* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
– por Ana Luisa Santos –
Belo Horizonte, 25 de junho de 2023
Prezado Nelson,
Faz frio em Belo Horizonte neste início de inverno de 2023. O ar da cidade não é mais uma referência para a cura da tuberculose, se te interessa saber. Há exatos 80 anos você estreava a peça de teatro “Vestido de Noiva”, no Rio de Janeiro. Hoje, neste momento histórico, assistimos a uma nova montagem da peça pelo Grupo Oficcina Multimédia, de Belo Horizonte. É a partir desse conflito temporal, dessa distância ou proximidade de períodos, que decido te escrever essa carta, uma carta do além ou para o além, além-mundos.
Fique tranquilo, a peça é um sucesso de temporada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte, e sim, já tem agendada a turnê por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, pelo mesmo CCBB. É uma façanha ainda hoje, fazer teatro e sustentar, suspender, levantar uma montagem e uma (e ainda mais de uma) turnê. Ainda mais depois de uma pandemia. Sim, Nelson, em 2020 tivemos nossa “Espanhola” mas com um outro vírus chamado COVID-19, que muitas pessoas, nações, tentaram dizer que era chinês, mas não colou tanto assim.
De modo que em 2023, depois de dois anos de isolamento ou distanciamento social, depois de 700 mil mortes só no Brasil, depois da produção de vacinas em escala global, estamos começando a voltar a frequentar o teatro. Você pode imaginar a emoção. Não que não tenha tido teatro nesse período, quer dizer, não teve teatro presencial, mas agora nós experimentamos desde 2020 ou mesmo antes, Nelson, o teatro online, quer dizer, o teatro na internet, que é uma rede mundial de computadores, que são uns equipamentos tecnológicos que muitas pessoas, uma grande maioria das pessoas têm não só nas suas casas, mas nas suas mãos, quer dizer, nos seus aparelhos individuais de telefones celulares, que funcionam em quase todos os lugares do planeta, wireless, ou seja, sem fio.
Esses aparelhos celulares, Nelson, têm câmeras fotográficas embutidas que registram imagens digitais a qualquer momento e lugar. E com a internet, essa espécie de espaço digital, é possível compartilhar essas imagens, registradas ou ao vivo, para quem quiser assistir, na hora ou depois. Sim, cada pessoa se tornou seu próprio editor, Nelson, sua própria revista, com ou sem copydesk ou revisor, com o potencial de publicação 24 horas por dia, sete dias por semana, 8 bilhões de canais. São muitos vestidos de noiva, Nelson, você não imagina…
Mas voltando ao teatro – sem nunca ter saído dele – estamos experimentando uma suspensão de tempo e espaço (com essa coisa da internet) da qual você provavelmente veria uma conexão com sua proposta dramatúrgica para “Vestido de Noiva”. Os planos da memória, alucinação e realidade, que tanto surpreenderam seus contemporâneos na estreia da peça em 1943, consistem em dimensões da experiência cotidiana atualmente que, sim, como na história da personagem Alaíde, tornou-se um tipo de coma ou surto ou trauma em que a qualquer momento somos confrontadas com vozes, lembranças gravadas, ídolos, confissões, obsessões diversas. Nosso tesão hoje, Nelson, é por dopamina, de tão excitados e deprimidos e onipotentes que estamos, diante de tantas opções de imagem, de cenas, de casamentos, de ódios, intrigas e conflitos.
Agora sabemos de tudo, Nelson, quer dizer, quase tudo. Essa coisa do erotismo do que é velado, do segredo, da transgressão está por um fio, Nelson. Quer dizer, está sem fio, tanto na estrutura wireless quanto pela confusão de para onde lançar nosso fio pulsional ou perceber suas vibrações. A crônica é um exercício muito difundido, Nelson, por muitas e muitas pessoas no que chamamos, neste ambiente da internet, de “redes sociais”, que são empresas privadas que administram plataformas digitais, “lugares” na internet, que você acessa digitando (escrevendo) o nome do site (lugar) na rede mundial de computadores e então você “entra” (acessa) a plataforma.
