– por Julia Guimarães –
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica do espetáculo “Macbeth 22”, visto durante a temporada de estreia na Funarte-MG, no dia 05 de fevereiro de 2023, em Belo Horizonte.
Desde que assisti, no FIT-BH 2006, à inesquecível encenação de “Ensaio.Hamlet” – da carioca Cia. dos Atores –, percebi que o jogo de entrar e sair da ficção poderia funcionar como dispositivo poderoso para aproximar o público de uma obra aparentemente distante de seu próprio universo. Na montagem, a peça de Shakespeare era levada à cena, como o próprio nome diz, sob a estética processual de um ensaio.
Em “Macbeth 22”, criação de Mariana Muniz e Maurílio Rocha, existe uma aposta semelhante, no que se refere ao desejo de trazer a tragédia shakespeariana para mais perto dos espectadores. Em um cenário minimalista, que alude sutilmente à floresta andarilha do texto original, Mariana Muniz explora o diálogo direto com a plateia como modo de fazer do teatro um gesto de aproximação.
Foto: Guto Muniz
Na dramaturgia do espetáculo, criada por Muniz em parceria com David Maurity, a conversa com “Macbeth” é tecida sob a forma de um livre comentário. Por exemplo, ao contextualizar e justificar para o público certas escolhas da montagem, ao narrar passagens da trama no lugar de encená-las, ao criticar a peça original, ou, ainda, ao aludir a memórias de infância. Trata-se de um diálogo que se assemelha, em alguma medida, a princípios relacionados ao gênero do ensaio.
Para Lehmann[1], o chamado “ensaio cênico” seria definido como uma espécie de “reflexão pública sobre determinados temas”. O que Mariana Muniz faz no palco, com o uso de uma atuação extremamente empática e que valoriza sobremaneira as palavras ditas, é justamente compartilhar suas inquietações diante da peça que ela simultaneamente encena. A liberdade de aproximar “Macbeth” a outras produções artísticas – como as canções “Help”, dos Beatles ou “Vampiro”, de Caetano Veloso, executadas ao vivo pelo músico Maurílio Rocha – deixa entrever as escolhas afetivas dos criadores em seu olhar sobre a tragédia do dramaturgo inglês. Aliás, também vinculado a essa estratégia de aproximação, o convite proposto aos espectadores, durante o prólogo, para que imaginem juntos a história a ser contada, embora seja recurso recorrente no teatro contemporâneo, não deixa de funcionar como a construção de um significativo elo convivial entre palco e plateia.
Os comentários presentes na dramaturgia ajudam, ainda, a produzir camadas de mediação diante da obra. Trata-se de um enquadramento que permite, por exemplo, que a atriz interrompa um monólogo da emblemática personagem Lady Macbeth para sublinhar concepções problemáticas acerca do gênero feminino no teatro de Shakespeare; ou, ainda, que ela possa refletir criticamente sobre a visão redutora do autor em relação às personagens mulheres de suas tramas, constantemente vinculadas a dois grandes protótipos: o da bruxa e o da virgem.
É essa liberdade para dessacralizar tanto a tragédia de Macbeth quanto o legado do dramaturgo inglês – muitas vezes cultuado na crítica literária como semideus – o aspecto que mais colabora para fazer “Macbeth 22” ressoar em plateias atuais. Também em semelhança com “Ensaio.Hamlet”, o diálogo com a cultura pop materializa essa livre aproximação, seja ao vestir rei e rainha com coroas promocionais de uma famosa marca de hambúrguer (e, assim, evidenciar o aspecto de banalidade associado à tirania) ou ao invocar a wikipédia a fim de comentar, sob a forma de um hiperlink cênico[2], a importância do reinado de Elizabeth I para se compreender as contradições existentes entre gênero e poder em diferentes épocas.
Foto: Guto Muniz
Ao ressaltar, em algumas passagens, qual é o corpo que vai narrar a história de Macbeth – não um corpo neutralizado em suas características biossociais, mas o corpo de uma mulher branca – Muniz também alude a algumas de suas escolhas cênicas. Se a problematização acerca das questões de gênero surge como fator importante para atualizar a obra em sua versão 2.2, as provocações levantadas no prólogo acerca da relação entre branquitude, poder e tirania acabam não tendo reverberação no decorrer do espetáculo.
Esse é um aspecto que poderia projetar complexidade sobre as aproximações entre o texto original e a política contemporânea. Como o próprio título sugere, uma das apostas da releitura é a tentativa de pensar o Brasil de 2022 e, portanto, o Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro. Trata-se de um paralelo que encontra ecos em reflexões públicas recentes, como a do professor de literatura João Cezar de Castro Rocha, em artigo[3] no qual comparou o ex-presidente a três personagens tirânicos de Shakespeare – Ricardo 3º, Saturnino e Macbeth.
Foto: Guto Muniz
De fato, a presença em cena de um governante que não mede esforços nem reconhece limites para se perpetuar no poder possui semelhanças evidentes com a realidade brasileira recente. Trata-se de uma constatação amplamente disseminada, mas que não surge acompanhada de um exame sobre o lugar da culpa nesse possível paralelo e tampouco provoca a plateia a repensar sua própria posição em contextos de poder concebidos de forma mais sistêmica e menos personalizada (tal como ocorria, por exemplo, no espetáculo “A floresta que anda”, uma livre adaptação de “Macbeth” dirigida por Christiane Jatahy na década passada).
A respeito dessa aproximação com o Brasil contemporâneo, são também os momentos de partilha íntima – como a hesitação entre contar ou não essa história ou o relato sobre os gatilhos detonadores do processo de criação – que estabelecem alguns dos elos mais interessantes entre a macro e a micro-história. Neste gesto de aproximação, a trilha sonora executada ao vivo por Maurílio Rocha, somada à cumplicidade entre músico e atriz em uma sutil contracena trazem um viés performativo que ajuda a manter forte a conexão com a plateia. Após alguns anos de suspensão do teatro presencial, nada melhor retomá-lo com ênfase em aspectos que apenas a copresença pode proporcionar.
[1] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[2] Viabilizado pelo uso de um projetor em cena com ilustrações associadas ao histórico do reinado de Elizabeth I.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/tiranos-de-shakespeare-explicam-golpismo-de-bolsonaro.shtml