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Crítica do espetáculo “Casa”, visto durante a temporada de estreia, na Fazendinha Dona Izabel, em julho de 2023, em Belo Horizonte.
– Por Julia Guimarães –
Haveria muitas formas de iniciar uma reflexão sobre o espetáculo “Casa”, criação mais recente da Zula Cia. de Teatro (BH). Eu poderia trazer como ponto de partida o questionamento feito pela atriz e dramaturga da montagem, Talita Braga, sobre a legitimidade de se levar histórias autobiográficas para o teatro. Poderia dialogar com um dos temas da criação – a pandemia da Covid-19 – e refletir sobre como essa experiência-limite ecoa na dramaturgia, nas escolhas estéticas e espaciais da obra. Poderia aprofundar-me nas questões de gênero e na qualidade da partilha íntima construída pelas atrizes com o público. Ou, ainda, pensar nas perguntas e convites feitos a nós, espectadora(e)s, a cada cena assistida.
De fato, o novo trabalho da Zula. Cia. permite muitas entradas, acena para muitas possibilidades de diálogo. É provável inclusive que alguns dos eixos citados reapareçam no decorrer deste texto, dada a relevância de cada um deles para a criação. No entanto, opto por iniciar esta crítica abordando um aspecto aparentemente periférico, mas que afetou consideravelmente meu contato com a obra. Trata-se da relação entre a estrutura temporal do espetáculo e a qualidade da experiência propiciada por ela.
Realizados simultaneamente, os cinco solos das atrizes-criadoras Andréia Quaresma, Gláucia Vandeveld, Kelly Crifer, Mariana Maioline e Talita Braga só podem ser vistos em sua totalidade se a plateia se dispuser a assisti-los em cinco diferentes apresentações. Certamente, muitas pessoas optam por ver apenas um deles, o que não deixa de ser uma fruição possível. No entanto, a considerar a experiência de ter assistido a três diferentes cenas (respectivamente, a da Talita Braga, da Kelly Crifer e a da Mariana Maioline) durante a temporada de estreia (que contou com apenas 8 apresentações), me parece que o convite existente nas entrelinhas da proposta é o de habitarmos um pouco mais demoradamente aquele espaço e aquela criação. Um convite a uma experiência cênica de temporalidade dilatada.
Como o próprio título sugere, o local escolhido para a montagem não é um teatro e, sim, uma casa. Na temporada de estreia, o espaço que abrigou os monólogos foi um casarão histórico, a Fazendinha Dona Izabel. Trata-se de um imóvel construído há mais de cem anos, situado aos pés do Aglomerado Santa Lúcia/Morro do Papagaio, que acaba de ser reformado pela prefeitura e atualmente é gerido por integrantes do coletivo Casa do Beco.
Em diálogo com uma poética cara às vertentes da arte contextual, a dramaturgia do espetáculo incorpora um pouco da rica história do imóvel que alojou a temporada de estreia. O “prólogo” da montagem fica a cargo de uma moradora da região, Flávia Regina Rocha da Silva, filha da derradeira proprietária do casarão, a Dona Izabel. Além de relatar a luta da mãe pela preservação do patrimônio histórico, Flávia nos conta, da varanda de sua antiga casa, alguns dos dramas familiares vividos ali, histórias que a conectam às cenas que virão a seguir.
Fotos de André Veloso
Um pouco antes de o espetáculo começar, a plateia pode escolher o monólogo a que irá assistir naquela noite, ou ainda, ser escolhida pelas atrizes para acompanhá-las em seus solos. Cada relato autobiográfico ocorre em um ou mais cômodos da casa – entre copa, cozinha, varanda, quartos e quintal. De certa forma, a possibilidade de experimentar diferentes cenas a cada temporada funciona também como uma espécie de dramaturgia de colagem, na qual cada espectador tem certa liberdade para fazer sua própria combinação. No decorrer das duas semanas, senti que, a cada retorno ao casarão, ocorria um aprofundamento nas sutilezas do convívio experienciado ali. Quanto mais o espaço se tornava familiar, maior a abertura para aquela experiência.
Além disso, a estreia de “Casa” coincidiu com o dia da difícil despedida do diretor Zé Celso, do Teatro Oficina (SP), falecido em 6 de julho. Impossível estar na Barragem Santa Lúcia sem me lembrar do extraordinário acontecimento que foi a instalação do projeto Dionisíacas, do diretor paulista, no campo esportivo logo ali em frente, há mais de uma década, em 2010. Tal como na obra da Zula Cia., embora envolvidos por propostas estéticas muito distintas, o convite feito ao público no projeto do Oficina era também o da imersão temporal pelos quatros extensos espetáculos apresentados durante a caravana, que juntos somavam mais de uma dezena de horas de habitação teatral compartilhada. No caso do Oficina, a subversão da temporalidade habitual de uma apresentação filiava-se ao desejo de resgatar certa dimensão ritualística relacionada, no limite, à própria origem do teatro. Já na criação da Zula Cia., o aspecto ritual (pensado como processo de fusão entre a vida e a arte) parece dizer respeito aos entrelaçamentos entre íntimo e público, casa e teatro, arte e biografia.