Muita gente, mas muita gente mesmo, Nelson, publica diariamente, várias vezes por dia, às vezes, todo o tipo de detalhe sobre a sua vida, íntima inclusive. E as pessoas que por acaso (ou não tanto, porque existem umas coisas chamadas “algoritmos”, fórmulas informáticas de “caminhos” que direcionam essa informação, os chamados “dados”, especialmente se você pagar, para públicos específicos, com objetivos comerciais, sobretudo, mas também, e sobretudo, políticos, com o objetivo de gerar identificação, “engajamento”, nome que se dá para a interação com os conteúdos, na forma não só da visualização, mas também de “reações”, de aprovação ou desaprovação, e comentários) as pessoas que “por acaso” se deparam com essas “notícias” ficam viciadas em saber mais, em saber mais da vida dos outros.
Somos mais binários do que nunca, Nelson. Agora nem tanto só homem e mulher (e já já te conto sobre isso) mas porque estamos enredados no jogo do 0 ou 1 que é a base da linguagem digital. De modo que essa pressão da vida social sobre a solidão da experiência subjetiva tem outros contornos fantasmagóricos hoje. A comparação não é só entre irmãs, Nelson, como é o caso das personagens Alaíde e Lúcia, em “Vestido de Noiva”. A prática hierárquica, doentia, da neurose estrutural, é o modus operandi do capitalismo financeirizado globalitário, desde a colonização, a inquisição, a escravidão, mas que atualmente chamamos de neoliberalismo.
A sensação, Nelson, o sensível, a atenção, o interesse, a curiosidade, o vínculo de vontade estão pulverizados. É claro que é possível que alguém sinta desejo pelo namorado da irmã, como é o caso de Alaíde com Lúcia (ou de Lúcia com Alaíde). Mas hoje, Nelson, nessa mesma internet existem “plataformas” de paquera ou de sexo ou de namoro que te “oferecem” centenas, milhares de “opções” (pessoas ou robôs em forma de perfis, com nome, foto, preferências), onde você estiver, em qualquer lugar do mundo, a qualquer hora. A pornografia, Nelson, é algo banal ou, pelo menos, uma linguagem banalizada, comum.
Então, ver a montagem de “Vestido de Noiva” é realmente interessante. Não só pelas opções da diretora Ione de Medeiros, encenadora do Grupo Oficcina Multimédia (GOM), mas porque é uma pergunta sobre a relação com a sua obra, Nelson. Hoje, é bom dizer, até por causa dessa quantidade de informação na internet e por outros motivos ligados aos costumes (e já já te conto sobre isso) temos outra relação com artistas e seus processos de trabalho. Não é apenas a obra que nos interessa, mas a vida daquela ou daquele que produz a obra. Somos assoladas por dúvidas sobre como lidar com filmes, livros, obras inteiras de artistas, intelectuais, humanos que experimentaram a criação, mas estão longe de serem deusas ou deuses, principalmente quando descobrimos (e geralmente descobrimos tudo, somos praticamente oniscientes) que há crimes, falhas morais, desvios de caráter, sonegação de impostos (principalmente para os muito ricos).
Sim, Nelson, você não escapa a esse escrutínio. Não só pela vastíssima (parabéns) fortuna crítica a respeito do seu trabalho, não apenas no teatro, mas também como jornalista e escritor, como personagem biografado por Ruy Castro em um livro chamado “O Anjo Pornográfico”, mas porque essa polêmica que você bem conheceu da sobreposição entre arte e vida ganhou muita proporção, especialmente com o desenvolvimento do que chamamos de “cultura da celebridade” ou a profissão de ser famosa ou famoso, de que você foi um dos primeiros expoentes, é bom dizer.
É até comovente, Nelson, ouvir as personagens de “Vestido de Noiva” falando em “hipocrisia” e “cinismo”. Hoje ninguém fala sobre isso. É uma coisa tão naturalizada, no próprio jogo da linguagem, que temos até um nome para isso: “meme”, uma espécie de piada irônica digital que cria um distanciamento do mundo e do espírito, mas que é essencial para nossa sobrevivência psíquica. Falando em sobrevivência, Nelson, estamos um pouco ansiosas por aqui porque estamos adquirindo a consciência de que corremos o risco de extinção em massa da nossa espécie (inclusive como espécie de responsável) por causa do que chamamos de “catástrofe climática”, um tipo de “burn out” (exaustão) dos recursos “naturais” do meio ambiente, como água, oxigênio, solo fértil, chuva e equilíbrio biológico que ameaça a sobrevivência da humanidade (o COVID-19, o vírus, parece ser um testemunho de um profundo desequilíbrio).
