Segunda parte do panorama crítico do 27º Festival de Curitiba, com foco nos espetáculos “Alegria e Tristeza na Vida das Girafas” de Tiago Rodrigues com encenação de Thomas Quillardet (França) e “Dinamarca”, do Grupo Magiluth (Recife/PE).
– por Clóvis Domingos –
Fotos de Annelize Tozetto/ Festival de Curitiba
A ideia de um teatro-conferência também parece mover a dramaturgia de “Alegria e Tristeza na Vida das Girafas”, espetáculo apresentado na mostra oficial do Festival de Curitiba, em março deste ano. Se em “Domínio Público” e “Colônia” as características de uma palestra-performance são mais evidentes, já no texto do autor português Tiago Rodrigues, traduzido para o francês e encenado pelo diretor Thomas Quillardet, ainda que o elemento ficcional seja preponderante e a peça apresente uma estrutura dramática, as aventuras de uma criança de nove anos em sua travessia para uma vida mais adulta são abordadas através de uma delicada e sensível “conferência”, na qual se conjugam o pessoal e o coletivo, o poético e o político, a casa e a rua.
Em “Alegria e Tristeza na Vida das Girafas” uma menina-dicionário compartilha com a plateia suas descobertas do mundo e seus embates entre aquilo que se fala e se explica com aquilo que se vive e experimenta. Na peça, a menina que precisa apresentar um trabalho escolar sobre a vida das girafas, acaba realizando um trabalho sobre si mesma em seu ritual de passagem e crescimento existencial. Seu dever de casa vai sendo realizado a partir de seu contato com a cidade e pelo encontro com diferentes sujeitos. Nessa “conferência dramatizada”, as definições das coisas sofrem mudanças e impactos ao se depararem com a complexidade da vida. É preciso salientar que a menina é interpretada por uma atriz adulta que não apela para clichês a fim de poder dar vida à sua personagem. Tudo está na força poética do texto e da encenação.
Assim temos a mãe morta e ausente, presentificada em cena, hora através da projeção de sua sombra sussurando com a voz doce e macia para a filha dormir, hora por um solitário vestido azul pendurado num cabide a balançar revelando assim o vazio da saudade deixada, e cuja cor é a mesma que envolve cenograficamente a casa na qual mora a modesta família. A menina se dirige o tempo todo para o público para dividir suas angústias e aprendizagens, nos oferecendo um repertório de expressões e palavras com as quais nomeia os fatos e acontecimentos, e também fissura códigos da linguagem, os colorindo com novas camadas. Se alguém lhe diz, por exemplo, “como é triste correr atrás de dinheiro”, ela então afirma ser necessária a ação de “encontrar um dinheiro feliz”. Nessa fala inocente habitaria uma verdade profunda.
Neste espetáculo lidamos com a tríade “eu-casa-mundo” e descobrimos a interdependência desses espaços. No desenvolvimento da narrativa, a criança (até então protegida pela vida doméstica) se aproxima de realidades mais dolorosas como por exemplo o desemprego, a pobreza, a velhice e a morte. Ao compreender que as decisões políticas interferem diretamente em nossas vidas cotidianas, a corajosa menina vai inclusive procurar o primeiro ministro do país, com a “certeza” de que este pode mudar não só sua situação familiar, mas a da população em geral. A saga infantil é repleta de perigos, sustos e pequenas alegrias numa versão de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll.
Nessa montagem a teatralidade é assumida com sua potência lúdica de jogo e fantasia, tendo todos os materiais cênicos disponíveis ao trabalho dos atores e expostos para o público, encontrando significativa qualidade pela aproximação com temáticas tão reais e urgentes, o que permite abordar questões importantes tais como: por quê subestimamos tanto a infância em sua possibilidade de enfrentar realidades outras ou que consideramos adversas? O medo seria nosso ou inconscientemente transferimos tal afeto para os pequenos? Teríamos todos nós, crianças e adultos, dificuldade e resistência para amadurecer? Ao mesmo tempo, por sua ousadia, ingenuidade e inteligência, as crianças não poderiam, de alguma forma, nos ajudar a inventar novos sentidos e palavras para aquilo que nos desafia e entristece? É possível explicar tudo o que nos acontece? Desejamos evitar expor as crianças aos revezes do mundo por nos certificarmos que é quase impossível lhes oferecer uma salvação apaziguadora? Mas não estaria aí nesse vazio pela falta de respostas, a possibilidade de uma vida ser tecida em desejo e criação?
“Alegria e Tristeza na Vida das Girafas” tem o potencial de nos emocionar e nos fazer refletir sobre as alegrias e tristezas que existem na vida de todas as pessoas. Como dois polos que se alternam, o perigo existe quando tentamos nos fixar apenas em uma dessas modalidades. Nessa “conferência dramatizada” o poder curativo das palavras retorna (da mesma forma que identifiquei em “Domínio Público” e “Colônia”) como alimentos que nos auxiliam a re (existir) e a re-insistir.
Fotos de Humberto Araújo/ Festival de Curitiba
Dinamarca
Inspirado em “Hamlet” de Shakespeare, o espetáculo do grupo Magiluth, de Recife, trouxe para o Festival de Curitiba, um trabalho com forte pulsão crítica e anárquica para pensarmos nosso país recentemente golpeado e secularmente assolado pela corrupção política. Numa espécie de espetáculo-festa, ambientado no Teatro Paiol (com sua arquitetura singular que remete à um antigo castelo), a tragédia inglesa, numa subversão antropofágica, serve de metáfora para se abordar os banquetes oferecidos pelos políticos e também pelas elites brasileiras que em sua “felicidade desesperada” lutam para manter seus lugares de privilégio. O bolo da festa é feito de plástico e pelas bocas dos convidados jorram sangue. Ficção e realidade se confundem.
