— por Elisa Belém —
Crítica a partir da programação do FID – Fórum Internacional de Dança (BH).
Foto de Gustavo Gelmini.
O FID – Fórum Internacional de Dança completa 21 anos de existência na edição de 2016, que acontece em Belo Horizonte (MG) de 15 a 23 de novembro. O tema dessa curadoria é O Risco do Nome e o catálogo chama a atenção para o risco como um travessão que anuncia uma fala; como demarcação e assinatura; como afirmação ao sublinhar; como negação, no sentido de riscar. E indica que “nomear é arriscado porque implica sempre um posicionamento”. O texto de introdução à programação mostra o árido cenário atual relativo às “políticas públicas para a continuidade e desenvolvimento da dança”, mesmo se comparado ao primeiro ano de existência do FID. Certamente, a implementação e continuidade do FID durante esses 21 anos, na mesma cidade, é um ato de resistência e dedicação.
Sim, é preciso falar sobre a dedicação de uma artista da dança, Adriana Banana, que optou pelo risco de debruçar-se sobre uma formação em dança para o público da cidade por meio de um fórum que arrisca existir e levar à cena espetáculos, oficinas, debates e filmes que sempre se caracterizaram pelo caráter de pesquisa e experimentação. Durante todos esses anos, vimos no FID danças que nos instigavam a pensar sobre o que pode ser dança. E também a perceber a dança como pensamento e construção do conhecimento. Na cena do FID, o corpo que dança é um corpo que se encontra no fluxo do pensar e que gera pensamento.
Nesta edição, a programação é também antiprogramação e privilegia o estudo sobre a dança. Artistas de diversos estados do Brasil como Santa Catarina, Pará, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, além de um convidado do Canadá, apresentam seus processos de investigação e os trabalhos que criaram nos últimos anos conversando e mostrando as possibilidades do movimento.
O duo de Sandra Meyer e Diana Gilardenghi (Santa Catarina), Narrativas em Dois Corpos, tem uma estrutura simples: as duas dançarinas portam fichas de papel em suas mãos e leem fatos sobre a vida uma da outra, refazendo os caminhos que as conduziram a dançar. Combinando as ideias de arquivo e repertório, mostram breves sequências de movimento a partir das memórias dos acontecimentos relativos às suas formações. A ideia e motivação é bastante interessante, mas a execução não chega a atingir um caráter cênico, parecendo figurar mais no terreno do relato autobiográfico. Talvez para um público que não dança a performance perca o interesse num certo ponto.
Foto de Roberta Castro.
O relato de Waldete Brito (Pará) – A Poética da Bricolagem Coreográfica e Improvisação, também é uma espécie de narrativa, mas, desta vez, no formato de uma palestra com vídeos mostrando o trabalho da Cia. Experimental de Dança Waldete Brito e, em seguida, uma breve improvisação ao vivo da dançarina, com uma trilha sonora especialmente preparada a partir da ideia de bricolagem. A artista, que trabalha e vive em Belém do Pará, apresenta em sua fala uma espécie de outro Brasil, que soa diferente para os ouvidos do sudeste. Segundo ela, viajar do Pará para outros países pode ser mais barato e possível do que para outros estados brasileiros.
Sua fala foi bastante tocante ao relatar seu trabalho como professora universitária da UFPA e sua participação no programa do governo Federal (gestão anterior), PARFOR (Plano de Formação Docente) – voltado para a formação de professores em licenciaturas na área de artes, que moram em ilhas distantes da cidade de Belém do Pará. Atravessar o rio de barco por muitas horas para ministrar aulas para comunidades que não têm acesso à cidade parece uma ação um tanto quanto legítima e admirável. Leva, assim, seus estudos para pessoas cujos corpos dançam o carimbó ou curimbó e o brega paraense, mas para quem as ideias de improvisação e composição mostram-se como novidades. Nesse sentido, Waldete emprega seus estudos sobre a bricolagem lançando mão de movimentos de diversas matrizes ou motrizes e ações cotidianas para compor sequências coreográficas. Em contraponto às falas complexas, recebemos um presente ao escutarmos sobre a experiência marcada pela realidade de outra parte do país, uma outra margem do rio com suas dificuldades e com a beleza do nascer do sol amazonense.
Thereza Rocha, natural do Rio de Janeiro, mas que vive e trabalha no Ceará, ofereceu a palestra Dança sobre outras bases ou em que o tango pode ser bom para tudo?. Mesclando humor e performatividade a um elaborado discurso conceitual, foi proposto a alguns voluntários que caminhassem pelo palco repleto de bolinhas de gude. O chão ou a base, discutido por Thereza, foi assim posto em movimento, ao propor que o espaço-tempo é fabricado junto à movência. Discutiu a ideia de André Lepecki sobre as “Políticas do Chão” e propôs uma “Ética do Tropeço”, fazendo referências a outros autores como Didi-Huberman, Milton Santos e aos artistas da dança Angel Vianna, Klauss Vianna e Pina Bausch.
Thembi Rosa (MG) e Margô Assis (MG), dançarinas que residem em Belo Horizonte, também compuseram a programação do FID. Margô Assis estreou o solo M, dirigido por André Lage. Numa composição com o movimento, objetos, luz, som e a nudez, mostrou paisagens plásticas numa constante transformação do corpo e do espaço ao ser desenhado e apagado. Já Thembi Rosa, em Parâmetros do Movimento 2.0.1.6, participou da composição do acervo vivo sobre a dança que o FID pareceu propor. Mostrou assim, sua pesquisa com o movimento em improvisação e o som experimental do grupo O Grivo, por meio de sensores, câmeras e computador. Apresentando partituras experimentais de notação e composição, pareceu remeter a uma preocupação que perpassa a história da dança sobre o registro e o apagamento.
Registro e apagamento também estiveram em discussão na exibição de Um filme de dança, dirigido pela coreógrafa, pesquisadora e cineasta Carmen Luz. O ponto de partida para elaboração do filme foram as colocações de Jean-Paul Sartre como perguntas que os brasileiros deveriam se fazer uns aos outros: “E os negros? Onde estão os negros?” O filme é um documentário com entrevistas e danças de vários (as) criadores (as) negros (as) refazendo uma história da dança que não é contada. Apresenta, assim, diferentes abordagens e entendimentos sobre o que pode ser a dança afro ou negra considerando a ancestralidade e a contemporaneidade.
Assistir a tantos corpos e visões dançantes mostra que ainda sabemos muito pouco, quase nada, sobre as buscas e encontros desses criadores. Numa fala antes da exibição, Carmen Luz contou sobre uma outra motivação que foi a frase pichada no muro de uma favela: “A minha dor não sai nos jornais”. Completada por ela, “mas pode estar num documentário”. Para além da dor do silenciamento e do racismo, o filme é um registro muito bem-vindo mostrando criadores como Mercedes Batista, Gilberto de Assis, Marlene Silva, Rui Moreira, Augusto Omulú, dentre vários outros, cujo mover e falar conduz a uma outra história da dança.
Registro e apagamento talvez sejam palavras impressas na programação em risco do FID. Numa cidade cuja arquitetura e engenharia permanecem constantemente em demolição e construção, discutir a memória em movimento é um ato político. Os meus votos são que o FID não se apague e nem seja apagado. Os meus votos são que a memória do movimento possa ser também memória em movimento e em constante atualização. E que a “Banana (de dinamite)”, referida no catálogo do fórum, só atinja os “mecanismos de exclusão”.
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