Um ensaio crítico-poético a partir das obras Curadoria de Any Luz Correa Orozco e Breviário de Aparecências e Quimeras de Andrezza Alves, ambas apresentadas no laboratório criativo “Museu, Teatro e História” da Complexo Sul 2020.
– por Clóvis Domingos –
“Não tenho medo porque sou mulher e carrego a dor por dentro”
(Nada. Lido Pimienta)
Imagem de arquivo
Hoje amanheci doendo. Mais um dia. A vida dói. Dói de tanta aspereza e ao mesmo tempo de tanta beleza.
Viver é estar exposto e desprotegido perante a lâmina do susto e do imponderável. Corta. Fere. Cicatriza.
Busquei então refúgio em minhas últimas escritas: notas soltas dentro de um velho caderno. Deparei-me com alguns rabiscos e anotações imprecisas feitas enquanto assistia a dois trabalhos criados no laboratório “Museu, Teatro, História”, conduzido por Daniele Avila Small durante as atividades oferecidas pela Complexo Sul.
Curadoria e Breviário de Aparecências e Quimeras se utilizam da linguagem da palestra-performance e ativam infinitos modos de produzir e embaralhar essas duas expressões: a conferência como fala pública e na maioria das vezes compreendida em sua dimensão apenas acadêmica e a arte da performance como gesto criativo e disruptivo. Num jogo de complexidades, uma palestra-performance pode colocar em movimento e processualidade diversos saberes, inclusive assumindo lugares de não saber, gerando assim curtos-circuitos que abrem fendas e lacunas capazes de ventilar tanto a prática artística como os saberes científicos numa vigorosa construção de pensamento crítico.
Uma palestra-performance seria então a gestação de dramaturgias responsivas através da experimentação e descoberta de epistemologias singulares, isto é, um conhecimento que se adquire no próprio ato de fazer, se compartilhar, inclusive expondo seus procedimentos, as fontes pesquisadas, as dúvidas, os acasos, as perguntas que permanecem sem resposta. O que poderia nascer a partir do encontro e confronto entre pesquisa e fabulação?
(Uma pausa: meu corpo dói.
Tristeza e angústia em mim.
O Brasil inteiro dói com essa mortandade
Essa orfandade
Esse desamparo sem fim…)
Curadoria: uma poética latejante
Em Curadoria de Any Luz Correa Orozco temos uma Encenação da Dor. A artista reúne vozes femininas latino-americanas, a dor causada pela fibromialgia (sua experiência pessoal e de outras mulheres), os destroços de inúmeras vidas assoladas pelo racismo e pela xenofobia. Curadoria junta referências, teatralidades e iconografias históricas e sociais (As Mães de Maio são lembradas) para tratar das aflições e padecimentos crônicos da Humanidade. Denuncia a impossibilidade de se falar de dor e doença numa sociedade e cultura que interditam e negam qualquer discurso ou vivência que ameaça a ideologia e o imperativo da felicidade. Como se disponibilizar para acolher o sofrimento dos outros?
A força dessa videoconferência artística está na convocação de muitas e outras dores. Depoimentos de outras mulheres compõem a tessitura dramatúrgica de Curadoria e avolumam as narrativas compartilhadas. Uma dor não verbalizada se transforma em trauma. Curadoria opera pela instauração de uma “Comunidade da Dor” (penso aqui nos estudos da pesquisadora Ileana Diéguez). Ao se debruçar diante de um tema tão espinhoso e muitas vezes afugentado, a artista não busca neste trabalho produzir efeitos catárticos nem golpes sentimentais. Pelo contrário, a comoção aqui é gesto político (como bem assinala a filósofa Judith Butler), e nos emociona e co-implica numa justa medida.
A artista projeta imagens e amplia esses arquivos e documentos os intercalando com diversos relatos. O efeito obtido é o de um significante sempre rebatendo em outro, depois em mais alguns, num movimento polissêmico. Apresenta também contradições como quando, por exemplo, refere-se a dor que muitas vezes sentimos corporalmente como uma sensação de aprisionamento ou tortura, ao mesmo tempo que nos oferta imagens da vida ao ar livre na qual folhas de uma árvore balançam suavemente ao frescor do vento. “Estariam elas ali também doendo? Haveriam inscrições dolorosas até mesmo em momentos de alegria e prazer”? São modulações e variações a partir de um só tema, mas criando assim paisagens afetivas, delicadas e conflitivas. Árvore frondosa e uma interrogação que pode parecer afrontosa: “qual é a tua dor? Onde você está doendo hoje”? Pode-se perguntar isso a alguém de forma que não soe como um insulto?
