– Por Victor Guimarães –
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica ao espetáculo Velocidade, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum, assistido em 3 de janeiro de 2025 no CCBB-BH.
Título
Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro
Ana Martins Marques, O livro das semelhanças
O décimo espetáculo do grupo mineiro Quatroloscinco Teatro do Comum se apresenta como uma peça-livro. Mas se Velocidade fosse mesmo um livro, de que tipo seria? Certamente um experimento literário com vocação para a abertura, um jardim bifurcado e sinuoso, firmemente indeciso entre o ensaio e a coletânea de contos, entre o drama e o poema. Algo próximo de W. G. Sebald, de Edgardo Cozarinsky, ou da poesia sempre grávida de outras coisas de Ana Martins Marques. Assim como Ana quis escrever “um livro de poemas / que sejam ideias para livros de poemas”, Velocidade é uma peça-livro cheia de ideias sobre o que é ser uma peça-livro. Por sorte (a nossa), as daqui são ideias-formas: não conceitos abstratos suspensos sobre o palco, como tantas vezes no teatro contemporâneo, e sim suculentas, carnudas ideias teatrais, que ganham corpo na relação sempre renovada entre os atores, os bonecos, os objetos de cena, a espessura da luz.
Fotos de Igor Cerqueira
Velocidade, nos diz o programa, nasce de uma reflexão sobre o tempo, com inspiração primeira no ensaio da escritora mexicana Vivian Abenshushan, “Notas sobre os doentes de velocidade”. Nasce de uma meditação tardia sobre os anos de isolamento da pandemia, da desaceleração forçosa que se seguiu ao vírus para muitos, do encanto enganoso diante dos macacos tomando de volta as cidades, mas também da frustração com esse tempo hiperacelerado que se seguiu à suspensão. É uma resposta expressiva ao momento pós-pandêmico na história das velocidades, tomado pela promessa da inteligência artificial, do progresso exponencial e súbito, e que é também o tempo das máquinas de guerra cada vez mais velozes, dos genocídios ultravisíveis e, no entanto, imparáveis. O tempo, esse nosso tempo, em que a universidade de Oxford elege a expressão “brain rot” (podridão cerebral) como a palavra do ano de 2024: a deterioração do estado mental causada pelo consumo excessivo de material trivial. Esse tempo desperdiçado nas telas que apodrece o interior de nossas cabeças.
Não há lugar mais propício para revitalizar o tempo, para lançar um desafio ao tempo, que o teatro. Aqui, no escuro, escutamos uma voz mansa, matinal, sonolenta, que nos conta um sonho estranho, recheado de menções a pessoas e lugares que não conhecemos, com uma narrativa que parece não levar a lugar nenhum – a não ser ao tempo perdido aqui, em comum, no teatro. A ansiedade do cérebro apodrecido pelas telas deseja encurtar o relato, vai, vai, direto ao ponto, por favor – mas aqui não se pode arrastar para o lado nem interromper. Estamos entregues, de mão beijada, a esse tempo retorcido – e ainda bem.
Os elementos são poucos, precisos e polivalentes. No espaço do palco, cinco atores, cinco bonecos feitos à sua imagem e semelhança, uma mesa-quadro-negro e sua versão em miniatura, algumas cadeiras, dois instrumentos musicais, vários fios metálicos que pendem do teto e servem para pendurar coisas. No tempo da peça, variações teatrais sobre a estrutura linear de um livro: uma capa, algumas dedicatórias, um prefácio, seguidos de sete partes tituladas, algo parecido a um posfácio, e uma contracapa. Dois vetores de criação se entrelaçam: a torção do tempo, onipresente, multiforme, surpreendente, e o diálogo com a forma do livro, que serve como plataforma para a criação, mas que logo deixa de importar diante da inventividade mais direta do que vemos em cena.
Se as operações temporais não têm a precisão de uma forma paradigmática, como em Marcha para Zenturo (2010), o espetáculo do Espanca! com o Grupo XIX de Teatro, os gestos são, no entanto, mais variados. Enquanto um diálogo se desenrola, um ator marca paralelamente o andamento, dizendo as notações musicais clássicas em italiano (adagio, largo, presto) enquanto percute um instrumento, e a ação retorce por dentro nossa experiência do tempo da cena. A duração das sete partes da peça-livro é variadíssima, e vai desde os poucos segundos de uma imagem fixa (os cinco atores seguram o quadro-negro com uma pergunta enquanto parecem posar para uma foto) até longos minutos de escuta qualificada de um diálogo entre um filho e um pai, em língua de sinais, traduzido simultaneamente em voz cálida e emocionada. Embora as velocidades se esgarcem, para nos fazer viver o tempo em sua variedade, a peteca do ritmo nunca cai.
