mudar totalmente.
(*) Daniel Antônio é jornalista, escritor e mestre em Literatura e Cinema pela Universidade de Paris-Sorbonne.
Daniel, Soraya, Luciana!
Muito bom ver essa entrevista publicada aqui, nesse espaço de potência.
Um abraço forte!
Marcio Abreu.
Daniel, Soraya, Luciana!
Muito bom ver essa entrevista publicada aqui, nesse espaço de potência.
Um abraço forte!
Marcio Abreu.
Obrigada pelo carinho, Marcio.
Beijo grande!
Soraya
Obrigada pelo carinho, Marcio.
Beijo grande!
Soraya