Crítica a partir do solo Desmemória América Latina de Michelle Ferreira apresentado no Cine Teatro Brasil (Belo Horizonte) em 09 de abril de 2022.
– por Clóvis Domingos e Marcos Antônio Alexandre –
“O esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, enquanto nos impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana. Acostumaram-nos ao desprezo pela vida e à proibição de lembrar”. (Eduardo Galeano na obra De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso, L&PM, 1999).
Foto: Daniel Protzner
Impossível não lembrar das últimas peças teatrais que assisti presencialmente antes da pandemia.
Impossível não lembrar e chorar as milhares de vidas perdidas pela Covid-19 no Brasil e no mundo.
Impossível não lembrar e reverenciar os amigos mortos dos quais não pude velar nem me despedir.
Impossível não lembrar da condução criminosa e irresponsável do governo brasileiro diante da tragédia que assolou todo o planeta, mas que aqui se transformou numa necropolítica desavergonhada e sem reparação.
Impossível não lembrar que a miséria econômica e social só reforçou o abismo já existente em meio a tantas desigualdades e injustiças cotidianas, isto é, os ricos se tornaram mais privilegiados ainda, enquanto que os pobres perderam os poucos direitos que ainda usufruíam.
Impossível não lembrar da promessa de um Brasil democrático que nunca se cumpriu, ou que quando esteve a caminho de sua realização, nos últimos anos, acabou por ser desarticulada, corrompida e enterrada de vez.
Impossível também não lembrar da minha alegria e estranheza de retornar a uma sala de espetáculos, de reencontrar as pessoas ao vivo (depois de mais de dois anos afastados fisicamente) e juntos assistirmos a um trabalho.
Impossível não me afetar com todo o preâmbulo que antecede o início da peça, a troca de olhares entre o público, ainda que mediados pelas máscaras, observar as conversas paralelas que antecedem cada sinal e a pulsação mais forte quando me deparo com o corpo-presença da atriz adentrando o espaço cênico que será sua morada por cerca de uns 60 minutos em que serão compartilhadas memórias coletivas de uma América Latina fragmentada e cheio de conflitos.
Com Desmemória América Latina, solo de Michelle Ferreira e direção de Rodolfo Guillén, ficou impossível não lembrar da função política do teatro, sua dimensão de assembleia pública, de como as palavras ainda produzem laço social, abrem espaços de escuta e inquietação, oxigenam ideias e acenam (encenam) possibilidades de mudança.
Impossível não lembrar que desde 2014 a Flores de Jorge Cia Cênica vem insistindo em apresentar esse trabalho, o atualizando de acordo com os contextos e fatos, buscando celebrar o gesto da memória: essa ponte necessária entre passado e presente. A atuação delicada e ao mesmo tempo firme da atriz-dramaturga, em cena, a converte num corpo historiador que tensiona as narrativas oficiais e as perfura pela força do dispositivo cênico e ficcional. O que assistimos é um contradiscurso, no sentido de um ato de insurgência e crítica frente aos apagamentos impostos pelos governos ditatoriais de nosso continente, os efeitos nefastos da colonização europeia que ainda hoje nos oprime em suas reiterações colonizantes e nos aliena de nossas identidades latino-americanas.
Impossível não lembrar e nem se angustiar com a proximidade das eleições presidenciais no Brasil de 2022.
Mas focando no espetáculo, impossível não lembrar que desmemória não é a mesma coisa que esquecimento, principalmente quando percebemos cada dia mais que a opção do Brasil seja pelo esquecimento e pelo contínuo apagamento da memória. Impossível não lembrar que só se pode esquecer o que se conheceu, viveu e experimentou. Desmemória América Latina nos convida a ouvir outras vozes, a buscar outras referências, a abandonar nosso desconhecimento, a questionar ausências e lacunas sobre nossas identidades e origens, a se levantar da cadeira que às vezes nos aprisiona e nos mantém passivos.
Ela, a cadeira. Impossível não lembrar da minha avó sentada me contando histórias de família. Heranças que nos enlaçam.
Impossível não lembrar que as cadeiras, quando sentadas por nossos mais velhos e mais velhas, assumem seus corpos-memória e, com eles/elas, nos conduzem para imaginários outros que não nos foram desvelados pelos manuais didáticos e livros de história, pois a memória transcende o tempo e os espaços, dialogam com o passado, conversam com presente e flertam incessantemente com o futuro.
Impossível não lembrar que são as histórias que fundam mundos.