Estivemos ou estamos menos vestidos de noiva e mais vestidos de máscaras, Nelson, nos últimos tempos. Máscaras para evitar a contaminação pelo vírus e máscaras sociais, que desde a década de 1940, você tenta arrancar da tradicional família pequeno-burguesa. Elas caíram bastante, ou em parte, desde então, mas hoje, em 2023, assim como Alaíde, estamos paranoicas (e paranoicos) com a quantidade de máscaras que temos que lidar. Isso porque a família, a ideia de família, criou uma nova dobra a partir da queda da máscara. Na verdade, ela justificou a máscara justamente porque ela caiu ou por causa da confusão que ficou depois que ela caiu. E muita gente caiu nessa, Nelson.
Sim, hoje temos até uma denominação “queer” para inverter os sinais de positivo e negativo com relação aos estigmatizados e estigmatizadas, ditos “anormais”, Nelson, desviados e desviadas, dissidentes de gênero. Convivemos entre casamentos heteronormativos (homem e mulher), mas também temos casamentos homoafetivos (homens entre si, mulher com mulher). Mas não é só na orientação sexual que as coisas mudaram e foram mais ou menos reconhecidas, de acordo com o contexto. Hoje existe o movimento LGBTQIAPN+ com lésbicas, gays, bissexuais, transgêneres, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais e não-binarie para expandir, que estão expandindo as noções de experiência de corpo e erotismo, para além dos gêneros.
E casamentos, Nelson, embora firmes e fortes como teatro (e sua peça é uma ótima lembrança disso) estão em xeque. Não só porque o divórcio está legalizado desde meados da década de 1970, e pessoas desquitadas não são mais as párias da sociedade. Mas também, e principalmente, porque hoje, com tantas “opções”, há uma profunda discussão sobre não monogamia, ou poliamor ou amor livre. Sim, Nelson, existem hoje “trisais” (relacionamento contínuo e consensual entre três pessoas), existem hoje “relacionamentos abertos” em que a ideia de fidelidade ganha um significado muito diferente e as parcerias são porosas a novos e outros encontros, breves ou mais demorados, independentemente do gênero, da sexualidade.
É, Nelson, “Vestido de Noiva” hoje é uma coisa bem diferente. Mas ainda assim ficamos encantadas com o carisma da personagem de Madame Clessi, seu ponto de fuga. É um pouco difícil dialogar com o imaginário mórbido – isso mudou muito, Nelson. É claro que é possível fazer a conexão do “Vestido de Noiva” com a mortalha, o casamento com o enterro, o matrimônio e a morte do desejo (especialmente o feminino). Estamos ainda desenterrando e exumando esse esqueleto misógino, Nelson. E hoje ainda temos no Brasil um alto índice de feminicídios (crime de homicídio contra a mulher, por ela ser mulher, uma nova tipologia criminal), porque homens ainda não admitem o desejo feminino.
Era isso que Alaíde estava clamando em seu surto, Nelson? Em seu leito de morte? Ela teve que ser atropelada para isso? O tempo não linear da velocidade do automóvel e a lentidão das mentalidades, a incompatibilidade dos ritmos, Nelson. Quem sabe hoje Alaíde pudesse querer não o namorado da irmã, mas a irmã do namorado de Lúcia, e Madame Clessi fosse uma “influencer” famosa na internet. Sim, uma “influenciadora” dos costumes, das opiniões, com milhares, quiçá milhões de “seguidores” que são um tipo de “fã” que “segue”, que acompanha as publicações frequentes dessa nova modalidade de “ídolos” em seus perfis na internet. O diário de Madame Clessi não está guardado no baú do sótão, mas está a céu aberto, Nelson, ou melhor, está “disponível” na internet, no imaginário popular digital.