Medos, lutos e sobrevivências
O entrelaçamento entre a valorização do cotidiano, a elaboração do trauma e o convite à uma relação mais íntima e cúmplice com o público esteve presente nas três cenas que acompanhei durante a temporada de estreia de “Casa”. Em todas elas, a performance cênica se assemelhava, em algum momento, a um gesto de cura, no qual a participação do público relacionava-se a uma assimilação poética de episódios delicados.
“Eu vou reviver os mortos. Cada um de vocês podem escrever aqui nesses corpos os nomes de pessoas que vocês perderam e que sentem saudades”. Na cena de Kelly Crifer, somos convidadas a ritualizar nossas perdas. Com fósforo na mão, realizamos uma queima coletiva dos papéis com nomes das pessoas que perdemos. Enquanto nos conta sobre sua infância na roça, em um povoado no Vale do Jequitinhonha, Kelly relembra algumas perdas de parentes queridos e da memória que guarda deles. Nessa cena, a descrição de um cotidiano muito distante daquele comum à experiência de quem mora na cidade projeta um imaginário repleto de alteridades, uma paisagem poética semelhante, por exemplo, àquela presente na literatura de Guimarães Rosa.
Em um dado momento, somos convidados a tirar os sapatos e a afundar os pés na terra, disposta em bacias. Kelly nos conta sobre alguns dos costumes de sua região, como o do pai, que gostava de construir apitos para imitar som de passarinho, ou o pedido “pra dar o porto”, que consistia em solicitar ajuda para finalizar a travessia de um ponto a outro da comunidade a bordo de uma canoa, transporte comum na região.
Em um dado momento, já no quintal da casa, a atriz corta cana e nos oferece pedaços para chupar, após ter relatado o trágico episódio de afogamento de um primo, até hoje encarado como tabu na família. Enquanto corta cana, Kelly nos apresenta uma metáfora que traduz poeticamente a necessidade de recomeço como elaboração do trauma. “Pra plantar cana, tem que tirar um pedaço com um nó no meio. É desse nó que vai sair o broto. É desse nó que vai sair o broto”.
Assim como ocorre nessa passagem, a dramaturgia de “Casa” funciona ao modo de uma tessitura cênica do mundo que rodeia as atrizes. Metáforas, perguntas, livres associações, imagens-sínteses e até mesmo formas de relação com o público são recursos que colaboram para projetar sentido e densidade poética aos relatos propostos. Na cena da atriz Mariana Maioline, é a reflexão sobre o ato de sobreviver que surge costurada por diferentes contextos, como o do livro sobre atletas de um time uruguaio de rugby que sobreviveram à queda de um avião nos Andes ou à nossa própria sobrevivência diante da pandemia da Covid-19, passando pela distribuição de um inesperado kit de sobrevivência à plateia, cujos objetos ali inseridos eram, por vezes, solicitados a fim de ajudar a atriz a construir sua narrativa.
Se inicialmente o espaço do monólogo de Mariana explora uma relação frontal com o público (semelhante a uma sala de aula ou mesmo a um teatro tradicional), a atriz nos pede, em um dado momento, para encontrarmos outra maneira – mais íntima e menos distanciada – de nos posicionarmos naquele ambiente. Com a ajuda de esteiras, mantas e almofadas, construímos um espaço que passa a assemelhar-se bem mais a um quarto, de onde ouvimos as histórias da atriz.
Esse convite a uma participação mais cúmplice e confidente se desdobra em uma das cenas mais bonitas de seu monólogo. Nela, a atriz nos pede para ajudá-la a construir um imaginário sobre quem teria sido o seu pai – que morava em outra cidade e faleceu por suicídio durante a infância de Mariana. Tal como na cena de Kelly, aqui também a plateia participa de uma espécie de ritualização poética da ausência.
Assim como ocorre em “Banho de Sol” – espetáculo anterior da companhia –, o convite à participação pode ser pensado como um chamado à empatia. Em alguns momentos, somos instigadas inclusive a partilhar nossas próprias dores e fragilidades com os demais presentes. “Alguém gostaria de dizer sobre uma pessoa querida que partiu? O que ficou de inspiração dessa pessoa em você?”, nos indaga Kelly, após rememorar a pessoa “insuportavelmente feliz” que era o seu tio Deci. “Você tem medo de que?”, pergunta Talita, em sua cena.
Ainda que nem sempre as perguntas sejam de imediato respondidas pelo público – possivelmente pela sua densidade e demanda por exposição – elas funcionam, na dramaturgia, como fragmentos a ecoar para além do próprio espetáculo. Tanto é que são retomadas na cena final da montagem, com todas as atrizes presentes, no terraço do casarão.
