— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Esse Corpo Meu”, da Téspis Cia de Teatro.
É próprio da performance como campo de conhecimento superar o logocentrismo, que concentra o saber humano somente na razão e nos discursos, e o pensamento binário, que constitui pares dicotômicos hierárquicos e excludentes, como sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção, homem/mulher, masculino/feminino. Com isso, não somente valoriza os saberes do corpo, mas coloca em xeque questões de gênero e identidade.
A performatividade é um conceito sobre o qual muitos já escreveram. Dentre elas, Judith Butler, no viés do feminismo e da teoria queer, pensando o processo de constituição do gênero por meio da internalização das normas do que é ser homem ou ser mulher, manifestas nos corpos. E Josette Féral e Erika Fischer-Lichte, ao apresentarem teatro performativo como aquele no qual a presença sobrepõe a representação.
“Esse Corpo Meu”, criação da Téspis Cia de Teatro, de Itajaí, com a Periplo Compañia Teatral, de Buenos Aires, trafega por esses dois territórios, da performatividade de gênero e teatral, com admirável habilidade em colapsar a
oposição entre forma e conteúdo. Max Reinert e Denise da Luz corporificam os estereótipos do masculino e do feminino e os lançam num jogo de intercâmbios e mutações, que desestabilizam o binarismo dessa oposição, mostrando possibilidades transgressoras e transitórias.
Trans. Eis o prefixo-chave, já transformado em conceito. Remete ao universo da diversidade sexual, nas figuras de travestis e transexuais, não como novas categorias estanques, mas, justamente, como a liberdade de transcender
categorizações, transitar “entre”, “além” dos polos dos binômios. Nesse sentido, além de um movimento no campo dos direitos humanos fundamental em nossos tempos, o “trans” transpõe qualquer gueto para afirmar a liberdade do
ser, a possibilidade de desvencilhar-se dos restritos padrões normativos da constituição da identidade. Assim, liberta cada indivíduo de experimentar sexo e gênero como aprisionamento.
Em Belo Horizonte, “Esse Corpo Meu” encontra um espelho: o espetáculo “Trans”, do coletivo This is noT, realizada pelos performers Guilherme Morais e Ana Luísa Santos. As coincidências são várias, desde o diálogo com a
Argentina, a partir das pesquisas sobre identidade de gênero da ONG Futuro Transgenérico e da artista trans Susy Shock, até questões formais mais específicas, como as imagens do duplo, configurada pelos atuantes, e a
simultânea frente de batalha nos campos da linguagem, da imagem e do corpo.
Ao traçar outras conexões entre o espetáculo da Téspis e a cena teatral brasileira mais contemporânea, percebe-se a força estética e ética de um conjunto de trabalhos. Ainda na capital mineira, uma das criações mais desafiadoras do ano passado foi a cena “Não conte comigo para proliferar mentiras”, dirigida por Alexandre de Sena, somando perspectivas críticas de cor, classe e gênero; e “Rosa Choque”, sob a direção de Cida Falabella, e “Calor na Bacurinha”, quando dirigida por Marina Viana, embora não abracem frontalmente a questão trans, desconstroem estereótipos da performance de gênero e do ser mulher. Já em Curitiba, há os trabalhos da Selvática Ações
Artísticas, dentre os quais “As Tetas de Tirésias”, mito transgênero primordial, lembrado também no espetáculo de Itajaí.
O que faz desses trabalhos tão desafiantes para o espectador – falando especificamente de “Esse Corpo Meu” também –, é a construção dramatúrgica, energética e espetacular não de uma alegação, certeza ou defesa de ponto,
cristalizadores das ideias e das ações, mas de um questionamento. Uma crise. Uma indagação.
Para isso, é determinante a não coincidência entre a cena visual e a cena sonora – entre os movimentos dos corpos presentes e as vozes desencarnadas em off. O tratamento poético dado às palavras mas também sua forma de emissão, em eco, entre ruídos sonoros que remetem ao futurismo oitentista de ciborgues transumanos. O caráter simbólico dos movimentos dos atuantes, construídos numa operação de estilização que transforma os gestos mais cotidianos, clichês de gênero, em estranhamentos.
A expressividade corporal de Max e Denise delineia-se plástica e discursivamente como produtora de imagens impregnadas de simbolismo. Vestir uma roupa corresponde a vestir um papel social, ou igualmente desvesti-
los, e o preparo corporal de ambos permite o livre trânsito pela gramática do feminino e do masculino. Quando finalmente as gestualidades se confundem, inclassificáveis, os braços enfim se soltam, livres dos gestos pré-programados da moça e do macho, e dançam explorando o espaço.
A cena da construção da mulher perfeita é exemplar: impressiona o quanto se reconhece do ideal feminino socialmente aceitável no frankstein-mudo. Este e outros momentos ainda fazem pensar sobre a complexa relação entre a construção do feminino pelo corpo-mulher e pelo corpo-homem. A diva loira como algo do qual a mulher precisa se libertar, mas que o corpo-homem, se não cisgênero nem heteronormativo, almeja como libertação.
Corpos e sons geram uma atmosfera sinestésica, uma sensibilidade particular, de uma delicadeza estranha, leve acidez afetiva a corroer pouco a pouco as certezas do espectador. O que se faz no palco, segundo o próprio texto, é a
paródia da paródia da paródia. O humano que imita o humano que imita o humano que imita. As figuras em cena insistem em risos satíricos – riem de si ou de nós? Recobrem com uma camada de cinismo tudo o que mostram.
Na apresentação realizada no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, a presença de uma turma de estudantes na plateia extravasou o difícil convívio desse tipo de proposição cênica com um público indisposto ao confronto
estético, manifesto no fiufiu sexista, na surdez e na cegueira eletivas para o que não se quer enfrentar – atitudes comuns a outros estratos da sociedade menos dispostos a se autodenunciarem em gritos adolescentes.
Diante de cenas sugestivas como a bolinha que repetidamente rola do homem em direção ao meio das pernas da mulher e o brincar de carrinho e de boneca, entrevê-se a puerilidade da heteronormatividade castradora. Mas “Esse Corpo Meu” não trata o espectador como criança. O cinismo é um modo de olhar para esse indivíduo infantilizado socialmente pela simplificação normativa, padronizada e binária do mundo como o adulto que ele é.
O espectador olha para a cena ou a cena olha para o espectador?
*Espetáculo visto em 12 de agosto de 2015, no IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, em Itajaí/SC.