Curadoria parece, entre muitas coisas, uma provocação e um convite para se pensar na fragilidade de nossos corpos. Uma imagem recorrente nesta palestra é a presença de um boneco de barro (protótipo do corpo humano que comumente vemos nos desenhos infantis) que, em diferentes momentos, experimenta contatos externos com agulhas, se vê coberto com pétalas de rosa e no final recebe a visita de um pouco de água capaz de dissolver sua efêmera matéria. Terra: húmus, humanidade. Humildade? Somos feitos de pó e areia. A escolha do barro (elemento arquetípico) se traduz como imagem poética e sintética capaz de nos sensibilizar sobre nossa impermanência física. Como afirma Jorge Glusberg em seu livro A Arte da Performance: o performer atua não mais como um homo sapiens do alto de sua prepotência, mas se assume como “homo vulnerabilis”, não dispõe de todos os escudos protetores diante das implacáveis forças da natureza.
Penso Curadoria também como um trabalho de cura. Mas não no sentido de busca do fim de um sofrimento, mas antes como ética de cuidado. Cuidar da vida enquanto ela acontece, enquanto dói, nos solicita, nos fere, nos encanta. Any Luz personifica aqui o Deus Quíron: cura nos outros a dor que também sofre. Sua poética latejante retrata uma espécie de (re)nascimento: uma dor-mariposa rompe o casulo da solidão, do silêncio e das opressões. Possibilidade de transformação.
Daquilo que finda
Eu já tive e perdi
uma casa,
um jardim,
uma soleira,
uma porta,
um caixão de janela com um perfil.
Eu sabia uma modinha e não sei mais.
Quando a vida dá folga, pego a querer
a soleira,
o portal,
o jardim mais a casa,
o caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
Tudo de outro dono,
tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas,
o coração amolecido como um figo na calda.
(Chorinho Doce. Bagagem. Adélia Prado)
Em Breviário de Aparecências e Quimeras Andrezza Alves fala de perda, morte e memória. A artista expõe sua coleção de objetos repletos de história e nos lembra que guardar é também eternizar os outros em nós. A existência de museus e bibliotecas justifica essa necessidade de segurar e preservar aquilo (nossas eleições) que um dia se foi ou alguém que não mais se encontra entre nós. São nossos gestos curatoriais, pequenas recusas diante da finitude uma vez que “a arte de perder não tarda aprender” (Elizabeth Bishop).
Na companhia dessas relíquias, Andrezza não está mais só: ela baila em meio a seus amores. Assisti Breviário de Aparecências e Quimeras como quem vê um solo de dança. Uma coreografia com o vazio preenchida pelos cheios da memória. O mapa das lembranças inscrito nas linhas da palma das mãos da artista. Suas mãos costuram os fios invisíveis que nos convocam a presenças e imaginações. Mãos que seguram o tempo, os afetos, os lugares. Mãos que cuidam dos objetos e zelam pelos que neles respiram. A eternidade da vida na precariedade dos guardados: nossos corpos, as coisas, as antigas fotografias.
Nesse inventário de perdas uma luta se trava frente a possibilidade do esquecimento, a subversão se dá pela palavra, essa insistência em contar, continuar, perpetuar, ressuscitar. Guimarães Rosa dizia: “se lembro, tenho”. Andrezza com suas coleções retruca: “se guardo, vivo”. Caetana (como é chamada a morte no sertão nordestino) então se senta na ponta da cama, respira fundo, percebe que seu trabalho é sem descanso. Nesse “toma lá, dá cá” os encantados seguem vivos, biografados, invocados, incrustados nos objetos, contrariam as finitudes. Se a morte traz perda, o revide (ou será a re-VIDA?) acontece pela multiplicação das formas. Daquilo que finda para aquilo que fia: a vida trançada numa colcha ou num vestido “roubado” da tia para aquecer o frio imposto pelas distâncias.