No sótão ou no baú não estão as taras, os ódios, as invejas. Tudo veio para fora, Nelson, está exposto, é na internet “monetizado” (de money, dinheiro, produção de lucro) em uma experiência ampla de cafetinagem da vida. Ou de articulação de grupos. O desejo não é mais reprimido, Nelson, pelo contrário. O desejo é explorado, é compulsório em uma pesada ditadura do gozo. É preciso gozar, gozar mais e mostrar. A revelação das vontades, o desvelamento das intenções é um imperativo atualmente, Nelson. A mesa de cirurgia em que Alaíde é operada após o atropelamento é hoje uma mesa de dissecação.
E é bonito ver, desde 1943, a personagem Alaíde tentando juntar os cacos, tentando encontrar os códigos genéticos do gênero e fazer novas composições em um laboratório futurista. Estamos hoje bastante estilhaçados, Nelson. Em 08 de janeiro de 2023, testemunhamos um ataque em massa dos palácios de Brasília, a capital do país que você viu brotar do chão do planalto central no início década de 1960. Um ataque como nunca se havia visto antes na capital federal. As paredes modernistas de vidro, a transparência e os quadros de Di Cavalcanti dilacerados por massas de “bolsonaristas”, nome que damos a esse movimento de extrema direita por causa de um de seus principais líderes, Jair Bolsonaro, que foi presidente do Brasil entre 2018 e 2022, e não aceitou o resultado das últimas eleições em que perdeu para Luiz Inácio Lula da Silva, o principal Ícone do Partido dos Trabalhadores, movimento de esquerda surgido no país no início da década de 1980.
É curiosíssimo pensar em “Vestido de Noiva” nesse contexto, Nelson, porque um dos principais embates da esquerda e da direita hoje, em 2023, pasme, não é só em torno do direito da propriedade, mas em torno da chamada “liberdade de expressão”. A “pauta moral”, também chamada atualmente de “guerra cultural”, gira muito em torno dos “costumes”, leia-se, sexo, família, reprodução. Ainda não temos a garantia na legislação do direito ao aborto, por exemplo. Ainda temos muitas igrejas, formas de religiosidade (e não só a católica) influenciando as decisões da vida de muitas pessoas, explorando seu desamparo e, agora, inclusive, cobrando mais por isso. Os dízimos são mais impositivos, Nelson, as igrejas são conglomerados de meios de comunicação, mas não pagam impostos. O Estado ainda não é laico.
O caso do “Vestido de Noiva” é apresentado em programas de televisão todos os dias, não só nas páginas dos jornais sensacionalistas. Aliás, Nelson, os jornais quase não existem mais. Mas uma ideia de notícia sim, com direito a uma nova instância da linguagem que denominamos de “pós-verdade”. Hoje convivemos com “fake news”, notícias falsas difundidas com interesses diversos, confundindo pessoas e torcendo fatos, para vender produtos, especialmente políticos. Você ia amar, Nelson, a “mamadeira de piroca”, uma das principais fake news utilizadas na eleição presidencial de 2018 pela extrema direita para desqualificar o candidato da esquerda, com a “narrativa” de que ele ou seu partido, o Partido de Trabalhadores, iria distribuir “mamadeiras de piroca” em kits para as escolas infantis.
Voltando às quebras dos telhados de vidro e das quartas paredes, experimentamos uma versão do que ficou conhecido como “big brother” (ou “grande irmão”) ou aquele que tudo vê, inclusive como franquia global de programa de televisão. Observamos por milhares de câmeras digitais a “intimidade” da convivência de pessoas confinadas (desde bem antes da pandemia, pelo menos desde os anos 2000) que assinam um contrato de trabalho que não só autoriza a vigilância mas também as obriga ao “jogo”, uma competição entre si e com o público que assiste para permanecer no programa, ou seja, continuar “jogando” em busca não só de um prêmio em dinheiro, mas do valor visibilidade (grande fator de investimento hoje, pois o visível é monetizado). Quanto mais gente te vê, mais você ganha, seja em capital financeiro, seja em capital narcísico.
“Vestido de noiva”, essa conquista do teatro nacional, em tantos sentidos, Nelson, possui novas camadas. O bordado contemporâneo tem brilhos reluzentes nos tons dramáticos e confusos. A dança entre a santa e a puta, o gesto candidato ao “vestido de noiva” como manto ou como capa de super-heroína, está em ritmo acelerado como o passo dos sapatinhos vermelhos. Já preferimos ser cyborgs do que deusas, Nelson, mas convivemos com pastoras religiosas com 50 filhos adotados que fazem carreiras políticas mesmo com acusações de terem assassinado o marido, mesmo depois de se casarem com o genro.
