por Soraya Belusi ::
Cristina Banegas e María Onetto vivem mãe e filha em “Sonata de Otoño” (Fotos de Humberto Araujo- Clix Divulgação) |
A comparação não nasce à priori. É a relação que a própria obra, ao se colocar diante dos olhos do espectador, estabelece com sua fonte original que nos remete àquela experiência inaugural, criando parâmetros comparativos para o bem ou para o mal, considerando que uma outra “versão” ou “visão” pode sempre nascer quando um mesmo material cai em novas mãos. Não digo aqui de atender ou não a expectativas, embora estas me pareçam até certo ponto inevitáveis. O que pretendo é admitir, desde esse ponto, que as percepções a serem escritas estão sim impregnadas da primeira sensação que tive, como espectadora, da experiência de fruição dos filmes “Sonata de Outono”, de Ingmar Bergman, e “Bug”, de William Friedkin, que ganharam materialização nos palcos assinadas, respectivamente, por Daniel Veronese e Zé Henrique de Paula, apresentadas no Festival de Curitiba.
Não se trata aqui de comparar os filmes e as peças apenas como uma transposição de uma linguagem para a outra. Seria minimizar todas as implicações de criação que se instauram nesse procedimento. Mas, sim, de tentar perceber, através das escolhas artísticas dos espetáculos, de que maneira se aproximam ou se afastam do fator mobilizador de suas fontes originais, se ampliam suas leituras ou minimizam seu poder de impacto. A versão de Daniel Veronese para o reencontro entre mãe e filha, em que os rancores e amores se escancaram, parece não perder de vista, em momento algum, os elementos construídos pelo cineasta sueco. Ainda assim, o encenador e dramaturgo argentino consegue impregnar de incerteza as convicções daquelas personagens.
A frieza nórdica presente na obra cinematográfica transborda para a cena criada por Veronese seja pela palidez dos elementos que a compõem, com os móveis todos brancos, sem vida e diferenciação, seja pelo acúmulo de espaços em um mesmo plano, em que quarto, cozinha e sala estão todos lado a lado. Há algo de não-espetacular na opção de Veronese. O teatral, termo tão empregado no cinema de Bergman, não está em Veronese sobressaltado, a não ser nos corpos, nas falas e nos estados dos atores, característica que marca também a obra do sueco. A luz é estourada, branca, sem nuances, e as mudanças temporais e espaciais se dão pelos cortes no texto mais que pela ação dos personagens.
Esse procedimento teatral de Veronese parece sublinhar a construção psicológica do conflito entre mãe e filha, que não se viam há mais de 7 anos e cujo reencontro faz explodir uma série de questões reprimidas, silenciadas, amargadas. É como se neutralizasse o que é externo aos personagens-atores, opacizando o espaço, para lançar o foco sobre o que se passa no interior daquelas mentes e corpos. Nem mesmo a legenda em português, insistindo em adiantar os pensamentos e os diálogos, retira a força emocional que se estabelece das relações em cena.
Se associamos uma certa contenção aos comportamentos nórdicos e à direção de Bergman no que diz respeito à atuação, que mais esconde do que revela, é inegável que também remetemos à latinidade uma tendência ao extravaso, ao exagero e ao melodramático. Mas Veronese se afasta do sentimental ao optar pela carga emocional.
Os corpos de seus personagens revelam mais que escondem, parecem não ser mais capazes de se conter, como na obra cinematográfica. E as emoções surgem, assim, desmedidas, confusas, permeadas uma das outras, retirando as certezas que nós, espectadores, já tínhamos sobre a culpa e a absolvição daquelas personagens. Não é tão fácil mais distinguir quem é vítima ou quem é culpado. Instala-se a dúvida, a crise, a incerteza. “Sonata de Outono” nos apresenta, assim, novas camadas de percepção de algo que já conhecemos, sem com isso abandonar as potencialidades de sua referência anterior.
É de incerteza, inclusive, que se trata a obra cinematográfica de William Friedkin cuja matriz é a peça de Tracy Letts, “Bug”, que dá origem também à montagem do Núcleo Experimental, sob direção de Zé Henrique de Paula. Assim como Bergman não abandona seus protagonistas em sua Sonata, Friedkin leva às últimas consequências, com sua câmera, a construção artística da sensação de obsessão e paranoia que domina seus personagens. Uma espécie de fobia contagiosa, que passa através das telas para quem a compartilha, assim como contamina a mente de Agnes em sua convivência com Peter. Ambos encontram no outro a possibilidade de suprir suas demandas de medo. A relação amorosa aqui é que desencadeia essa aproximação paranoica, que se retroalimenta ao longo do tempo.
Cabe ao espectador duvidar do que vê, do que ouve, mas também do que entende como normal. Aos poucos, este é também desestabilizado de sua convicção sobre a paranoia alheia, é também ele “possuído” (tradução dada ao título do filme no Brasil) pela dúvida. Há algo realmente acontecendo ali? Sem esse questionamento interno, também paranoico, a potência da obra parece não se efetivar, como acontece na montagem teatral apresentada no festival.
Foto de Jorge Mariano – Clix divulgação |
E, numa primeira percepção, as escolhas de encenação parecem não favorecer o contágio que Tracy Letts permite com seu texto. O conflito psicológico cede lugar à comicidade daquela situação, que, absurda por princípio, resvala no risível quando se abre mão totalmente de torná-la crível. A paranoia ganha contornos (luzes, números musicais, registros de atuação excessivamente estranhados) de mera alucinação, o que a desqualifica à priori. Alguns efeitos visuais só reforçam essa percepção, como as marcas exageradas pelo corpo que parecem ser feitas de canetinha ou ainda as luzinhas que piscam na tentativa de demonstrar a infestação. Parece não haver aqui espaço para o questionamento da lucidez ou loucura dos personagens, nem mesmo do público, para o qual é negado o direito de duvidar, inclusive, de si mesmo.
O Horizonte da Cena viajou a convite do festival.