– por Guilherme Massara Rocha* e Douglas Garcia Alves Jr.** –
Crítica a partir do espetáculo ”Os Indicados”, com Vinícius Souza e João Marcelo Emediato
Pensar a tensão dialética entre indivíduo e sociedade é possivelmente um dos maiores desafios de toda e qualquer narrativa. O momento que vivemos parece de algum modo espessar as dificuldades da questão. E isso na medida em que os processos de racionalização das identidades individuais, historicamente apreendidos por seus contrastes com certas normas objetivas das constelações sociais, ora ganham em opacidade na justa proporção em que perdemos certas balizas sobre as quais afirmaríamos – com certo grau de convicção – o que define uma dada condição social. Talvez estejamos testemunhando o ocaso da racionalidade social repressiva moderna, cujo correlato subjetivo era aquele do indivíduo alienado em um conjunto de funções individuais normatizadas, convicto da necessária estratificação social imposta pelos regimes da família, do trabalho e do Estado, e cujo impulso vital parecia advir de aspirações emancipatórias as mais diversas. A angústia moderna talvez se resumisse, nessa clave, ao ímpeto algo culposo de romper com extratos da norma social, liberando então um ‘desejo’ reprimido de liberdade. Desejo, portanto, de não-sujeição às normas do trabalho, da família, do sexo ou da produção.
Em ”Os Indicados”, todavia, Vinícius Souza e João Marcelo Emediato nos põem frontalmente diante de um novo arranjo. Inspirados em Pasolini, alvejam-nos, no prospecto da peça, com essa frase de impacto: “estremeço, mas é em nós que o mundo é inimigo do mundo”. A porta entreaberta no fundo do palco escancara um breu, ou um enigma que parece se confundir com o fracasso de toda experiência do mundo fora de nós. O vasto mundo e seus nós cegos parecem então imobilizar o sujeito, nele dissolvendo todo esforço de narrar a experiência com o Outro, ou condenando também ao fracasso e à veleidade toda afirmação, todo gesto ou – para usar de um vocábulo que nosso século e uma parte do precedente se incumbiram de tornar absolutamente suspeito – toda autenticidade.
A peça joga com a polaridade descontração/desconforto de maneira muito interessante, mostrando que os aspectos triunfantes da experiência de ser indicado para um prêmio e de compartilhar experiências com um parceiro são, na verdade, indissociáveis de movimentos subterrâneos de desconforto, de estranhamento, e mesmo de incerteza diante do significado daquilo que está em jogo em tudo isso. De maneira astuta, essa polaridade passa a estruturar a dinâmica da peça como um todo, por meio do uso de dois procedimentos complementares: primeiro, a indefinição quanto ao contexto maior que cerca a situação mostrada em cena, isto é, a ausência de informação sobre qual é o prêmio e qual o trabalho produzido pela dupla de personagens, dentre muitas outras indeterminações. Além disso, note-se a ocorrência de uma profusão de figuras estereotipadas de linguagem – isso é inteligente, porque, ao mesmo tempo em que os chavões são banais e recebidos com descontração pelo espectador, eles também dão ênfase às zonas indefinidas, produzindo desconforto, como na frase pronunciada em certo momento da peça: “ouvi dizer que você anda metido com umas coisas”.
Correndo contra o relógio na preparação do discurso, o espetáculo enceta, em toda sua extensão, uma trágica constatação: nem mesmo o reconhecimento social de um objeto que colmata a fusão criativa de duas identidades é capaz do milagre de suprimir as distâncias que as condicionam. O precioso texto da peça explora sem véus ou artifícios o avesso indigesto da sentença “a gente se conhece há muito tempo”. Tipicamente significada como afirmação de uma sinergia que a intimidade se encarregara de cultivar, o que esse bordão descortina é o cabedal de diferenças, arestas e descompassos irredutíveis, que corroem vertiginosamente os esforços de identificação, de alinhamento e, liminarmente, de reconhecimento, tensa e pateticamente perseguidos como signo de um laço discursivo possível. E é justamente quando essa sanha malograda esgota os corpos, as frases e os gestos que nos damos conta de que com ela se esgota também nossa frágil convicção das fronteiras entre palco e plateia, entre a ficção e o real, entre a vida e a arte.
Essa condição radical de indeterminação, esse discurso que só mascara o que tem a dizer, que é pura forma vazia, esse prêmio que é “um estrondo”, mas que nunca é explicitado em seus critérios e finalidades, tudo isso é a encenação de um impasse atual, o da corrosão da palavra que atinge o outro, um outro que seria ainda capaz de ouvi-la. Ou ainda de enfraquecimento da ação que se faz com o outro, um outro que ainda seria capaz de tomá-la nas mãos e começar a fazer existir algo novo. Eis-nos imersos na drummondiana situação em que já não é mais possível dizer “espírito de Minas, me visita, e sobre a confusão desta cidade lança teu claro raio ordenador”. Pois não há Minas, não há palavras e não há gestos em comum.
O caráter algo informe que tonifica a peça desde o início se torna estranhamente belo nos momentos em que a epopeia de uma narrativa fracassada se derrama por todo o teatro, irmanando atores e espectadores num silêncio morno e perplexo. A incongruência das identidades, êxtimas de si e do Outro, calam. Inapreensíveis, indizíveis, não são todavia inefáveis, uma vez que se manifestam em negativo, pelo sintoma, trejeito e claudicação, que me é revelado por aquele que me conhece há muito tempo. No mortífero jogo de espelhos que os dois parceiros protagonizam, o que se reflete são também estilhaços de nosso tempo, incerto dos fundamentos simbólicos que norteavam uma imagem, pálida que fosse, de sujeitos. Desabonados de ideais ou crenças, tentam os indicados sobreviver sem indicações. Resistindo como podem à pura instrumentalização da razão e do ser, e suando sobre a corda bamba da cacofonia, do aniquilamento e do silêncio.
Se recuarmos ao que é realmente antigo, às fontes gregas da civilização ocidental, o prêmio era concedido aos esportistas, poetas e dramaturgos que se destacavam em competições, e tinha um significado reconhecível para todos e a qualquer um: assinalava a kleos, a glória que revestia o mortal com a aura da imortalidade. Em outros termos, aquele que o recebia era destacado pelos seus feitos e palavras incomuns e dignos de lembrança na sequência futura das gerações. O prêmio inseria o seu recebedor no livro da vida, mesmo após a sua morte. Tornando o sem-sentido de sua condição mais digno de ser suportado.
* Guilherme Massara Rocha é psicanalista e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
** Douglas Garcia Alves Jr. é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto.