Crítica a partir da Mostra de Teatro Tiradentes em Cena 2017
– por Elisa Belém-
O Horizonte da Cena foi convidado pela Mostra de Teatro Tiradentes em Cena 2017i para acompanhar o último final de semana da programação estabelecendo um diálogo com a crítica.
Na sexta-feira à noite do dia 26 de maio, ocorreu o “Festival de Cenas Curtas”, no Teatro Municipal de São João Del Rei. A iniciativa de realizar um festival de cenas curtas na mostra é bastante louvável, uma vez que oferece espaço para jovens atores, diretores e grupos teatrais, além de corresponder a um estímulo para novos trabalhos.
No entanto, no mesmo horário, se deu a estreia nacional da peça “T.R.A.N.S – Terapia de Relacionamentos Amorosos Neuróticos Sexuais”, no SESI Tiradentes, com texto e direção de Carlos Verahnnay, que também integrou o elenco como ator, ao lado de Thammy Miranda (filho da cantora Gretchen) e Andressa Ferreira. Na escolha e aposta nessa estreia, a mostra acabou por ser prejudicada, já que alguns relatos de espectadores indicaram a qualidade dos espetáculos até então apresentados. O texto abordou um tema complexo sobre a transexualidade, mas sem apresentar uma real discussão do assunto. O elenco foi bastante confrontado em um debate no dia seguinte, na mesa-redonda que tratou do tema “Teatro e Cultura Trans”, ainda mais considerando-se que o tema do festival era “Tolerância”. Questões como machismo, subserviência da mulher e preconceito a pessoas de orientação homossexual vieram à tona ao discutirem-se os personagens do texto e suas caracterizações cênicas dadas pelos figurinos e atuações.
No sábado, dia 27 de maio, foi possível assistir, em Tiradentes, às três cenas vencedoras do Festival de Cenas Curtas que aconteceu em São João Del Rei. Mesmo com o tempo restrito de 10 minutos para apresentação, os grupos mostraram trabalhos de qualidade que certamente merecem ser desenvolvidos em termos de duração. A primeira cena, “Olívia Renasce”, do Coletivo Transborda (BH, MG), ainda próxima de um exercício de atuação, aponta para boas ideias e possibilidades de aprimoramento a partir do trabalho corporal e com elementos cênicos. A segunda cena, “Camarim”, da Cia. Valentina de Teatro (São João Del Rei/MG), foi construída a partir da manipulação de duas bonecas conjugadas ao corpo da atriz-manipuladora. Destaca-se a beleza e plasticidade das bonecas e o jogo cênico que atrai o espectador a acompanhar os movimentos, mesmo que a manipulação necessite de pequenos ajustes ao longo do tempo.
Já a terceira cena, “Violento”, do ator Preto Amparo (BH/MG), recebeu a primeira colocação conforme a premiação do festival. O discurso em torno da condição do negro que vive diariamente o racismo no Brasil, desvela um confronto que leva a pensar o que afinal de contas é violento. O rap é violento ou a situação real que aparece em suas letras? Um carro de polícia com a sirene ligada e que desconfia do cidadão negro todos os dias é violento ou quebrar um carrinho de brinquedo com um machado é violento? Olhar nos olhos é violento ou evitar o olhar é violento? Ter sua própria cultura e religiosidade é violento ou é violento segregá-las? Ensaboar-se nu, em cena, é violento ou é violento o discurso que fetichiza e higieniza o corpo? O que afinal é violento? Somos violentos ou violentos são os outros? Mais uma vez, a iniciativa do Festival de Cenas Curtas dentro da Mostra de Teatro Tiradentes em Cena contribuiu muito para a programação, incluindo-se aí o uso do espaço de um casarão para a realização das cenas. Sua continuidade e ampliação, assim como os desdobramentos pedagógicos e artísticos que podem gerar, indicam uma boa direção para a Mostra.
Entre uma programação e outra, houve um cortejo de Maracatu, bonecões e birutas (brinquedos de papel semelhantes às karpas japonesas) que, de forma festiva e alegre, levou quem estava por ali para as ruas participando do espírito de brincadeira. Em seguida, houve uma palestra do teatrólogo Amir Haddad nomeada como “O Teatro Vivo de Amir Haddad”. Foi bonito presenciar a fala de um diretor teatral de 80 anos de idade e 60 anos de carreira, que participa da história do teatro brasileiro.
