— por Mariana Lage — Um ensaio e/ou algumas reflexões.
Fotos de Mirela Persichini (1), Mariana Lage (2) e Luiza Palhares (3, 4 e 5)
“O queer não é. Assim como a performance não é”, escrevem Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse, em prólogo para a edição revista do zine O Que Você Queer. O queer e a performance seriam formas de “pensar o mundo como lugar em que o estranhamento é o nosso habitat, onde toda familiaridade passa a ser suspeita. O objetivo da poesia que fazemos é remover a película de familiaridade que cobre o mundo. É uma poesia-despertador”, escrevem mais adiante. Juntas em diversos âmbitos vivenciais e artísticos, Fernanda e Ana Luisa colocam em prática as proximidades entre o queer e a performance. “A performance é queer”, sintetiza Fernanda em entrevista.
Das múltiplas aproximações entre a performance e o queer há o fato de que ambos se comportam da maneira que menos se espera. Tratam-se de práticas que não se fixam, que questionam e testam os limites e ampliam as bordas do possível e do experienciável, práticas que são imprevisíveis e, por que não, também indomáveis. O queer e a performance estão juntos(as), nesse sentido, como potência criativa.
Pra começar, o queer divide com a performance uma característica basilar: o fato de designarem uma ação em movimento, ou algo sempre transitório e aberto a múltiplas, diversas e, por vezes, contraditórias interseções e/ou atravessamentos. Parecem comportar-se como conceitos que apontam para espaços de trânsito. Mais do que delimitar, de forma estanque e estável, uma definição, uma poética, uma prática, um comportamento, apontam para um desejo de realização cujo resultado não se fecha, não se resolve ou não se pereniza; não dá respostas únicas e/ou unívocas. Mais uma dinâmica e um experimento sempre se realizando do que uma fixação e/ou atualização contingente de uma forma-fórmula já dada.
Se há uma fórmula para o queer e para a performance é a do aberto, da realização em ato, aqui agora, de uma faceta do desconhecido – do ainda não conhecido e/ou colonizado. Sugiro, ainda, como característica basilar que a performance divide com o queer essa potência de realizar em ato o “e/ou”. Sendo uma coisa e outra, ao mesmo tempo, uma e o seu contrário, vivendo, encarnando, os paradoxos de uma forma majestosa (queen and kings queer – drags, faux e/ou whatever) e ampliando o campo do possível.
No que concerne a performance, se não todos, a maioria dos livros que tratam do assunto anunciam, seja de forma breve ou demorada, a dificuldade de delimitar em poucas linhas e características o que seja essa linguagem. Enunciam também o paradoxo que é erigir um conceito que seja maleável o bastante para conter tantas manifestações e tantos empregos diversos para a palavra, a poética, a ação concreta cotidiana ou artística. Há quem critique a performance – como linguagem e como conceito – por isso; desqualificando-a, depreciando-a e/ou descartando-a como indigna de atenção e/ou seriedade. Há quem encontre nessa maleabilidade a sua potência.
Judith Butler, em uma de suas inúmeras entrevistas e palestras, simplificando a explicação do termo queer, disse que “o queer não é uma identidade”, antes, é mais “um movimento que toma uma direção diversa da que é esperada” (1). Queer, em resumo, são formas de vida, identidades de gênero, vivência da sexualidade, atos de fala etc. que contestam normas dominantes. A tradução literal, e cujo emprego por tanto tempo foi pejorativo, é: estranho. Mais do que a fixação de uma identidade (“eu sou isso e tão somente isso”), o queer está no campo da ação, cotidiana, reiterante. “Não só dizemos quem somos, mas fazemos quem somos e pedimos ao mundo que aceite. Eu diria que isso é performatividade”, resume Butler simplificando, mais uma vez, o insimplificável (2).
Nesse sentido, embora haja toda uma discussão sobre a adequação do uso dos termos performatividade e performance para se referir ao queer e/ou às identidades de gênero, é também no campo da ação e dos gestos que o queer compartilha outra característica basilar com a performance. Ambos somente existem em ato. “Performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que reconheço, da virtualidade à atualidade”, escreveu Paul Zumthor, em uma de suas definições/descrições da performance. Num outro momento ele disse que a performance implica uma competência específica que se traduz como um saber-ser. “É um saber que implica e comanda uma presença e uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e fisioquímicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (ZUMTHOR, 2007, p. 31).
