Reflexão a partir da performance Unha Postiça, do Coletivo Tropeço.
– por Soraya Martins –
Unha Postiça é uma performance concebida por mim e Anderson Feliciano, com texto e direção de Feliciano, apresentada pela primeira vez em 12 de junho de 2017, no contexto da segundaPRETA. A performance foi apresenta, desde então, na Segunda Black, no Rio de Janeiro; na Mostra Negras Autoras e na Casa do Beco; e nas temporadas que o Coletivo Tropeço fez em São Paulo, no Centro de Referência da Dança e em Belo Horizonte, no Teatro Espanca!
Analisar trabalhos pensados e realizados por mim diz da vontade de praticar meu pensamento como criação. É um ato, simultâneo, de criar e resistir, já que no meu entendimento resistência é, também, visibilizar o que fazemos diariamente. Além disso, esse exercício, da/o própria/o artista/crítica tecer análises sobre o seu trabalho, foi uma possibilidade levantada durante várias conversas das/os críticas/os do Horizonte da Cena. Em tempos de isolamento social, decidi voltar-me para o meu trabalho, não como uma ação narcisista, mas como possibilidade de pensa-lo analiticamente. E com uma pitada, sim, de paixão.
Unha Postiça foi elaborada a partir do desejo pessoal de falar das minhas solidões – afetivas, paterna, amorosas, diárias – e fazer delas proposta estética, potência criadora assim como o prazer o é. A performance se realiza em 15 minutos. Começa com uma dança. A dança da laranja. A parede, a laranja e eu. Uma dança da solidão em que meu corpo, no equilíbrio precário da coreografia, na tensão de não deixar a laranja cair e de fazê-la passar por várias partes do meu corpo, sem que o espectador que me olha de costas a veja, se joga ao som de uma música romântica italiana intitulada Oggi sono io, em português, tradução literal, “Hoje sou eu”.
Em italiano, quando se quer enfatizar o sujeito da frase, ou melhor, quem pratica a ação, desloca-se o sujeito para depois do verbo. Passa-se de “oggi io sono” para “oggi sono io”. Logo, mantendo a mesma ênfase que a língua italiana coloca, opto por traduzir o título por “Hoje eu sou eu”, reforçando duplamente o pronome de primeira pessoa singular: coloco-o antes e depois do verbo, reforçando o “eu” que prática a ação.
Danço e canto essa música por cerca de seis minutos, depois, propositalmente, deixo a laranja cair. E eis que ela se revela ao público. Ela cai. Vou em sua captura para poder descascá-la lentamente. Aqui o tempo não tem pressa: sou eu e o descascar da laranja. É tempo de pensar no passado e inventariar possibilidades desse passado se fazer presente, no presente, a partir de um outro devir. A laranja está descascada. A corto em duas partes. A chupo. Preciso sentir o suco dela regando a minha garganta para poder falar o texto. Falo o texto. E naquele momento eu sou eu, sou corpo em performance, corpo cultural, tanto individual como coletivo, mas que não tem a pretensão de representar nenhuma outra mulher negra, pois Unha Postiça é a recusa dos essencialismos – formas de amar e se expressar no mundo – impostos aos corpos femininos negros, impostos ao meu corpo. Não represento ninguém, mas minha subjetividade pode perpassar por outras subjetividades.
A laranja me faz voltar à infância, ou melhor, à pré-adolescência em que brincava de dança da laranja imaginando dançar com meu futuro amor, desejando ainda que a laranja caísse para que meus lábios com os lábios do meu futuro amor se encontrassem. E de repente, a Alegria! Agora, se deixo a laranja cair no momento da dança, me encontro com a parede branca e tudo que ela simboliza. Esse concreto armado branco, do qual meu corpo quer se esvair, é a materialidade que diz do preterimento que as mulheres negras sofrem, tanto dos homens brancos quanto dos homens negros; diz do amor como construção social calcada no racismo estrutural e estruturante da sociedade brasileira. Eu danço a dança da solidão que é, sobretudo, uma coreopolítica como denomina André Lepecki[1].
