Crítica a partir do espetáculo Montagem (Espetáculo de formatura dos alunos do Curso Técnico em Teatro do CEFART e apresentado na Sala João Ceschiatti).
– por Guilherme Diniz-
Foto de Igor Cerqueira
“Vinte pessoas e um palco de 30m². O que elas podem fazer ali?”
(Programa do espetáculo Montagem)
A questão, acima anunciada, é, por analogia, a dúvida metódica mobilizadora de Montagem. Assim como René Descartes, o espetáculo almeja desestabilizar certezas, colocar em suspeição algumas grandes verdades para refundar as possibilidades de construção do conhecimento. Seguramente, Montagem não é, em nada, cartesiana, mas toma a dúvida e as incertezas como impulsos do seu processo criativo.
O que deseja o espetáculo questionar, portanto? A princípio, o próprio teatro, suas potencialidades, funções e, com efeito, as relações entre realidade e ficção. É como se utopicamente Montagem perseguisse alguns dos mais profundos mistérios da arte teatral para desvelar, talvez, outro modo de concebê-lo, a partir do encontro daqueles corpos criadores. A grande questão proposta pelo espetáculo – “O que se pode fazer em cima de um palco?” – é provavelmente o mais desafiador ponto de interrogação desta frágil e poderosa arte. Historicamente, se para alguns será possível, em cena, provocar experiências espirituais, mágicas e cruelmente transformadoras, para outros, o palco, pode de fato converter-se em fermento político para uma revolução social (ou ao menos para ensaiá-la). Logo, estamos defronte ao questionamento nuclear do teatro, sempre respondido, até então jamais concluído. E em si, o título da peça – Montagem – evidencia o seu caráter de autorreferência, desnudando as estruturas e artifícios que fazem do teatro, inescapavelmente, uma montagem, isto é, construção, invenção e, enfim, jogo fabricado em presença.
Em segundo lugar, o espetáculo intenciona, com relação aos atores “desvendar um por um, da aparência a um gesto íntimo, singular”, como nos explica o diretor Vinícius Souza. Em seus multifacetados esquetes e solos, Montagem quer dar a ver as particularidades de cada ator, explorar aquele traço mínimo e insubstituível que caracteriza a “autenticidade” – para usarmos uma vez mais as palavras do diretor – de cada pessoa em cena. E nesse movimento, o espetáculo focaliza também as expectativas, anseios e as relações de cada qual com o teatro, iluminando histórias e narrativas pessoais, a partir das quais os vinte atores se revelam. Os atores, portanto, querem falar de si, expor algumas de suas singularidades e, mais do que isso, expressar, a seu modo, a crença (a paixão, eu diria) no teatro; ofício que eles e elas escolheram abraçar profissionalmente.
Porém, tais propósitos correm alguns riscos, dos quais o espetáculo não escapará: ao voltar-se para o próprio teatro e para a individualidade de cada um/uma em cena, a aventura metalinguística, de Montagem, torna-se por demais umbilical, egocêntrico, às vezes, ao trazer para o primeiro plano as idiossincrasias do elenco, sem que tais elementos sejam tensionados. A impressão global que se tem é que Montagem se preocupa mais em exibir singularidades (ou alguns dos seus traços) sem discuti-las, desdobrá-las, a ponto de colocá-las, talvez, em crise ou em choque. A escolha da dramaturgia e da encenação por trabalhar principalmente com solos e fragmentos isolados não permite que visualizemos as particularidades de cada ator em interação ou diálogo entre si. A exemplo da serpente que pica a própria cauda, as cenas individuais, do espetáculo esgotam-se e encerram-se em si mesmas, mais exibindo que debatendo as “autenticidades” de cada indivíduo. Há relatos pessoais, exibições, demonstrações de habilidades, alguns virtuosismos admiráveis sem, contudo, gerar tensão, interações desestabilizadoras, pairando, então, um sólido e por vezes inconveniente conforto. Como minha autenticidade afeta / atravessa a sua? Temos para nós que a singularidade é, por excelência, relacional, não apenas de fora para dentro, mas o seu contrário também. Como é possível conhecer e investigar individualidades isoladas se, inclusive, nos faltam parâmetros para enxergar como elas se entrechocam?