Sim, tivemos recentemente ministras de Estado que compreendiam que meninos devem vestir azul e que meninas devem vestir rosa. Mas também temos homens trans (homens que eram biologicamente considerados mulheres e que se reconhecem pelo gênero masculino, com ou sem tratamento hormonal) que dão à luz a crianças (pois são homens que ainda têm úteros). Está um pouco confuso, Nelson? Vamos com Alaíde, Nelson, tente se lembrar… realidade, memória, alucinação… O carro está veloz demais? Cuidado para não ser atropelado, Nelson, tente se lembrar…
“Vestido de noiva” é mesmo uma sacada, não é, Nelson? Se fosse só pela sobreposição de planos (realidade, memória, alucinação), mas é também de personagens e de seus desejos, desse espaço em que tudo se move. “Família ou Morte!”1 já dizia Suely Rolnik sobre a sua obra no início da década de 1980. Lembramos do movimento, Nelson, com “Vestido de Noiva”, da necessidade de movimento para lubrificar as estruturas do desejo: a ética da atividade em torno da micropolítica – criar e não apenas reagir, para deixar vir o novo, a transfiguração da vida resistindo ao sufocamento. O novo está vindo, Nelson, mas está difícil fazer o luto.
Nesse velório adulterado, tão caro como estética para o seu trabalho no teatro, Nelson, o convite para esse rito funerário pelo qual você nos incita, estamos testemunhando algumas pessoas estrebuchando de revolta, de não aceitação. “Masculinistas”, por exemplo, homens que se sentem “vítimas” das mulheres, homens que acham que a mulher deve ser submissa a eles e que se revoltam contra a expressão contemporânea dos desejos femininos, sua insurreição contra o patriarcado. E que seguem violentos com isso, agredindo mulheres em casa, na rua e na internet, ameaçando, abusando, mentindo, traindo e, também matando.
Pedro, personagem de “Vestido de Noiva”, homem-noivo-namorado disputado pelas irmãs Alaíde e Lúcia, poderia ser uma versão analógica (não digital) do “red-pill”, Nelson. Sim, “red-pill” ou “pílula vermelha” em referência a um filme que fez muito sucesso nos anos 2000 chamado “Matrix”. Embora as diretoras do filme sejam transgêneres, os “red-pill” são homens cis-hetero (“cis”, seu gênero identificado com seu sexo biológico e “hétero”, que não é homoafetivo) que promovem, entre vários conteúdos na internet, uma espécie de treinamento ou cursos e “coaching” (algo como o “técnico” de futebol, mas para treinamento individual) para que os homens, eles mesmos, possam “aprender” a se defender do feminismo, pela manutenção da supremacia masculina.
Personagem lateral de “Vestido de Noiva”, Pedro mexe pouco, quer continuar acreditando que é o pivô do desejo das irmãs, mas desconfia das outras intenções de Alaíde, não está satisfeito apenas com o fato de que Lúcia é sua amante. Precisa passar por cima – literalmente, com um carro – de qualquer imaginação de outro espaço, de qualquer movimento, de qualquer sonho de bordel, de uma nova posição que permita expressar seu desejo ou o desejo feminino, como se a expressão do desejo feminino estivesse ligada somente à prostituição. Aliás, Nelson, há pelo menos duas décadas, temos testemunhado um movimento político muito interessante das profissionais do sexo, que lutam pelo reconhecimento da categoria, pelos seus direitos e saúde. Elas desfilam, são modelos de moda, escrevem livros, são filiadas a partidos, concorrem à eleição.
Estamos nessa, Nelson. E assistindo “Vestido de Noiva”, veja só, repetidamente. E sim, fui duas vezes ver a peça, porque além de escrever essa carta para um site (na internet, onde são publicadas críticas teatrais) visitei os bastidores da temporada da peça pelo Grupo Oficcina Multimédia. Fui pela escola onde trabalho, a Escola Livre de Artes – Arena da Cultura, de Belo Horizonte, escola pública da Prefeitura da cidade que, em 2023, está completando 25 anos de existência. Sim, estamos estudando sua obra, Nelson, inclusive pelos bastidores. Hoje nos interessamos até pelos bastidores, investigamos os processos, Nelson, destacamos o figurino como linguagem, entre outros elementos do teatro, mas também das demais linguagens artísticas.