Nessa perspectiva, a dança da laranja, em Unha Postiça, se coloca como coreografia de um discurso pessoal, político e poético que sabe do chão onde pisa, tenta interrogar o contexto social de onde ela, dança, emerge e partilhar, principalmente, o invisível e o não dito a partir não do valor explicativo, elucidativo ou da narração em boa ordem, mas do valor icônico, fabular e mostrativo das imagens associativas que decorrem dessa dança. Tento deslocar a brincadeira de criança, a imagem da dança ingênua e descompromissada, para outro nível de inteligibilidade e legibilidade, pois essa dança de agora forma imagens que oferecem ao público a chance de lê-las, ou seja, de analisá-las e interpretá-las de maneira crítica e reflexiva.
Unha Postiça, 2019. Foto: Mayara Laila.
E a música cantada em italiano por Mina, intérprete da canção, e eu. Clichês românticos cantados em alto e bom som, para ironizar a própria ideia de amor romântico construído socialmente e que, desesperadamente, por muito tempo na minha vida busquei, e nessa performance decidi me dar a chance de vivê-los, mesmo que por quase seis minutos, mesmo que para desmontá-lo peça a peça e para entender que, como falante fluente do italiano, tal língua também constitui meu corpo da negrura nas suas camadas, subjetividades, afetos correlatos, contatos e contaminações, contradições e quereres.
E non so perché quello che ti voglio dire
Poi lo scrivo dentro una canzone
Non so neanche se l’ascolterai
O restera soltanto un’altra fragile illusione
Se le parole fossero una musica
Potrei suonare ore ed ore, ancora ore
E dirti tutto di me.[2]
Após as apresentações de Unha Postiça, sempre me perguntam: “Por que cantar em italiano?” Com o seguinte adendo: “Um samba, uma Alcione cairia bem melhor!” De maneira direta coloco que, para esse trabalho, escolhi por motivos estéticos, políticos e de identidade, a música cantada por Mina, e que o italiano, assim como as músicas da Alcione, faz igualmente parte do meu processo de construção identitária, sim, afrocentrada. Logo, a língua e a cultura italianas também estão em mim. Logo, posso me opor à supremacia branca e eurocêntrica e, ainda sim, adorar e ter como minhas Bologna, Roma e Lecce.
Aqui, quero estender um pouco mais minha colocação. Para mim, é tarefa fundamental, tanto para os pensadores, escritores, críticos quanto para as/os artistas negras e negros da cena romper como os modelos hegemônicos de pensar, ser e ver que obliteram a capacidade das negras e dos negros se enxergarem a partir de outras perspectivas, de inventar, descrever e imaginar modos que sejam afrofabulares, o mesmo que dizer libertadores. Sem isso, como questiona bell hooks (2019), como se pode desafiar e convidar os aliados (uma categoria instável) e os amigos a ousar olhar para as negras e os negros de modos diferentes, a ousar quebrar sua perspectiva colonizadora?
O escritor James Baldwin foi o primeiro negro a colocar os pés, em 1951, em Leukerbad, um vilarejo suíço completamente alheio à luta pelos direitos civis. Lá, como era de se esperar, encontrou o espelho do racismo disseminado pelo mundo. Sua estadia nos Alpes resultou na escrita do ensaio “O estranho no vilarejo”, que Teju Cole toma como guia-base para refazer a viagem de Baldwin e escrever, sessenta anos depois, “Um corpo negro”. Neste ensaio, em um certo momento, Cole rebate a fala de Baldwin que se coloca muito sensível a sua própria sensação de exclusão do mundo da arte.