Denise Stutz em Finita. Imagem: Renato Mangolin
Aproximar a conferência performativa de Andrezza a um trabalho de dança me veio também porque fui tomado por algumas lembranças: o solo Finita da coreógrafa Denise Stutz e A Anatomia das coisas encalhadas da artista cearense Silvia Moura. Trabalhos que se entrecruzam por indagar sobre como inventar formas de lidar com o fim. Fazer do fim um intervalo ou até mesmo um início. “Quem pode afirmar com absoluta certeza que alguém foi embora e não existe mais? Quem disse que um espetáculo termina? Quanto tempo uma obra de arte dura em mim”? Preciosas aparecências e luminosas reticências que me habitavam enquanto acompanhava as quimeras de Andrezza. Seu foco nesta palestra recai sobre os objetos, são eles os protagonistas (aqui tem-se uma concentração, uma economia dos meios: tudo irradia deles e a eles retorna), são portais abertos para embalar saudades.
Mais tarde busquei minha caixa de coleção de programas de teatro e ao olhá-los novamente as luzes do palco mais uma vez se acenderam, me vi inundado de imagens, sensações e cheiros. Escutei novamente Denise e Silvia, as vi dançando, chorei e sorri com elas. Perdido e ao mesmo tempo reconfortado permaneci ali em meio a esse teatro dos mortos. Depositei também ali as palavras de Andrezza contando sobre seus encantados que moram em sua caixa de santinhos (conhecidos como santinho de luto, são pequenos folhetos impressos em gráficas com a foto do falecido e uma mensagem da família homenageando-o). Em Breviário de Aparecências e Quimeras acompanhamos os encontros e conversas da artista com aqueles que ela não permitiu que partissem. Ou que se partiram deixaram suas marcas indeléveis nas coisas que ficaram. Pude conhecer a mãe da artista, saber um pouco de sua vida. A gente tem fome de ser narrado.
E o elemento do humor também faz uma curva no desenho da palestra-performance quando Andrezza nos conta de sua inabilidade na escrita e produção dos textos para a confecção dos santinhos, quando erra alguma palavra e não percebe. Há neste ponto uma insurgência, uma espécie de profanação (o sagrado se revelando no patético humano), uma travessura, um jeito meio torto, uma “inadequação adequada” em seu desacerto com a morte (condizente com tudo que se constrói enquanto dramaturgia cênica). Nesse momento o riso alivia um pouco a densidade do assunto tratado. Um respiro. Habitamos um plano de imanência. Estamos liberados para rir da morte, poder rir também com ela. Retira Caetana desse lugar muitas vezes sombrio e assustador.
Travessias
Foto de Marúzia Moraes. Solo de Silvia Moura
Se Any Luz cria uma “Comunidade da Dor”, Andrezza Alves nos apresenta sua “Comunidade da Memória” e nos permite passear pelos objetos selecionados. Há aqui um entrelaçamento entre as duas propostas: a curadoria (Luz) dos objetos de Andrezza encontra ressonância com a aparecência (Alves) da dor que nos fala Any. Para mim o denominador comum desses trabalhos é a utilização de uma lente feminina subjetiva para se olhar para temas tão incandescentes e urgentes afim de se retornar com eles para o debate público, fazendo isso sem querer impor verdades, mas ativar sensibilidades.
Acompanhando a travessia dessas duas cenas de palestra-performance me senti estimulado a ensaiar esse texto. Uma vontade de conversa, um desejo de reverberação a partir das escritas elaboradas e apresentadas pelas artistas. Estou aqui também elaborando, co-laborando, trazendo meus interlocutores (teóricos, artistas, espetáculos, “meus mortos”) para alargar ainda mais as margens, ar(riscar) novos pensamentos.
Tanto Curadoria quanto Breviário de Aparecências e Quimeras podem ser considerados museus afetivos compostos de histórias miúdas (geografias tão pessoais por isso universais), caixas abertas, embarcações poéticas e teatros confessionais que anseiam formar micro-comunidades: ajuntam, abraçam, humanizam, diminuem temporariamente nossos fardos e fecundam espaços para a indagação. Afirmam a vida e a morte. Neles a dor é tema, bagagem e personagem.