Impossível não lembrar que as memórias fundam novos saberes.
Impossível não lembrar dos trabalhos do Mayombe Grupo de Teatro e do Grupo Mulheres Míticas, ambos dirigidos pela professora chilena Sara Rojo.
Impossível não lembrar que ela, Michelle, está cercada por muitas outras elas: as histórias, as palavras, a memória, a cadeira, a plateia e a força da indignação. A montagem de Desmemória América Latina não quer nos impor verdades ou discursos absolutos, mas nos provocar frações de consciência que se articulam a partir da apresentação de documentos históricos justapostos com a literatura de Galeano e atravessados/fissurados pelos comentários da atriz-dramaturga. Mas a tônica não recai sobre uma possível “narrativa dos vencidos” ou no perigo de uma melancolia paralisante, mas antes, conclama ao trabalho operativo e imaginativo da memória (o diálogo entre o passado e o presente) afim de formular outras realidades menos asfixiantes.
Impossível não lembrar de outras memórias fraturadas advindas de nações irmãs e que são recuperadas no corpo-memória da atriz. Argentina, Cuba, Colômbia, Uruguai, México e Chile, territórios confrontados a partir de identidades convocadas pela corporeidade da atriz em cena. Impossível não refletir sobre os atravessamentos que nos aproximam quando nos vemos convocando e cavucando, de nossas memórias de um passado recente, cenários de violações reincidentes e produzidas por regimes totalitários e que continuam se manifestando com outras formas de coerções sociais.
Impossível não lembrar da voz rouca de Mercedes Sousa nos dizendo que: “porque el tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos”, na canção Años, que eu ouvia numa vitrola da minha casa de infância.
Foto: Daniel Protzner
Impossível não lembrar das Mães da Praça de Maio, Mães da Candelária, Mães de Apoquindo, do impeachament da presidenta Dilma Roussef, do assassinato da vereadora Marielle Franco, da pensadora negra Lélia Gonzalez nos ensinando que aqui nesse chão que pisamos o que existe é uma Améfrica Ladina.
Impossível não lembrar da peregrinação da atriz em cena, entre: vozes, personagens, documentos, objetos e imagens projetadas. São percursos e travessias de uma atriz-viajante entre a História e as histórias. E Desmemória América Latina endereça uma carta cênica a cada um de nós e nos implica radicalmente enquanto sujeitos que agimos no mundo. Quais histórias não nos foram contadas e quais memórias nos foram roubadas?
Impossível não lembrar que tecemos juntos uma memória coletiva e aí se encontra nossa maior subversão e possível legado.
Impossível não lembrar que escrever um texto a partir de um espetáculo pode ser mais do que criticar: mas relembrar, recriar, inventar, demarcar, ampliar e reenviar.
Impossível não lembrar do Movimento Tortura Nunca Mais.
Impossível não lembrar das nossas ancestralidades indígenas e negras.
Impossível não lembrar e lutar para que o exercício da memória nos sirva mais para a libertação e menos para a servidão.
Impossível não lembrar com Galeano que a memória está no ar que respiramos e que ela, no ar, também nos respira.
Impossível não lembrar, ainda em diálogo com Galeano, que as veias continuam abertas em nossas Américas.
Impossível não parar, afim de lembrar onde e como agimos nos últimos tempos, para que não se repitam tantos equívocos e atrocidades.
Impossível sair ao fim do espetáculo e não lembrar e se emocionar com a beleza da canção Piedra Y Camino de Atahualpa Yupanqui a nos lembrar, lembrar e lembrar: “Es mi destino/Piedra y camino/De un sueño lejano y bello, vida y/ Soy peregrino”.
Com Desmemória América Latina compreendemos a necessidade de olhar criticamente para o passado e com ele aprender aquilo que nos ajudará a escrever o futuro, uma vez que a memória desempenha um papel fundamental sobre nossa história. Então, nós como cidadãos e artistas podemos dessa forma produzir não somente conhecimento histórico, mas também sensível. Mas isso, se não nos for proibido e impossibilitado, o exercício e o direito de lembrar…
Ficha técnica:
Concepção, dramaturgia e atuação: Michelle Ferreira
Direção: Rodolfo Guillén
Projeto Gráfico: Tiago Almeida
Criação de iluminação: Wellington Santos
Técnico de som: Flávio Cravo
Assessoria de Comunicação: Enrique Rivero
Produção: Flores de Jorge Cia Cênica.