E é realmente impressionante como os vestidos de noiva, como materiais e matérias de signo histórico ainda provocam suspiros (principalmente entre as mulheres). Vestidos de noiva têm uma aura, mesmo depois de toda a reprodutibilidade técnica. É como um eco que aparece na imagem duplicada de Alaíde no início da montagem do GOM para a peça. Sim, Nelson, são duas personagens de Alaíde que, de forma espelhada, dialogam com dois Pedros, mas com a mesma madame Clessi. Dialogam até com a “mulher de véu”, que depois descobre-se ser Lúcia, sua irmã. São ecos, são versões da mesma voz, são semblantes do desejo perdido no outro.
A movimentação, Nelson, uma dinâmica intensa pelo espaço entre o elenco e os objetos de cena, em sua maioria, cadeiras e mesas com rodinhas, mergulhados em uma textura audiovisual (sim, Nelson, misturamos hoje teatro com cinema na mesma apresentação) é entrecortada pela voz de um narrador, que ajuda o público a acompanhar a transição entre os vários planos da encenação, com a leitura das rubricas. Quem nunca fez concessões, Nelson? Imagino você lidando tantas vezes com a censura, tentando, muitas vezes em vão, explicar o seu trabalho artístico ou sua pertinência estética.
Sabe, Nelson, eu preciso te contar que o “Vestido de Noiva” costurado na Oficcina Multimédia não tem costas. É desmembrado, algo prático de vestir, mas também de desvestir. Esse clichê embasado na profundidade de um vestido branco, suntuoso, figurino por excelência na transição de status de relacionamento de solteira para casada, essa performance sexual, sobretudo heterossexual, está sem um pedaço na montagem do GOM. Falta seu fundo, seu chão, é vestido sobre outras vestes, outras cores, principalmente o vermelho e o preto. A montagem desfaz um pouco os excessos, é preciso dizer, Nelson, não só dissolvendo Alaíde em duas, em um duplo, mas também através de outros recursos.
Não estamos mais em um palco italiano, Nelson, ou pelo menos admitimos diferentes tipos de palcos, inclusive digitais. E a encenação da peça pelo GOM em 2023 ganhou uma versão em espaço “alternativo” – uma sala multiuso – em que a ação cênica se dá no mesmo plano do público. Nós que mergulhamos com as noivas afogadas, em uma atmosfera suspendida pela imagem projetada da submersão no inconsciente, em que o elenco flutua entre posições indefinidas. As cadeiras e mesas com rodinhas produzem um som mecânico, maquínico, de engrenagens que são empurradas em círculo, em considerável velocidade pelos atores, enquanto as noivas, as duas noivas, e o duplo vestido jazem em suas macas.
O espaço não tem coxia, Nelson, se é que você consegue imaginar. A cena do bordel tem um tango dançado por dois casais de homens. Há uma confusão entre os gêneros dos atores e das personagens. O peso, Nelson, é sobre o resto, sobre o que ainda resta da noivinha em nós. A mesa onde a civilização se senta está nas últimas, Nelson, e é, ao mesmo tempo, mesa de açougue, caixão e banquete. As cadeiras, os lugares marcados podem ser empurrados a qualquer momento, deslizando posições de onde e como se sentar, destronando espaldares.
Ninguém entendeu “Vestido de Noiva” em 1943, Nelson. Continuamos não entendendo em 2023. Se pudéssemos antropomorfizar uma peça de teatro, ela seria essa madame de 80 anos, uma espécie de Isis Apfel do teatro, interessantíssima, bastante elegante, e, ao mesmo tempo, ultrapopular, com apelo inconfundível e carisma confirmado. Madames nos contam estórias ainda atuais, porém esquisitas, com que, apesar da torpeza, ainda podemos nos identificar, que seja, com a dimensão da profundidade do trabalho psíquico necessário para elaborar o trauma.