Queer na ação concreta e diária – e por que não na performance artística –, contesta as normas sociais de gênero e de sexualidade que são construídas, atualizadas e mediadas linguística e corporalmente. Como a performance, o queer é uma movência. É aquilo que/onde não está. É o lugar do experimento, do inapreensível mas experienciável, do imprevisivel, do mutante. Seu núcleo é o movimento que, como explica Butler, “toma uma direção diversa da esperada”.
Fernanda Branco Polse, proponente ao lado de Ana Luisa Santos, Guilherme Morais e Igor Leal do(a) Trans Residência Experimento Queer, disse num dos dias de conversa com o público durante a programação do 16º Festival Cenas Curtas Galpão Cine Horto: “o queer não me tranquiliza. Ele tira meu sono. Eu não tenho respostas, eu não concordo sempre comigo. O meu desejo muda o tempo inteiro, o meu corpo muda, o meu sexo muda, o meu cabelo muda. Então, o queer veio para mim como uma pulga atrás da orelha, depois como um cão que late, como um despertador. O queer é um tipo de crise, uma lente, um jeito de enxergar o mundo: tudo muda”. No início da fala, a artista já dava o tom da relação constante com a alteridade e a diversidade: “Eu não quero ser um corpo que ameniza as diferença, corpo que alivia as consciências, corpo aspirina, maracugina”. “Saí do armário para ser um ser que se coloca”, pontua.
Se o “queer não te define”, mas “te expande”, como defende Ana Luisa Santos (3), é preciso constante coragem nesse processo sempre presente de estar atento ao próprio desejo, à própria organização maleável, mutante, selvagem da psique, aos impulsos e aos atravessamentos com os quais a sexualidade e a identidade se movimentam e se (re)organizam. É preciso, diria, paz de espírito e clareza mental, e, por que não, um certo tônus da presença (mindfulness), aqui e agora, para assumir e atualizar no plano da ação, do gesto e dos quereres, as diversas formas com que a identidade se atualiza cotidianamente, ao longo dos tempos.
Assim, pois, o drama do queer – um dos tópicos do título desse ensaio – tem múltiplas facetas. O primeiro, sem pensar que há uma hierarquia, é a ausência de reconhecimento social e coletivo da maleabilidade e complexidade das identidades. A negação de reconhecimento social, e portanto, de direito de existência, para aquilo que diverge do estabelecido e do normatizado. E nesse sentido, toda a obra filosófica de Judith Butler se inscreve nessa senda: não só dos estudos e teorias queer, mas das minorias, da luta contra a precariedade, por dignidade e reconhecimento, e das relações de poder e políticas aí envolvidas. Como demonstra o excelente livro de Sara Salih (4), desde sua tese de doutorado em Hegel e em seus trabalhos posteriores claramente influenciados por Foucault e Derrida, a escrita filosófica de Butler mantém, como uma preocupação de fundo, discussões relacionadas ao desejo, à alteridade e à luta por reconhecimento.
O queer pode ser um drama, sem intenção pejorativa com essa palavra, justamente porque uma parte da sociedade nega ao outro o seu direito de ser sua própria identidade. Trata-se da anulação a inúmeros outros da possibilidade de se autointitularem, autodenominarem etc; anulação da capacidade de cada um de ser livre, autônomo(a) e soberano(a). Pode ser um drama também na medida em que se acredita que o queer é uma panaceia para todos os males: pensar que o queer é algo dado, uma fórmula a ser adotada. Não, o queer é (re)inventado na medida em que é vivido por cada um, que deseja mais do que se identificar no estilo “isto é aquilo”, experimentar e deixar-se aberto ao movimento de suas descobertas. Este é aliás um dos aspectos do seu darma. É drama na medida em que se pensa que o queer é uma sombrinha sobre a qual se pode alojar comodamente enquanto chove canivete (de ausência de reconhecimento) lá fora. Se é uma sombrinha, é apenas como campo de partilha e encontro e diálogo das múltiplas investigações das configurações identitárias.