Haddad iniciou sua palestra dizendo que trabalha com as “emoções baratas”, que estão ao alcance de todos e que formam nossos melhores momentos e relações, mesmo que muitas vezes se negue. E que, frequentemente, vê anunciada a morte do teatro, sendo que, para ele, o teatro é uma forma de manifestação essencial do ser humano. Uma vez transformado em produto de mercado, perde sua vida. Defendeu a arte como uma obra pública, ao dizer que seu ganho está no encontro com o outro. Ressaltou a tendência humana de doação universal ao contrário da preparação que recebemos, na sociedade, para vender. Decidiu-se assim, por fazer teatro de rua a fim de se entregar a esse desejo inicial.
Conforme Haddad, há uma crise do teatro e da arte em curso, mas também da civilização cristã ocidental. Indicando que o teatro recebe, de vez em quando, “visitas da saúde” que anunciam sua morte, resolveu buscar por uma nova possibilidade de vida: o teatro depois do teatro. Seguindo a “ideologia agonizante da ética do capitalismo”, chega-se a um teatro morto. Mas este se reinventa: o “Pós-teatro”, para Haddad, é uma prática. Ele se vê, portanto, como um ator e diretor do Pós-teatro. Este “teatro depois do teatro” é como a prática dos antigos rapsodos que iam para as ruas declamar seus textos e que pode acontecer em qualquer lugar. Os atores descem do palco e se dirigem para a plateia – aí acontece o “teatro depois do teatro” ou “Pós-teatro”, o “Teatro Vivo”, de Amir Haddad. A ideia do ser humano e do artista como um doador e receptor universal justifica, para Haddad, essa reinvenção do teatro, por meio do retorno a própria história que é o rapsodo na rua. O conteúdo da palestra também acabou por contribuir para que se pense a própria Mostra de Teatro de Tiradentes – o que esta pode vir a ser e como pode dialogar com os espaços, a cultura e os moradores da cidade. Tem-se aí, inclusive, um bom tema para uma próxima edição: “o teatro depois do teatro”.
No turno da noite de sábado, outras duas peças foram apresentadas no palco do SESI e na rua. A peça “Casa de Bonecas”, texto de Ibsen com versão de Daniel Veronese, foi levada à cena sob direção de Roberto Bomtempo e Symone Strobel. Pudemos assistir a um espetáculo de qualidade, com atuações fortes, destacando-se o próprio Roberto Bomtempo. O texto do final do século XIX é bastante atual e exige uma grande agilidade no trato com as palavras que constróem a ação da peça em torno da personagem Nora. Esta, a fim de salvar o marido, toma um empréstimo financeiro com um agiota de quem sofre chantagens até o desfecho da situação, quando a trama é descoberta. A encenação de um clássico da dramaturgia não é algo fácil, e essa montagem surpreendeu positivamente aos espectadores.
Encerrando o festival, foi realizado, na Praça Largo das Forras, o espetáculo “Quando Efé”, da Cia. Fusion (BH/MG). Nesse trabalho, associam-se danças urbanas a aspectos da cultura mineira e ao hip hop. Destaca-se a qualidade de movimento dos dançarinos e uma linguagem autêntica que vem sendo construída pela companhia ao investigar as danças de rua como matrizes. A narração em off fica, no entanto, um pouco deslocada do todo, parecendo servir mais aos dançarinos na composição da cena do que aos espectadores. Mas certamente é uma companhia que merece atenção a seu trabalho e apoio para seu crescimento.
Vale destacar que o festival acolheu bem os espectadores, contando com diversas pessoas no trabalho de produção, iniciando a programação sem atrasos e repetindo sessões para receber a todos. Para a cidade de Tiradentes (MG) e para o país como um todo, a Mostra é uma excelente iniciativa. Os diálogos com artistas, os debates, as oficinas, assim como a apropriação e o uso de espaços alternativos na cidade podem contribuir para o fortalecimento de um eixo curatorial que não tema a artesania e as produções de grupos emergentes. Vida longa à Mostra de Teatro Tiradentes em Cena!
i A Mostra de Teatro Tiradentes em Cena ocorreu de 19 a 27 de maio de 2017. O Horizonte da Cena foi convidado a acompanhar a programação dos dia 26 e 27 de maio de 2017.