Alaíde se esforça bastante em “Vestido de Noiva” e transforma, tenta mover, dá dignidade ao seu delírio, expondo, mesmo e principalmente, de maneira não linear, sua força e fragilidade psíquica, provocada não só pelo atropelamento do qual é vítima, mas pelo videogame em sua cabeça da disputa acirrada pelo troféu do casamento. A frase mais difícil para mim, Nelson, de toda a peça é: “eu sou mais mulher que você”, dita por Alaíde à Lúcia, para, supostamente, justificar sua vitória (cuja medalha seria Pedro, se bem que o que está em jogo é o desempenho na performance de gênero e seu principal figurino, o vestido de noiva, que é constantemente costurado pelas irmãs, que disputam também quem vai buscar uma linha branca que está em outro lugar, em outra cômoda ou cômodo).
É bem difícil ver uma montagem dessa peça emblemática, testemunhar a estória e a história no teatro, Nelson. Acho que você sempre buscou esse incômodo na plateia, sempre procurou mostrar os monstros para tentar resguardar os impulsos mais nocivos. Expor, expurgar os demônios internos para sublimá-los, você, fã da catarse, adorador da experiência apaixonada, amante dos altos volumes emocionais. Você, cansado do tédio, escravo da rotina, submetido ao tempo das redações de jornal, assolado pelo prazo deadline (de publicação). Você, perverso polimorfo, você, inseguro, você, vestido de noiva com suspensórios.
É teatro, Nelson. É teatro das pulsões, o grande palco dos mistérios da alma humana. Você, “lanterninha”, você mostrando os lugares marcados, convidando as pessoas a se sentarem em outras cadeiras, descambando os camarotes. Você vendendo balas, cigarros e pipoca. Hoje não podemos mais fumar em locais fechados, Nelson, nem em ônibus ou aviões. O cheiro de “mamãe” que Alaíde faz Lúcia confessar que detesta, o tableau vivant da festa de casamento, a cena congelada do núcleo familiar encenada pelo GOM é hoje “retocada digitalmente”, em vários sentidos. Onde está a linha branca, Nelson? Na gaveta da cômoda? Que cômoda é essa, impossível de achar ou que ninguém quer encontrar, onde estaria guardada a linha para costurar alguma coisa esgarçada? Vamos sabotar o casamento, Nelson, estou com você nessa.
Um abraço,
Ana Luisa Santos
Vestido de Noiva_Sinopse:
Vestido de Noiva é uma peça teatral de Nelson Rodrigues na qual o autor mescla realidade, memória e alucinação para contar a triste história de Alaíde. Após ser atropelada por um carro em alta velocidade, ela é hospitalizada em estado de choque. Na mesa de cirurgia, oscilando entre a vida e a morte, a mente de Alaíde visa reconstruir sua própria história, e aos poucos seus sonhos inconscientes e desejos mais inconfessáveis vêm à tona. Quem vai ajudá-la nesse processo é a enigmática Madame Clessi. Juntando as peças desse quebra-cabeça, ela conduz Alaíde na busca pela reconfiguração de sua própria identidade. Vestido de Noiva, escrita em 1943, mantém-se atual: o que poderia parecer um drama familiar revela-se uma tragédia de alcance universal. Nessa obra, dividida em três atos, Nelson Rodrigues conta uma história a partir da análise do interior da mente da personagem, ou seja, de seu espírito, de sua psique, de sua alma.