“Dinamarca” implode a estrutura trágica do bardo inglês e apresenta traços de um teatro performativo marcado pela força da produção de um acontecimento e também pela vigorosa presença dos atores, cuja interpretação mescla variados registros que percorrem desde os vestígios que restam dos personagens dramáticos shakespearianos até desembocar em paisagens mais autorreferentes de uma atuação contemporânea, que se completam com uma encenação mais visual e principalmente sonora. A trilha sonora pode ser considerada não somente como mais um ator (dentro da cena), mas também um elemento dramatúrgico condutor, além de um disparador externo de estímulos a ser manipulado pela direção.
A montagem opta pelo caótico, pelo excessivo, pelo obsceno, pelo ruidoso e por uma ironia cortante, que em momentos pontuais tem sua dinâmica vertiginosa rompida, quando se instaura um silêncio constrangedor proveniente da provocação de questões laboriosas, como por exemplo: “Estamos bem. Somos honestos e civilizados. Amamos o próximo como a nós mesmos. Nós já somos felizes! (Pausa) Somos”? Nesse sentido, temos o paradoxo de um trabalho cênico perturbador, marcado por um espírito de demolição tanto física (chega a incomodar o barulho estridente dos objetos e adereços lançados ao chão, assim como as lutas corporais entre os intérpretes) quanto moral, ao mesmo tempo em que apresenta personagens que negam tal realidade e insistem em viver um momento “Hygge” (termo dinamarquês que significa felicidade), numa falsa ideia de harmonia e bem-estar.
A festa aqui pode ser compreendida como uma fuga e alienação de uma realidade deteriorada. A barbárie e selvageria tentam, a todo custo, permanecerem mascaradas através de um discurso não só cínico, mas altamente colonizador. Mas tudo desmorona na frente do público e com a participação dele (tomamos espumante e dançamos no centro da cena). Pude perceber a pulsação nervosa e às vezes cansada do público frente a esse “show de horrores”, que não tem como ficar indiferente às inúmeras provocações a que é convidado a experimentar, o que a meu ver, pode causar certo distanciamento ou até mesmo uma possível recusa para dialogar com a proposta estética do grupo.
O elenco é composto apenas por homens, e essa onipresença de corpos masculinos pode despertar diferentes leituras: desde a confirmação de que vivemos numa sociedade marcadamente patriarcal (e que inclusive assume os principais postos da vida pública e política), até uma possível associação à necessidade fálica pela luta e conquista de poder (aspecto já presente na obra original), que é algo extremamente desejado pelos homens. Dessa forma, se o luto de Hamlet (“o príncipe que não chegou a ser”) é um dado relevante do texto clássico para se expor a dor, a fragilidade e depressão de um jovem solitário, na montagem do grupo Magiluth, tal questão é ainda refém de certa masculinidade que não abre mão do exercício da força e de uma certa violência que se manifesta. É como se o fracasso tivesse dificuldade de ser reconhecido e assumido, o que por outro lado, remete ao que parece ser exatamente o discurso mais crítico e contundente da montagem, quando pensamos no campo macropolítico.
Sintomática se torna a possibilidade de se relacionar a degradação de um reino ou país com a falência de um modelo vigente de masculinidade, que já não mais se sustenta, apesar de “muito barulho por nada” (título de uma obra de Shakespeare) e as festas decadentes vivenciadas como bebedeira (tão típicas no comportamento machista), e que por inclinações e fixações narcisistas e infantis (como o Hamlet mimado da montagem do Magiluth) se negam a um trabalho de elaboração e transformação. De qualquer jeito, o patético se torna revelado, assim como o fato de que há “algo de podre no Reino da Dinamarca e no Reino do Brasil”.
“Dinamarca” coloca o dedo em nossas feridas sociais e políticas. Nos confronta com uma casta em franca destituição e com nossa atitude de apatia e indiferença quando não conseguimos mais nos indignar frente às injustiças e perdas progressivas de direitos básicos de cidadania e mandamos “subir o som” ou aumentar a música. Mas aqui há também um perigo que nos ronda: evitar o desconforto de propormos um convite à uma reação coletiva, não mais nos conformando às narrativas paralisantes. Não considero o espetáculo propriamente niilista, nem defensor de uma visão unívoca dos problemas atuais, mas para trabalhos dessa natureza sempre fico a me perguntar: de que forma conciliar denúncia e anúncio? Onde haveria destruição não existiria concomitantemente recriação? Como enfrentar, pela força criadora do fazer teatral, esses tempos tão sombrios e melancólicos? Estará de fato a realidade consolidada ou ainda seria passível de mudanças?
“Como fazer essa travessia do luto à luta? Como caminhar por essa estrada sem segurança? Como acolher esse desamparo e fazer dele um modo de vida?” – assim nos perguntam a menina-girafa do texto de Tiago Rodrigues e o pequeno príncipe magiluthiano.
“Alegria e Tristeza na Vida das Girafas” e “Dinamarca” parecem falar da urgência das transformações, do abandono de territórios já consolidados, da coragem de estilhaçar anteparos protetores e do risco de talvez se vislumbrar, mesmo que diante do atual cenário de desilusão e esgotamento, novas formas de existência.
>> Leia em breve, na terceira parte do texto sobre o Festival de Curitiba 2018, as críticas a partir de “Preto”, da Companhia Brasileira de Teatro, “Cabaret Macchina”, da Casa Selvática, “Grande Sertão Veredas”, direção de Bia Lessa, entre outros trabalhos apresentados.