O queer é dármico porque ele lança luz sobre um caminho que apenas uma pessoa – e tão somente uma pessoa – pode traçar: o caminho de sua própria identidade. Elke Maravilha, quando perguntada se se identificava como faux queen (5), respondeu: “Eu sou Elke”. No drama (queen) queer, escolhe-se a palavra queer como um adjetivo, um predicado fixo, como se por si só já provesse as respostas e o caminho. É drama por não entender que o queer é assumir seu próprio ser desviante, único e irrepetível. (“Vai ser gauche na vida” – poderia ser um imperativo queer, retirado do poeta mineiro). E, ao adotar tal adjetivo ou predicado, querer se submeter ou encaixar ou ainda criar uma nova norma, com a qual seria produzido um petit (e falso) conforto de pertença. Se somos semelhantes é na diversidade e na movência. E também na ação de reconhecer e lutar pela identidade, dignidade e liberdade alheia, de todos. Este é o caminho do darma (6).
No darma (queen) queer, você diz: “eu sou, eu sou”, e isso deveria ser o bastante para afirmar sua identidade livre, autônoma e soberana. Mas o darma também não está dado, e é preciso colocá-lo como uma luta diária – por si próprio e pelo outro. Soberania para dizer: “eu sou”. É queer por se recusar a encaixotar-se ou reduzir-se a uma norma ou a uma expectativa. Nesse caminho, contudo, nada é entregue de mão beijada, pois a experiência de descoberta e realização do self só pode ser feita pelo próprio indivíduo. Com todos os seus erros, acertos, percalços, desafios e conquistas. É drama quando se escolhe livremente submeter-se. É darma quando a escolha é “ser, ser”, “eu sou, eu sou”.
Nesse sentido, vale lembrar que o nome dado por Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse ao zine que desenvolvem é também uma pergunta em aberto: o que você queer? A pergunta que aproxima queer de querer e/ou quereres ilumina essa chamada à responsabilidade no norteamento das próprias ações e escolhas. É chamar para o protagonismo da ação concreta e cotidiana essa liberdade, autonomia e soberania de ser quem se é. Ponto. Sem adjetivações ou predicados. “Eu sou”. É por exemplo testar as bordas do feminino e/ou masculino, criando e performando na vida novas formas de ser, existir, coexistir, relacionar, gozar, amar, reconhecer e respeitar. É se colocar à margem das normas simplesmente porque as normas do que é aceito e reconhecido como masculino, feminino e/ou como sexualidade (hetero, papai/mamãe) não lhe são confortáveis. A diversidade só pode existir posta em prática. E, claro também, respeitando-se o direito à vida, à dignidade e à liberdade.
Experimento Queer
No texto “Por uma performance queer ou a diferença entre desigualdade e diferença”, publicado no terceiro zine O Que Você Queer, Ana Luisa escreve “eu sou uma interrogação”. Esse campo do aberto que o queer divide com a performance ajuda a descrever bem as propostas e os resultados da(o) Trans Residência Experimento Queer (TREQ), acontecido em setembro de 2015 no Galpão Cine Horto e que deve ter uma segunda edição em 2016. “O principal objetivo da trans residência não existe. Porque são vários, somos vários, sem hierarquização, um exercício de abertura entre os integrantes e seus espaços. Em convocatória aberta a qualquer pessoa, artista ou não, ativista ou não, interessada em experimentar, conhecer e discutir sobre arte, política e gênero, colocando a cara e o corpo no sol, porque acreditamos ser uma questão prática. Gerando dispositivos de afetações críticas entre arte e ativismo, explorando estruturas alternativas nas artes visuais e cênicas, ampliando toda e qualquer tipo de categoria”.