A indagação sobre o medo, proferida por Talita, é um dos motes para o seu solo. Nele, são listados os medos diversos que a atriz vivencia em seu cotidiano, como o medo de altura, de ter filho, de enlouquecer, de entrar em cena, dentre outros, intensificados, como nos conta, de modo radical durante a pandemia. Essa reflexão surge contrastada pela ação de cozinhar, descrita pela atriz como uma forma encontrada para vivenciar momentos de descanso, silêncio ou mesmo de controle. Enquanto a vemos preparar uma sopa na cozinha, passamos a conhecer, por meio de livres associações, episódios distintos da biografia de Talita. A canalização da raiva, por exemplo, é traduzida pelo gesto de arremessar, seja no contexto de um jogo de handebol, como resposta a um assédio sexual, ou ainda, pela ação, realizada em cena por Talita, de arremessar uma massa de pão na parede.
Assim como ocorria no primeiro espetáculo da companhia – “As Rosas no Jardim de Zula” –, a narrativa sobre sua mãe, Rosângela, que saiu de casa quando a atriz tinha 6 anos, é retomada em seu novo monólogo, porém sob uma perspectiva distinta. Se no trabalho inaugural do grupo a história de Rosângela – que viveu na rua e se prostituiu após deixar o lar, marido e filhos – de algum modo colaborava para desidealizar e desmistificar a figura da “Mãe”, no novo espetáculo da Zula, o foco parece recair sobre os sintomas e efeitos em Talita relacionados à atitude de Rosângela. “Desculpa gente, eu não sei seu eu já falei isso aqui (…) mas é que às vezes parece que é preciso repetir, repetir, repetir, até não precisar mais. ‘Repetir, repetir, até ficar diferente’”, comenta Talita em seu solo, o que pode ser lido tanto como transformação no próprio modo de enxergar sua biografia, como também uma alusão ao ato psicanalítico, no qual a repetição é vista como parte do processo de elaboração do trauma.
Logo no começo de sua cena, Talita traz um questionamento relacionado não exatamente à sua história de vida, mas à decisão em si de conceber o teatro como espaço para esse tipo de partilha. No intuito de refutar a afirmação, a atriz nos conta que “pra quem é do teatro”, levar a própria vida para a cena costuma ser visto como “coisa de gente egoica”.
Embora traga a problematização em tom de brincadeira, o questionamento de Talita de fato ecoa uma polêmica recorrente na recepção desse tipo de obra. Entre as críticas mais frequentes aos imbricamentos entre o teatral e o biográfico, há pelo menos dois argumentos que surgem reiteradamente nesse tipo de discussão. Um deles propõe que o teatro autobiográfico poderia ser lido como desdobramento na arte da mesma hiperexposição de si presente em reality shows ou nas redes sociais, vistos indiscriminadamente como “sintomas” de uma sociedade narcisista, autocentrada e individualista. Por outro lado, há quem critique as autobiografias contemporâneas justamente por enxergar nelas certa familiaridade a vertentes dramatúrgicas tradicionais e conservadoras, como aquelas associadas à estética de certos dramas realistas burgueses, no que se refere a seus conflitos psicológicos, efeitos catárticos, ao foco na esfera privada e na lógica da família patriarcal.
A meu ver, o que dissocia o espetáculo “Casa” das perspectivas citadas acima é justamente o entrelaçamento entre ética e poética presente nas entrelinhas das formas de relação com o espectador. Nesse sentido, a qualidade do convívio com a plateia parece ser o aspecto mais significativo a operar subversões no modo como o íntimo se torna público nesse tipo de teatro. Aspecto que, por sua vez, filia-se a certa tradição crítica relacionada ao próprio feminismo, sintetizada por uma de suas máximas mais populares e atuais, a de que “o pessoal é político”.
Assim, é o convite à permanência, às subversões temporais e ao ato de habitar a cena, presente na nova montagem da Zula Cia., o elemento que melhor concretiza a linha de continuidade entre fruição e experiência, entre teatro e ritual. No limite, são poéticas que apostam no teatro como dispositivo poderoso para o enriquecimento da subjetividade, seja ela pessoal ou coletiva.
FICHA TÉCNICA
REALIZAÇÃO: Zula Cia. de Teatro
CRIAÇÃO, TEXTOS E DIREÇÃO: Andréia Quaresma, Gláucia Vandeveld, Kelly Crifer, Mariana Maioline e Talita Braga
DRAMATURGIA: Talita Braga
ILUMINAÇÃO: Cristiano Araújo
TRILHA SONORA E AUDIOVISUAL: André Veloso
CENÁRIO E FIGURINO: Alexandre Tavera
DIREÇÃO MUSICAL E PREPARAÇÃO VOCAL: Iaiá Drumond
DIREÇÃO E DRAMATURGIA DE MOVIMENTO: Lívia Espírito Santo
DESIGN: Alexandre Tavera
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Alexandre Tavera
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Soraya Belusi e Cristina Sanchez
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL: Flávia Regina Rocha da Silva
FOTO: André Veloso