Os humores da cena também variam muitíssimo. Há desde momentos densos, ralentados, como a cena do filho que volta da guerra e se esforça para se comunicar com o pai, que parece habitar outro tempo, até explosões cômicas rapidíssimas, como a quarta parte, que encena uma reunião online cheia de deliciosas expressões em inglês corporativo, sobrenomes burocráticos, livros-computadores, luzes que se acendem e se apagam como aberturas e fechamentos de câmera, num workflow vertiginoso, que em poucos minutos estabelece cinco personagens bem marcados, com seus traços de personalidade e suas histórias singulares. Em Velocidade, a lentidão nunca é paralisia; a rapidez nunca é pressa. O espetáculo faz variar o tempo para recuperar alguma elasticidade, alguma respiração nesse tempo ultra-acelerado e uniforme que nos quer tragar a todos.
Se Fauna (2016) era uma peça-conversa, com muito de acontecimento, “instaurando espaços lacunares a serem preenchidos por cada espectador com suas questões, sensações e histórias”, como escreveu Clóvis Domingos aqui no Horizonte da Cena, em Velocidade a forma do convívio é menos entregue às circunstâncias da participação da plateia. Entre uma conversa e um livro, claro, há um abismo: ainda que se esgarce no tempo da leitura, ainda que apodreça na estante ou seja rasurado por mãos inquietas, ainda que se transforme em cada um de nós, um livro ainda é um objeto fechado, encapado por “um biombo/entre o mundo/e o livro”, como escreveu Ana Martins Marques. O afã convivial, uma das marcas do Quatroloscinco, segue presente, como nas perguntas iniciais à plateia para testar a surpresa das vozes, ou na participação mais intensa já perto do final, mas Velocidade deixa pouca margem ao acaso. As coreografias são precisas, como na luz e na música que constroem a experiência aterrorizante de um globo da morte que nunca vemos, ou na cena hilariante da “queda livre talk show”, em que os atores se revezam velozmente em uma cadeira no centro do palco, para responderem a perguntas capciosas lançadas pelo inconsciente selvagem de seus avatares de madeira.
O diálogo com o cinema, presente na codireção do cineasta Ricardo Alves Jr., não se dá nas projeções audiovisuais, tantas vezes utilizadas como uma muleta fácil no teatro contemporâneo, e sim em um uso sugestivo do fora-de-campo (já característica de outros trabalhos de Ricardo para o teatro) e na transfiguração impositiva do tempo. Se no cinema as durações são quase sempre inapeláveis, pois impressas de uma vez por todas no tempo do filme, há algo dessa imposição da montagem cinematográfica em Velocidade: nas partituras precisas, no tempo esticado a cada vez com precisão. Perder tempo, sim; desperdiçá-lo, jamais. Para torcer o tempo, afinal, é preciso impor-lhe um ritmo.
Embora não tenha acompanhado a trajetória inteira do Quatroloscinco, arrisco dizer que Velocidade é o espetáculo de maturidade do grupo. Tem jeito de culminação de caminho, de variação meditada sobre as obsessões já experimentadas, de busca serena por novos ares. Se não tem o frescor de É só uma formalidade (2009) ou a depuração minimalista de Ignorância (2015), tampouco tem o excesso de camadas de Tragédia (2019). Velocidade é sóbrio, equilibrado em sua irregularidade, azeitadíssimo no jogo intenso dos corpos. Se olha com perspicácia para o presente e vislumbra um futuro dissidente nos experimentos da encenação, o espetáculo tampouco tem vergonha de fazer teatro dramático, confiando em um texto sólido e no carisma de cinco atores experientes. O tempo que se torce e retorce aqui não é apenas uma provocação. Velocidade forja uma transfiguração amadurecida e mansa do tempo, como uma manhã partilhada depois de um sonho bom.
Ficha técnica
Atuação: Assis Benevenuto, Ítalo Laureano, Marcos Coletta, Michele Bernardino e Rejane Faria
Direção: Ítalo Laureano e Ricardo Alves Jr.
Dramaturgia: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Direção de arte: Luiz Dias e Caroline Manso
Figurino: Caroline Manso
Assistência de cenografia: Bárbara de Freitas
Criação de luz: Marina Arthuzzi
Trilha sonora: Barulhista
Composição das músicas ao vivo: Marcos Coletta e Michele Bernardino
Sonorização: Daniel Nunes
Orientação de movimento: Kenia Dias
Orientação vocal: Ana Hadad
Filmagem: Janaína Patrocínio
Bonecos: Agnaldo Pinho
Cenotécnica: Helvécio Izabel
Assistência de produção: Yasmine Rodrigues
Produção: Grupo Quatroloscinco Teatro do Comum