Em certo sentido sutil, de maneira realmente profunda, tratei Shakespeare, Bach, Rembrant, as pedras de Paris, a catedral de Chartres e o edifício Empire State com uma atitude especial. Não são criações minhas na verdade, não contém minha história; posso procurar para sempre e não encontrarei nelas nenhum reflexo meu. Eu era um intruso; aquele não era meu patrimônio. ” (COLE, 2018, p. 137)
Nesse ponto, o autor de “Um corpo negro” diz se distanciar de Baldwin, mas não discorda da sua tristeza particular (sim da abnegação que o levou a ela), e decreta: “Bach, tão profundamente humano, é meu patrimônio.”[3] E acrescenta que jamais trocaria, sob nenhuma condição, a beleza da poesia iorubá por sonetos de Shakespeare, ou as koras do Mali pelas orquestras de câmera de Brandemburgo. Cole se diz feliz por dispor de tudo isso e afirma que essa confiança despreocupada é, em parte, uma dádiva do tempo, um dividendo da luta das pessoas das gerações anteriores.
Divido a mesma fúria que James Baldwin sentia do racismo que lhe impunha – ocorre igualmente comigo – limites por todos os lados. Mas assim como Cole afirmou que Bach é seu, digo que a língua italiana é também meu patrimônio. Nela, me crio e me recrio, invento possibilidades de ser negra no mundo, teço minhas singularidades. Por isso, nessa performance sobre as minhas solidões, era imprescindível lançar mão de uma maneira de me expressar que falasse também, e sobretudo, das minhas particularidades e desejos, pois minhas identidades se dão em movimentos e mediações.
Para além das particularidade e desejos, me interessava colocar em cena existências explosivas e modos vários de expressar e ser mulher(es) negra(s) no mundo, me interessava não ficar presa a uma imagem criada sobre meu corpo, espécie de vítima eterna de uma essência, de um parecer pelo qual não sou responsável. Isso tem consequência direta na noção de representatividade – principalmente quando se trata de mulher(es) negra(s) – que pode e deve ser mais explosiva e plural, ou seja, fora da caixinha somente de mulher forte, guerreira, batalhadora, por exemplo. Representatividade importa, mas uma representatividade oca e redutora de existências só serve para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial.
Mais que criticar e resistir, creio que seja de fundamental importância por parte das/os artistas negras e negros, igualmente das/os intelectuais insurgentes, laborar com rigor, no bom sentido da palavra – de trabalho e de elaboração – na transformação das imagens. Entender a partir de qual perspectiva política se olha, se sonha, se cria e se age, pois forjar espaços para imagens transgressoras, para a visão rebelde fora da lei, de acordo com hooks (2019), é essencial em qualquer esforço para criar um contexto de transformação. bell ainda coloca que, se houve pouco progresso nesse sentido, é porque as negras e os negros transformam as imagens sem alterar os paradigmas, sem mudar perspectivas e modos de ver.
E o tempo aqui trança possibilidades. Nesse sentido, ele – tempo – em Unha Postiça trabalha para que a performance não se dê na urgência do aqui e agora da ação. A ação precisa ser oferecida ao público macia e fértil para que se instaure. O descascar da laranja é da ordem da maciez que trança minhas memórias e esquecimentos na tentativa de reelaborá-los na fabulação que teço de mim mesma a partir do passado, para permitir que outra história tome forma. Aqui, o tempo, não o expandido, mas o da explosão, de saltos, sobressaltos, em espiral, é escolha estética, forma, mecanismo de tensionamento e fissura das melancolias. Unha Postiça é sobre o tempo passado a que sempre voltamos mesmo quando se cria, ou principalmente por causa disso, novas formas de imaginar e construir o futuro.
Foto: Pablo Bernardo. Apresentação de Unha Postiça na segundaPRETA, 2017.