Foto de Igor Cerqueira
Há uma interessante dinâmica cênica, na primeira metade do espetáculo, que ludicamente expõe certas características dos elencos. Um ator, com um microfone em mãos, se afasta do grupo e profere o seguinte comando: “A pessoa que eu tirei …”, seguido de um adjetivo ou um fato que qualifique de algum modo os sujeitos. Aqueles e aquelas contemplados ou representados pelo adjetivo dito dirigem-se até o centro do palco e, estimulados por uma trilha sonora frenética dançam, vibram-se, movem-se, como num intenso frenesi. O restante, não incluído pela descrição, aguarda fora do palco. Na sessão por nós assistida diversas foram as sequências – desde aspectos simples como “a pessoa que eu tirei é loura”, “magra”, “alta”, até informações mais graves, como “a pessoa que eu tirei já tentou suicídio” “já fora abusada sexualmente” “já traficou”. O jogo em questão expõe os atores, possibilitando a nós, o público, conhecer superficialmente suas condições de vida, fragmentos de suas histórias pessoais, algumas intimidades, preferências, ad infinitum… Em determinados momentos o microfone é oferecido ao público, satisfazendo por vezes a curiosidade de espectadores, ávidos por descobrir uma qualquer coisa instigante acerca de tal ou qual ator.
O jogo caminha na direção proposta pela encenação, qual seja, a de desvendar as identidades, desvelar pessoalidades e as miudezas íntimas que apresentam, de maneira mais palpável, as fragilidades de cada um e, por outro lado, o mesmo jogo tem a possibilidade de aproximar público e atores, explicitando vivências, fraquezas e traumas comuns. Nesse sentido, o trabalho principia a descamar nosso desconhecimento para com as individualidades daqueles/as em cena, justapondo informações que nos permitem construir um quadro, provisório e precário, a respeito do elenco. A atitude performática, concretizada pelo intenso vigor físico dos atores e pela postura de (aparentemente) presentar-se, assumindo, no palco, sua pessoalidade, traz o corpo, com toda a sua dinâmica, como um discurso, um veículo de estranhamentos e uma plataforma de dúvidas.
A brincadeira, em cena, transparece não apenas as diferenças, inevitáveis, como em qualquer grupo, mas também as desigualdades, de ordem socioeconômica e racial, para nos determos naquelas mais visíveis em nossa sessão. O fato de uma atriz conhecer três idiomas e de outros morarem na periferia, por exemplo, não gera nenhuma tensão. Dificilmente se compreende como um espetáculo que deseja refletir sobre as singularidades de seus atores não é, em cena, afetado, por exemplo, pelo fato de que há somente duas pessoas negras, em um elenco de vinte atores com destaques, aliás, algo desiguais. Esta é uma das razões pelas quais acreditamos que Montagem expõe algumas particularidades e fatos pessoais do elenco sem se interessar por discuti-los ou cruzá-los, em sua maioria. Singularidade também é viver em sociedade; sociedade essa, atravessada por conflitos, violências e desigualdades. Ademais, o jogo, na sessão assistida, se prolongou cansativamente, alcançando um estado de saturação e desgaste, e igualmente provocando um retardo na fluidez do próprio espetáculo.
Foto de Igor Cerqueira
A direção de Vinícius Souza – assistida por João Marcelo Emediato e Marcelo Castro – prima por um despojamento cenográfico que deixa a área de bem jogo livre para deslocamentos, partituras corporais e mudanças de atmosferas, construindo desenhos de cena realmente dinâmicos. E é isso que permite ao espetáculo se transformar, agilmente, em um teatro de variedades ou vaudeville, no qual alguns atores e atrizes demonstram certas habilidades em esquetes e solos independentes, apresentando um pouco de si, de suas narrativas individuais por meio das técnicas que dominam ou praticam. Não falta, consequentemente, diversidade e divertimento nas apresentações. Do canto lírico a acrobacia, cada número destaca, a um só tempo, as fragilidades pessoais e, mais que isso, a capacidade de rir de si próprio, fazendo com que o público se identifique com a cômica e sensível humanidade que está no palco – afinal, são também “gente como a gente”. Vinícius Monteiro ao propor sua imitação de Marília Gabriela consegue ser deveras hilário, não apenas pela fina capacidade de inflexionar e acentuar as palavras como ela, mas, principalmente, pela velocidade improvisacional com que aproveita cada resposta da espectadora entrevistada, como material para sua imaginativa criação no instante.
A grande questão não reside, estritamente, na execução dos solos, mas no que fazer com eles, no que eles implicam. Como já argumentamos, Montagem resvala em um sutilíssimo egocentrismo, como se se deleitasse com o simples fato de falar sobre o eu, sua vida e trajetória, de modo autocentrado, não suscitando reflexões, problemas, ou desestabilizações que tensionassem as singularidades em cena. Não que as singularidades por si só não possuam um emaranhado de questões, mas o modo escolhido pela direção de abordá-las toca em aspectos muito pontuais – a habilidade de cantar, dançar, imitar ou narrar um momento da vida – que não se desenvolvem, sendo unicamente citados. O recorte dramatúrgico efetuado explicita elementos por demais isolados para que se possa falar em singularidade ou autenticidade de alguém, o que certamente envolveria muito mais camadas.