Vestido de Noiva _ Ficha Técnica:
Direção, Concepção Cenográfica e Figurino: Ione de Medeiros
Assistência de Direção, Figurino e Preparação Corporal: Jonnatha Horta Fortes
Elenco: Camila Felix, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso
Elenco em vídeo: Alana Aquino, Heloisa Mandareli, Henrique Torres Mourão, Hyu Oliveira, Jonnatha Horta Fortes e Thiago Meira
Texto: Nelson Rodrigues (1943)
Criação de luz: Bruno Cerezoli
Coordenação de Montagem de Luz: Piccolo Teatro Meneio
Operação de Luz: Meneio Soluções Cênicas
Concepção de Trilha Sonora: Francisco Cesar e Ione de Medeiros
Mixagem e finalização de áudio: Henrique Staino | Sem Rumo
Projetos Audiovisuais:
Concepção e edição: Henrique Torres Mourão e Ione de Medeiros Finalização e pós-produção de Daniel Silva. Citações no vídeo: Performance Jardim de Ondina. Concepção e Performance: Luanna Jimenes. Instalação: Acquabox Maurizio Mancioli. Imagem: Gabriela Greeb. Instalação OPHELIA. Direção e Roteiro: Gabriela Greeb. Fotografia: Georges de Genevraye. Atriz: Teresa Rossi
Coreografia Tango Queer: Tango Fem Buenos Aires (Nancy Ramírez y Yuko Artak)
Operação de vídeo: Eduardo Shiiti e Sérgio Salomão
Designer Gráfica: Adriana Peliano
Gerenciamento Financeiro e Prestação de Contas: Roberta Oliveira — MR Consultoria
Assessoria de Imprensa/Relacionamento com a Mídia: Content.PR/Pessoa
Produção Executiva: Grupo Artes/Eventos Multimédia (Grupo Oficcina Multimédia)
Apresentação e Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Governo Federal
Apoio: Circuito Liberdade, Secretaria de Estado de Cultura e Turismo e Governo de Minas Gerais
Sobre o Grupo Oficcina Multimédia (GOM):
O Grupo Oficcina Multimédia da Fundação de Educação Artística foi criado em 1977, pelo compositor Rufo Herrera, no XI Festival de Inverno da UFMG. Sob a direção de Ione de Medeiros desde 1983, o Grupo montou 24 espetáculos, configurando um perfil multimeios, que se define pela multiplicidade das informações na encenação, diversidade das referências para as montagens e ênfase na criatividade, sempre fiel à experimentação e ao compromisso com o risco. Em julho de 2022, o GOM completou 45 anos de atuação cultural ininterrupta na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Neste ano, foram celebrados também os 40 anos de início da carreira de Ione de Medeiros como diretora teatral. Nessa trajetória, o GOM conquistou o respeito do público e participou, com vários espetáculos, de festivais nacionais e internacionais, como: 12° Festival Le Manifeste 2015, na França; Festival Internacional de Caracas, na Venezuela; 3º Festival do Teatro Brasileiro – Cena Mineira, em Brasília (DF); Festival Internacional de São José do Rio Preto/SP (2006); 2º Circuito de Festivales Internacionales “El Teatro del Mundo en Argentina” e o Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte – FIT BH. Paralelamente à sua atividade teatral, o GOM realiza em Belo Horizonte os eventos culturais Bloomsday, Bienal dos Piores Poemas e Verão Arte Contemporânea. Este último completou sua 15a edição em 2023
Agradecimentos especiais do ensaio crítico: Clara Delgado (edição e revisão de texto), Wilson de Avelar, Jonnatha Horta Fortes, Julia Guimarães.
- “A análise dos caminhos e descaminhos do desejo na sociedade brasileira encontram na obra de Nelson Rodrigues um prato cheio. Ninguém melhor do que ele e como igual senso de humor apreendeu as nuanças da família de classe média dos anos 50, seu perfil e sua miséria – perfil e miséria que se mantém ainda hoje, apesar e através das intensas mudanças que marcam essas três décadas, o que confere à sua obra grande atualidade. Seu texto destila uma sensibilidade privilegiada para captar, no plano molar, a rigidez com que se conservam as formas sociais vigentes, mesmo quando totalmente desatualizadas; no plano molecular, o imperceptível movimento das partículas solapando tudo, diluindo todos os contornos; e entre os dois planos, a ausência total de trânsito, a tensão de uma polaridade, desembocando necessariamente em uma destruição irreversível. As partículas, que o intenso movimento no plano molecular não pára de agitar, nunca chegam a se articular em novas formas sociais. Nunca se constituem novos territórios de desejo. A família implode. Mas um além da família é impensável. ‘Família ou morte!’ é o lema deste tipo de subjetividade que podemos extrair dos textos de Nelson Rodrigues.”
“Nelson Rodrigues ou a arte sutil de um esquizoanalista” por Suely Rolnik em livro sobre a visita de Félix Guattari ao Brasil em 1982, publicado como “Micropolítica: cartografias do desejo”, Editora Vozes, 2008.
Fotos: Netun Lima