Eu vou correr. Eu vou correr muito. Correr muito. Correr até as minhas pernas não aguentarem mais. E quando elas não aguentarem mais, eu vou continuar correndo, correndo muito, correndo com todas as minhas forças. E quando eu tiver muito cansada, eu vou cair. Eu vou cair na terra molhada. Quando eu cair, eu vou enfiar as minhas mãos na terra molhada e ficar com as minhas mãos enfiadas na terra até o silêncio acabar. Se ele não acabar, nossas mãos, nossos cabelos, nossos corpos virarão terra também. Terra espessa, terra grossa, terra molhada. Prontas para o plantio. Nesse momento, uma agricultora virá e semear sementes de algodão. Eu seria uma plantação de algodão. Muito tempo depois de serem semeadas essas sementes, outras mulheres virão e colherão esse algodão. Essas mulheres vão colher esse algodão cantando, cantando um canto tão profundo que a terra voltará a se encher de silêncio.[4]
E esse texto é sobre a possibilidade de não ser forte somente, de poder existir caindo, ou melhor, sobretudo porque se cai e nessa queda, na não lisura do chão, encontrar terra fértil para fazer da queda mesma um jogo que joga com o singular, trança com a ancestralidade preta – axé e alegria – da ordem da renovação. E isso não tem a ver com romantizar as opressões, mas com reconhecer que os espaços e as pessoas oprimidas têm, sim, a capacidade de transformar e imaginar mundos alternativos e novos discursos. E sobre axé e alegria, fundantes para quem sobreviveu à travessia. Chegar é alegrar-se e recriar-se em diáspora. Tecnologia. Alegrar-se com o plantio, no sentido de reinventar as “memórias da plantação”[5] e redistribuir poderes e imaginários que resistam e anunciem a partir das velhas e atuais características coloniais.
Já o silêncio pode ser pensando aqui por duas vias: não falar apresenta um saber lunar, também da ordem da renovação e uma estratégia para sobreviver e sobre viver. Em Minas, os escravizados ficavam o dia inteiro sem falar porque, muitas vezes, escondiam dentro da boca diamantes ou o ouro que, no futuro, seriam responsáveis pela sua alforria e dos seus demais. Esse silêncio, é o silêncio do “comer quieto”, de “comer pelas beiradas”, uma tecnologia que liga os mundos, possibilita falar com quem já não está mais perto e com quem virá, um exercício mental de troca e criação de saberes e estratégias, uma possibilidade de existência em meio aos açoites e às explorações; e o silêncio, de ser silenciado, se ele não acabar, foi e é sistematicamente quebrado por entre as máscaras de flandres, a partir das brechas e fendas, do corpo como texto-discurso, como escrita hieroglífica. Ele semeia o antes-o-agora-o-depois-e-o-depois-ainda no sonhar as imagens sem conhecê-las como fazem os Maxakalis no Vale do Mucuri.
É suspender o céu.
Termino a performance chupando a laranja, na verdade, comendo o seu bagaço. Uma forma de dizer: “eu como, você, existência reduzida, passado obsidiante”, para melhor digeri-los, uma espécie de “fina antropofagia [que] se vislumbra no gesto de devorar o passado como forma de reelaborá-lo, como forma de atravessar a dor e afirmar o mundo. “Eu vivo”, ela parecia dizer, ou “eu voltarei”: transmutação”[Ver texto de Mário Rosa: https://www.horizontedacena.com/sondagens-sobre-quedas-tropecos-e-atravessamentos/ ]; também como forma de afirmar minhas identidades em várias matizes do conhecimento, desde as mais escuras até as mais pálidas, e de construir a minhas experiências e identidades na opacidade. Um direito todo meu.
[1] LEPECKI, Andre. Coreopolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. (2011) 2012.
[2] Parte da música Oggi sono io, de Alex Britti.
[3] COLE, Teju. Um corpo negro. In: Serrote: uma revista de ensaios, artes visuais, ideias e literatura 2018. Número 26, p.132-140.
[4] Texto da performance Unha Postiça.
[5] Referência ao livro de Grada Kilomba, Memórias da Plantação.