Por Soraya Belusi (*)
“A flor é sempre bonita. Vamos dançar a beleza da flor”, foi a primeira frase que ouvi quando desci as rampas do Cine-Teatro Vila Rica, em Ouro Preto, naquela manhã de quarta-feira, enquanto, do lado de fora, a cidade histórica vivia mais um dia comum, com as pessoas subindo e descendo as ladeiras de pedra-sabão como se o cotidiano seguisse de maneira ordinária. Mas era um dia especial para as mais de cem pessoas que se reuniam dentro do centro cultural, que estavam ali para ver, ouvir, sentir de perto a presença de Yoshito Ohno, que trabalhou com os criadores do butoh, Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, do qual também é filho.
Fotos Gabriel Machado/Divulgação |
A frase que Yoshito usou para iniciar sua oficina com cerca de 25 atores-dançarinos era sempre falada por seu pai, explicou o mestre da arte que combina elementos da tradição milenar japonesa com referências das artes cênicas ocidentais, principalmente as vanguardas europeias da segunda metade do século XX. “Depois de dançar a flor, nós nos tornamos a flor”, dizia ele, enquanto se deslocava pelo espaço com uma rosa nas mãos.
A cada ensinamento, Yoshito se demonstrava um contador de histórias. Lembrava detalhes da criação de “Kinjiki”, espetáculo que inaugura o butoh em 1959, explicava como Hijikata e Ohno sentiram a dor da guerra e de como o frio e a fome foram importantes para o desenvolvimento de um vocabulário de movimentos na arte que criaram; comentou sobre a presença constante das idéias de oposição e de transformação permanente na prática do butoh.
“O homem não muda, mas a civilização muda. Há coisas que mudam, e outras que não mudam. Juntas, elas criam a arte. É sobre isso que se trata o butoh”, sintetizava. “Alguém uma vez disse que o butoh é uma dança sobre as costas. No Japão, quando se olha para a pessoa, olha-se também para as costas dela e assim se conhece sua personalidade. Quando é uma pessoa boa, as costas têm uma luminosidade”, conta ele. “Uma flor, é verdade, não tem frente ou atrás. A flor é também um corpo que nasce para o sol, cresce rumo a ele, mas se encaminha simultaneamente para a escuridão. Há luz na escuridão. Você pode sentir esse conflito de opostos”.
Ao longo da oficina, ficava cada vez mais claro que Yoshito não pretendia ensinar butoh exatamente, mas, sim, compartilhar sua vivência, suas histórias, um ponto de vista sobre a vida e a arte, e, principalmente, de como, para o butoh, essas duas realidades andam sempre conectadas. Trabalhou sobre a importância de se relacionar com o espaço, saber como ele é, o que ele quer. “E, então, o espaço irá convidar você para trabalhar com ele. Aí então você estará pronto para começar a sua dança”, dizia aos alunos-artistas. Um dos mistérios do Japão, segundo ele, é a relação com o tempo. Tudo sempre dito através da metáfora, demonstrado com imagens poéticas. “É possível sentir o tempo. Caminhem como se estivessem caminhando há 2.000 anos. Andando pela cidade, eu me senti com mais de 300 anos, como se pertencesse àquela época da fundação de Ouro Preto”, comparava.
Enquanto manipula e oferece aos participantes da oficina elementos para trabaçhar no espaço como flor de papel de origami e pedaços de seda, mostra uma tela de Dali e sonata de Beethoven para tocar, continua a dizer: “agora vocês têm olhos suaves. Os olhos são muito importantes. Uma das ideias do butoh é criar algo fora com algo que vem de dentro. As mãos de Kazuo Ohno na dança são como flores, são lindas, mas também têm espinhos”.
A passagem de Yoshito Ohno pela cidade histórica mineira fez parte da programação do Simpósio Corpolítico – Corpo e Política nas Artes da Presença, realizado pela UFOP, que incluiu ainda uma apresentação em Tiradentes. A participação do japonês teve o apoio da Prefeitura de Ouro Preto e do Sesc de São Paulo, onde o artista também se apresentou. Yoshito Ohno ficou em Ouro Preto por dois dias. Durante esse período, ele participou de uma oficina, uma mesa de debates e apresentou o espetáculo “Wind of Time”. Em cada momento, surpreendia com sua capacidade de falar com o corpo e de demonstrar humildade diante de tantos admiradores. O auge foi, ao fim da oficina, convidar os alunos para se apresentarem com ele, no dia seguinte, na Casa da Ópera. Antes de ir embora, porém, agradece a cada elemento que esteve presente naquela manhã de quarta-feira no Cine-Teatro Vila Rica: não só as pessoas, mas a parede, o chão, o espaço…
No dia seguinte, a Casa da Ópera completamente tomada para assistir à encenação. Yoshito surge em cena em trajes femininos, a face pintada de branco, deslocando-se de forma quase a flutuar pelo espaço vazio. Entre uma entrada e outra do mestre japonês em cena, os participantes da oficina faziam no palco aquilo que vivenciaram no dia anterior: a flor, o papel, a seda, a dança da lua.
O butoh, como uma vez me disse em entrevista o diretor Antunes Filho, completa-se nos olhos e no coração de quem vê. Os gestos, os ritmos, os símbolos são elaborados de forma a permitir que cada espectador se relacione com eles de forma particular. Há delicadeza e terror, há força e sofrimento, esperança e temor. Emblemática, diria eu, a cena final em que Yoshito, em uma cena singela e humorada, dança seu amor pela morte ao som dos versos e da voz de Elvis Presley em “Can’t Help Falling in Love with You”.
(*) A jornalista viajou a convite do evento.