Crítica do espetáculo Tragédia, do grupo Quatroloscinco, apresentado no Sesc da Esquina, no âmbito do Festival de Curitiba de 2023.
– Por Guilherme Diniz –
A agonia trágica, na visão de Terry Eagleton, não se confunde com imobilismo passivo ou com a pura expressão de um tormento colossal; ao contrário, a sofrida atitude da personagem diante de suas adversidades “representa uma esperança política e um sentido de continuidade da vida coletiva, uma capacidade para a fé mesmo nos momentos históricos mais sombrios”. Esta perspectiva me parece sintetizar em boa medida o clamor da Antígona recriada pelo espetáculo Tragédia, do grupo mineiro Quatroloscinco. Ao adotar os infortúnios da dinastia dos Labdácidas como um prisma para discutir nossos dilemas político-sociais, a peça almeja mergulhar nas lutas pelo poder, nas contradições entre desejo e ordem, nas disputas pela memória e pelo direito de narrar a história e, singularmente, nos sentidos políticos da morte. Em um país arquitetado por inumeráveis violências e por desigualdades abissais, o trágico de algum modo irrompe como obstinada insistência em meio às ruínas.
O espetáculo se passa em um espaço repleto de engradados de cerveja e preenchido centralmente por uma mesa de sinuca. Em cena vemos algo como um bar. É neste ambiente, comezinho e modesto, que as três figuras masculinas da peça constroem suas relações, variando entre o confronto direto e as tensas negociações. As analogias entre as regras do jogo e as dinâmicas da vida político-social, incluindo seus limites, condicionamentos e contradições, são amiúde delineadas por meio de diálogos ao mesmo tempo tensos e cômicos. As questões de gênero também se manifestam neste bar, isto é, um ambiente tradicionalmente ligado ao exercício de uma certa noção dominante de masculinidade. Os tacos de sinuca, empunhados pelos atores Marcos Coletta, Ítalo Laureano e Assis Benevenuto perfazem alusões fálicas que, somadas aos atritos ali vividos, tentam aprofundar as discussões entre masculinidade e poder; algo crucial em uma ordem política que cada vez mais se mostra patriarcal e misógina como a brasileira.
A história do adivinho Tirésias, narrada pelos atores, de algum modo problematiza o cristalizado ideal de masculinidade. O fato de que ele fora transformado, pelos deuses, em mulher (e de depois ter voltado, por intermédio divino, a viver como um homem) é abordado como uma tentativa de estremecer binarismos que sustentam visões de mundo e relações sociais. Contudo, a presença de Tirésias é mais contundente, do ponto de vista dramatúrgico, quando suas falas expressam uma das aporias mais fundamentais da tragédia, qual seja, o embate entre cegueira e percepção no modo de agir. A tragicidade também se aloja nas incompletudes de nossos pontos de vista.
É neste aspecto que se situa uma das cenas mais ambíguas de todo o espetáculo: o momento em que dois, dos três homens ali presentes, iniciam uma acalorada discussão acerca da responsabilidade individual de cada um no resultado das últimas eleições. A contenda chega ao seu paroxismo quando um atira no outro. A cena se repete e dessa vez os papeis são invertidos, isto é, o outrora assassino se converte em vítima fatal. Na terceira e última repetição, os dois se matam reciprocamente. Esse trecho crucial é pródigo de significações. É possível ver ali um recurso dramatúrgico para sublinhar uma narcísica rivalidade masculina; ou para estabelecer paralelos mito-poéticos entre Etéocles e Polinices; ou até mesmo para debater as inconstâncias e as inconsistências da própria palavra e da comunicação em geral (Antígona, a obra de Sófocles, está apinhada de discussões sobre a materialidade e os possíveis efeitos causais da linguagem). Porém, tive a forte sensação de que a cena cria uma equivalência entre duas visões políticas radicalmente distintas, como se ambas as posições se igualassem na violência. É importante mencionar que Tragédia estreou em 2019. Portanto, estávamos assistindo desalentados ao triunfo de Jair Bolsonaro. Hoje, em 2023, lembramos com apreensão o embate entre Lula e o bolsonarismo desejoso de se perpetuar na presidência. A imagem que esta cena provoca, nos contextos em que estamos, é a de que estas diferentes vias se equiparam. O principal elemento que complexifica essa estranha ambiguidade é a imagem de Antígona – Rejane Faria – no vídeo; imagem esta que pode emprestar a esta passagem outras camadas semânticas, atenuando o binarismo.