As relações entre ficção e realidade constituem outro material criativo perspectivado pelo espetáculo. Eduardo Coutinho (1933-2014) – uma das referências artísticas assumidas – inspira a construção de cenas e relatos nos quais o real e o fabulado se interpenetram, se confundem, revelando a dimensão tanto teatral da vida ordinária, quanto a dimensão concreta da vida ficcional. A estratégia poética do antológico documentário Jogo de Cena, de Coutinho é recriado especialmente na cena em que Renata Rocha dá-nos o testemunho de um evento pessoal que é, logo em seguida, recontado pelo ator Arthur Barbosa problematizando algumas fronteiras entre o vivido e o imaginado, o fato e sua narração; e mostrando, uma vez mais, que ficção e realidade são também perspectivas, referências, pontos de vista sobre o mundo. É exatamente aquilo que o saudoso Betinho (1935-1997) enunciara com precisão: “Existe uma forma de se fazer história e outra de se contar a história”. É neste hiato, entre a feitura do fato e a sua contação, que a ótica criativa atua largamente, podendo, inclusive, embaralhar os limites entre uma e outra, ampliando nosso olhar para as teatralidades da vida.
Os relatos pessoais tentam uma cotidianidade na expressão vocal, uma elocução bastante casual, como se estivessem documentando os acontecimentos, em um diálogo aparentemente despretensioso para com o público. E a respeito disso é importante dizer que há momentos nos quais algum espectador é convidado a tomar a cena e dividir o palco com os atores, dando azo, como já dito, a estruturas cênicas fortemente marcadas pelo desejo em quebrar certos distanciamentos e pelo teor improvisacional – de um modo geral Montagem é um trabalho muito fluido, altamente transformável pelas intervenções de espectadores, sobretudo. A segurança em aproximar-se diretamente do público também se explica pela presença de amigos, conhecidos e familiares criar um ambiente relativamente confortável.
Na última parte da encenação, todo o elenco, disperso pelo espaço, executa uma leitura dramática. O texto segurado pelos atores novamente reforça o artifício, isto é, a teatralidade construída do teatro. Neste instante, o diálogo lido se desenvolve como um comentário dos próprios atores acerca da peça apresentada, passando em revista as histórias contadas, as expectativas criadas. Aqui, esboça-se uma atmosfera na qual as singularidades se aproximam, dialogam mais ativamente entre si, porém o tom coloquial, bem como os rumos do diálogo tomam outros caminhos e os atores terminam a peça comendo, a encarar despretensiosamente a plateia.
Em síntese, Montagem se diferencia sensivelmente dos últimos espetáculos de formatura do CEFART. Em Cortiço, Litoral, Manual dx Guerrilhirx Urbanx, Há algo de Podre no Reino da Dinamarca e Eclipse, para citarmos apenas alguns, o olhar direta ou indiretamente engajado, em termos políticos, mirava problemáticas macroscópicas socialmente, como a violência, a intolerância, a política contemporânea, as guerras históricas, as diversas formas de desigualdade e opressão, em sua maioria incorporando, abertamente, as críticas forjadas no movimento Menos Palácio, Mais Arte.
Montagem parece dirigir-se ao micro, ao interno, ao “gesto íntimo”, como afirma Vinícius Souza. Não há dúvidas de que há nesta escolha um fértil e potente material reflexivo, em que o individual manifesta suas complexidades e desejos. Mas como, de fato, estabelecer um potente diálogo com o coletivo, de modo que o eu não se faça, quiçá, narcísico?
Ficha técnica:
Direção e dramaturgia: Vinícius Souza
Assistência de direção e dramaturgia: João Marcelo Emediato e Marcelo Castro
Elenco: Alexandre Fidélis, Ana Clara Ligeiro, André Luis Vicente, Arthur Barbosa, Camila Maria Rosa, Camila Furtunato, Davds Lacerda, Deydson Tcharles, Gabriel Ventura, Jéssica Ricci, Kaká Correa, Leandro Bolina, Letícia Bezamat, Nayara Salles, Pedro Henrique Pedrosa, Rafael Santos, Renata Rocha, Tiago Colombini, Tomás Sarquis e Vinícius Monteiro.
Direção de arte: Gabriela Dominguez, Lúcio Honorato e Luiz Dias
Iluminação: Cristiano Araújo
Sonoplastia: Coletiva
Preparação vocal: Ana Hadad
Preparação corporal e desenho coreográfico: Rafael Batista
Assessoria de preparação corporal: Elba Rocha
Conversas durante o processo de criação: Júlia Guimarães, Luciana Romagnolli e Thálita Motta
Produção: Larissa Scarpelli