Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo Vamos para a Costa do Núcleo da Tribo (BA) apresentado no Galpão Cine Horto (BH-MG).
– por Clóvis Domingos –
Em Vamos para a Costa do Núcleo da Tribo (BA), apresentado no Galpão Cine Horto dentro da programação do FIT- BH, acompanhamos os encontros, diálogos e embates fertilizados na encruzilhada entre dança contemporânea, fazeres cotidianos, expressões culturais (a capoeira) e o corpo na cidade. Em cena, três pescadores-dançarinos da região de Itacaré descrevem e performam suas ações e funções na lida com o trabalho artesanal da pescaria. Nascidos e criados no quilombo urbano do Porto de Trás, esses três corpos negros produzem uma composição poética que aborda e costura questões como sobrevivência, convívio, pertencimento, afetos, disputas e as múltiplas possibilidades de relação com o mar. Compartilham com o público suas histórias e experiências (seus contos do mar) nos oferecendo imagens e desenhos espaciais como uma grande rede que se joga na busca por fisgar nossas percepções.
Fotos de Guto Muniz
O espaço inicialmente está vazio e com algumas cordas espalhadas pelo chão. Ao adentrarmos a sala, os pescadores-bailarinos nos cumprimentam e aguardam o momento de nos lançarem suas iscas a fim de nos convidarem a habitar aquelas águas. Vestem roupas cotidianas (camisa de malha e calça jeans e estão descalços). Alternando momentos de solo e outros de grupo, vão puxando, amarrando e desamarrando as cordas, gerando pontes e deslocamentos, fabulando imagens de quem é ora pescador, ora peixe. A repetição de algumas células coreográficas também remete a certa duração, temporalidade e ritualidade, como acontece no dia-a-dia desses trabalhadores. Há o ato de jogar a rede no mar, mas não há a certeza de que o resultado será alcançado.
Há também o momento no qual os bailarinos (Valmilson Nascimento, Arionilson Sá e Guilherme Santos) se dirigem até a plateia para se apresentarem e narrarem sua função específica na pesca. Percebemos então que ali não estão na condição de artistas especializados. Sua especialização é de outra ordem: a pesca e a vida na comunidade, dimensões que permeiam a dramaturgia dessa coreografia movente, que mais se configura numa corpografia. Para as autoras Fabiana Dultra Britto e Paola Berenstein Jacques, a corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória que fica inscrita no corpo através do registro de sua experiência na cidade, uma espécie de grafia. Nesse ponto, arrisco aproximar tal conceito às vivências e experiências que podem ocorrer numa grande ou pequena cidade ou aldeia, pois me interessa sublinhar que a “marca” que fica seria proveniente dos gestos e movimentos que continuamente se reiteram nos modos de ocupação e utilização dos lugares. Dessa forma, em minha acepção, Vamos para a Costa entrelaça as imbricações entre ambiente, corpo negro e ativismo político, gerando operações de visibilidade que recriam, no âmbito artístico, ações cotidianas dessa comunidade pesqueira, reordenadas na moldura cênica por imagens e fabulações pulsantes.
É possível também fazer uma analogia do ato de pescar com a criação artística, ambas estão no campo do risco, não têm fórmulas definitivas. O pescador e o artista dançam com o revés das marés, não as controlam, apenas possuem técnicas capazes de se permitir algum tipo de aproximação, exploração e conhecimento. Há um jogo de cintura, uma ginga criativa no trabalho do pescador e do artista.
A direção de Verusya Correia (pesquisadora, professora e uma das criadoras do Festival de Dança de Itacaré) imprime a essa dança sua natureza contextual, ao mesmo tempo em que questiona e critica modelos hegemônicos de arte contemporânea para se propor e articular outras dinâmicas de movimentação. Uma rasura epistêmica que cria ruídos para certo nicho viciado das artes.
Na sociedade em que vivemos, há uma tendência de se destacar a formação e produção de obras de arte (enquanto atividade sensível e intelectual) de outros saberes e fazeres da vida comum, numa espécie de hierarquização, o que se revela como um efeito do pensamento colonial. De modo que, a técnica artística se sobrepõe às técnicas de profissões consideradas menos importantes. No caso de Vamos para a Costa, podemos detectar uma linha de indistinção entre essa ideia de dança consolidada em oposição à movimentação orgânica dos corpos em seus ofícios na vida cotidiana. Uma dança que se identifica (se vê) coexistindo com uma dança que acontece em linhas de fuga (solicitando outras recognições). Recupero aqui o poeta e filósofo martinicano Édouard Glissant e a questão pelo “direito à opacidade”: uma vez que a transparência tende a criar verdades absolutas e defender um mundo totalitário e fechado às diferenças e singularidades, a opacidade seria não o obscuro, mas a fresta que se desenvolve na abertura à relação com o Outro e a não redução das formas e modos de existência.
A questão da diáspora também pode ser uma ferramenta de leitura do espetáculo: o mesmo mar pelo qual povos africanos foram trazidos para serem escravizados (numa imigração forçada), é também o lugar do sustento para muitas populações negras. É possível pensar uma dimensão diaspórica na linguagem do espetáculo, num jogo entre a própria pesca artesanal e a arte contemporânea como lugares de conversas e contaminações que podem ser desencadeadas por necessidade, imposição ou desejo. Isso sem esquecer que a diáspora abriu traumas e feridas até hoje não cicatrizados. Outro ponto: o mar ali evocado no trabalho, me remeteu também à importância da memória para as culturas negras, como nos diz a poetisa Conceição Evaristo: “o mar vagueia onduloso sob meus pensamentos/ a memória bravia lança o leme: recordar é preciso[1]”.
Com esse trabalho do Núcleo da Tribo recordei os braços e as mãos dos trabalhadores pretos que há séculos vêm construindo esse país que se mostra escancaradamente hostil para eles; e pude conhecer um pouco mais sobre a pesca da Costa de Itacaré: as relações de hierarquia e de confiança, a amizade estabelecida entre aqueles homens, as canoas em sua arrebentação que não atuam somente na busca dos peixes, mas na sustentação da vida em sua forma miúda, contínua e clandestina. Vamos para a Costa fala de resistência. As histórias dançadas são o peixe e o feixe das memórias experimentadas por um corpo trabalhador. “Tem dias que a pesca é pequena, em outros é farta e abundante”, nos relata um dos pescadores. Tem dias que é do peixe e outros do pescador.
Mas, no final, quem decide é o mar, a Calunga Grande.
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(Agradeço a interlocução preciosa com os artistas e pesquisadores Altemar Di Monteiro e Daniele Avila Small para a escrita deste texto).
[1] Recordar é preciso. In: Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.