A dimensão fílmica atravessa fortemente este espetáculo dirigido pelo cineasta Ricardo Alves Jr. A câmera é de fato assumida em cena. Este objeto, empunhado pelo elenco em muitos momentos, se projeta como um dispositivo que reforça o caráter arbitrário da imagem e dos planos que a recortam. A feitura de uma ótica para ler a realidade está aqui exposta. Para mim, é como se ressoasse a máxima do fotógrafo Walter Firmo, para quem o ato de captar uma imagem não é um mero acaso instantâneo, mas um gesto político. Os paradoxos incrustrados no ato de olhar estão aqui e acolá presentes nas discussões da peça. Além disso, a direção valoriza acima de tudo o close up, optando por um enquadramento que enfatiza as expressões faciais dos atores e da atriz. As micro tensões entre as personagens ganham relevo, dando-nos a sensação de que até mesmo o registro de atuação é de outra natureza ali. O vídeo instala ainda uma outra temporalidade, digamos, mítica, menos definível do ponto de vista estritamente cronológico, mas que afeta tudo aquilo que está fora do enquadramento. Por último, é apenas no vídeo que habita, na maior parte do espetáculo, a desditosa Antígona.
Para Judith Butler, Antígona não apenas executa transgressões às normas de parentesco e de gênero, como também rejeita implacavelmente toda e qualquer lei que a impeça de reconhecer publicamente a sua perda. Butler ainda afirma que esta protagonista trágica condensa, em seu ato, a dor de tantas derrotas e mortes que não podem (ou conseguem apenas precariamente) ser lamentadas no espaço público. Nesse sentido, Antígona, entre outras coisas, acentua o peso político do luto. Tais considerações se manifestam no modo como Rejane Faria esculpe a sua Antígona. A voz intensamente enfática e o corpo quase sempre hirto são expressões de uma mulher intransigente para com as injustiças sociais. Apesar de tudo isso, a posição de Antígona, neste espetáculo, surge, para mim, envolta em turvas ambiguidades.
Quando, nos derradeiros momentos da peça, a personagem efetivamente adentra o palco, a sua função é, ainda que ela mesma negue, ser a grande heroína que esbraveja, derruba as pilhas de engradados e tem diante de si a grande missão de enterrar todos os mortos do mundo. Na versão do Quatroloscinco, Antígona não morre (nem isso?). Ao contrário, está fadada a vagar eternamente para conferir dignidade aos cadáveres insepultos, não apenas os de seus parentes. Ela nem mesmo saberá se o seu próprio corpo será enterrado após ser eventualmente a última pessoa do mundo a falecer, pois novamente a sua sina é redimir os demais. A questão se torna ainda mais aguda quando consideramos a esfera racial. Antígona é representada por uma atriz negra; os outros três atores são brancos. Causa-me espécie, por exemplo, o momento em que a trágica mulher vocifera energicamente para homens em alguns momentos zombeteiros, interrogadores, e até mesmo quase impassíveis. A fala dela não gera nada? Não provoca qualquer movimento?
No bate-papo após a apresentação, Ítalo Laureano, membro do grupo, disse que a atuação e a presença de Rejane Faria são “a bandeira da peça”. Tal analogia me parece um tanto problemática, pois parece projetar esta Antígona negra como uma moral da história. E isso infelizmente acaba fazendo mais sentido quando percebemos que a atriz só aparece fora do vídeo na última parte do espetáculo, como se tivesse que apresentar a solução para os problemas que aqueles homens criaram. Essas escolhas dramatúrgicas desestabilizam ou reforçam visões cristalizadas de gênero e de raça?
O grupo Quatroloscinco está a completar 15 anos de existência, entre a criação de espetáculos, as publicações de suas dramaturgias, o oferecimento de cursos, além da realização de turnês nacionais e internacionais, afirmando-se, ao longo desses anos, como um dos mais relevantes coletivos de teatro de Minas Gerais. Esta é, entretanto, a sua primeira vez na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba (e essa surpreendente informação reforça a necessidade de se criarem cada vez mais possibilidades para a presença de grupos significativos de diversos cantos do país). Tragédia, o seu último trabalho, ganha novos sentidos após quatro anos de uma violentíssima gestão presidencial e após um contexto pandêmico devastador no que se refere ao número de mortes. Porém, não deixa de carregar também ambiguidades difíceis.