Ocorrido ao longo de uma semana, o(a) TREQ se configurou de múltiplas formas: uma sessão de bate-papo em parceria com o site Nada Errado, uma residência artística em performance, “apresentações” de “atos entre” as cenas curtas, uma oficina de zine e uma participação na feira de publicações independentes. Entre todas as ações, o norte se dava pelo desejo de propor um espaço de investigação – coletiva e individual – do que é o queer e, em especial, de como é vivenciado por cada um. Dinâmicas de corpo, estratégias de sensibilização, striptease maré e oficina de pós-pornô foram guiadas com o intuito de deslocar o estranho e o familiar. Estratégias de tentar/testar naturalizar a diversidade a ponto de esgarçar as noções de estranho. E colocar as diferentes formas de viver a sexualidade e o gênero no centro das ações, investigações e conversas cotidianas.
Ricardo Miskolci disse, em palestra do I Seminário Queer: Cultura e Subversão das Identidades (7), que a utopia seria a chegada de um tempo histórico em que a diversidade seria tão socialmente reconhecida e aceita que a adoção do termo queer se tornaria redundante e desnecessária. Mas, até lá, a dimensão política de ações como o(a) Trans Residência Experimento Queer, o zine O Que Você Queer, o espetáculo Trans, e outras vivências como o Campeonato InterDrags de Gaymada, os Afazeres Queer, o Beijo no Seu Preconceito, as festas Miss Dengue e Duelo de Vogues, ações dos coletivos Toda Deseo e Montarya entre outros, além de filmes, performances e bandas musicais, assim como a vivência prática cotidiana, consciente e reflexiva, é tornar visível e concreta a diversidade e lutar por seu reconhecimento. O direito de ser – sem submissões, sem necessidade de permissão ou justificações, sem constrangimentos, sem violências de qualquer ordem.
E a questão salutar do reconhecimento é que ele envolve e deve engajar a todos. Não adianta eu ter meu direito de existência, de liberdade e dignidade reconhecido e respeitado se há inúmeros outros que ainda são alijados desse direito básico. Esse é o caminho do darma e é por isso que o queer é dármico, pois, como se diz comumente no Sikh Dharma, “a minha vitória é a vitória de todos”. E essa vitória então, quem sabe, poderia realizar a utopia vislumbrada por Miskolci.
*Este ensaio, sem pretensão acadêmica, é resultado de frequentes conversas com as artistas e performers Fernanda Branco Polse e Ana Luisa Santos, surgido, em especial, do desejo em dialogar sobre o queer a partir da performance como linguagem artística, dos zines O que você queer? e do(a) Trans Residência Experimento Queer (TREQ).
REFERÊNCIAS:
(1) Conferência magna de Judith Butler no I Seminário Queer: Cultura e Subversões das Identidades, disponível em: http://youtu.be/S7g22OlSFK4
(2) Entrevista de Judith Butler a Folha de São Paulo, disponível em: http://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172-sem-medo-de-fazer-genero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.shtml?mobile
(3) POLSE, Fernanda Branco; SANTOS, Ana Luisa. O que você queer. Belo Horizonte (formato revista). 2015. www.oquevocequeer.com
(4) SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: editora Autêntica, 2014.
(5) Faux queen: mulheres que adotam o estilo de montação das drag queen. Drag queen, por sua vez, designa a montação fabulosa dos homens. Segundo o Wikipedia, uma faux queen também é descrita jocosamente como “uma drag queen presa num corpo feminino”.
(6) Darma: segundo Yogi Bhajan (mestre de Kundalini Yoga), darma significa “confiança prática”. Darma geralmente designa estilo de vida e ações que visam ultrapassar o jogo das dualidades (bom ou ruim, certo ou errado). Darma também é comumente descrito como: para além de qualquer dogma, prática e estilo de vida onde a realidade é a lei. Literalmente, a palavra em sânscrito significa “aquilo que sustenta, que mantém”. “O significado profundo de dharma não está nas palavras, mas na experiência, na observação verdadeira e na compreensão”, segundo definição oferecida pelo site Dharmalog, que também resume: “Se o universo fosse um rio, o fluxo desse rio seria o Dharma”. Darma seria, assim, ao contrário do carma ou do drama, a vivência e a realização da verdadeira realidade de cada um em consonância com um todo mais universal. Veja uma lista de definições e a palestra The Meaning of Dharma, de Yogi Bhajan.