– por Bremmer Guimarães –
Crítica a partir da leitura das peças “O Anarquista”, de Marina Viana, e “Boleta Burguer”, de Francisco Falabella Rocha
Pensar a produção dramatúrgica voltada para crianças e adolescentes é pensar a formação de público no teatro. A partir desse mote, a edição especial do Janela de Dramaturgia em 2017 propôs a dramaturgas e dramaturgos da cidade a criação de textos infantojuvenis inéditos, que foram lidos durante a realização da mostra no Sesc Palladium, no último mês de outubro. Num tempo em que a arte tem sofrido constantes retaliações de sujeitos conservadores e sua relação com o público infantil é muitas vezes deturpada por fundamentalistas, escrever para crianças e adolescentes é um desafio e, sobretudo, uma resistência.
A arte é um possível instrumento de transformação de uma realidade social. Realidade essa que insiste em infantilizar crianças e cerceá-las de conhecimentos que seriam efetivos para sua formação e ação na vida adulta. Nega-se à criança o conhecimento sobre política, sobre gênero e sexualidade, impõe-se a essas pessoas recém-chegadas no turbilhão-mundo uma educação embotada, desgastada, que ainda tenta nos aprisionar em moldes, em caixas. Parecemos viver em um tempo em que as verdades hegemônicas não podem ser questionadas. Tempo em que amor e educação poderiam ser chamados de castração. Sim, crianças castradas. Violência camuflada de boas intenções e que gerará consequências drásticas no futuro dessas pessoas.
Intolerância, racismo, machismo, homofobia e transfobia são aprendizados. Nem toda educação contribui para a formação e a transformação. A educação das verdades absolutas, que não se permite autocrítica, que não se percebe em constante processo, trânsito, aprendizado, gera repressão, medo, destruição. Pauta-se por dogmas que não passam de ficções. A ficção que se configura realidade por meio da linguagem, repetida inúmeras e inúmeras vezes. E, de fato, parece difícil implodir essas supostas verdades. Mas não é impossível. Diante do autoritarismo, é preciso agir, agir, agir. Buscar a ação em vez do conformismo. Buscar o diálogo em vez do silêncio. Romper com a ordem vigente. Com o pensamento normatizador.
Nesse sentido, me questiono: até que ponto ainda estamos sendo passivas e passivos em nossas ações? Em nossas criações? Em que medida ainda somos reféns das configurações sociais que já estão pré-estabelecidas em vez de romper radicalmente com suas amarras? Como seria um teatro verdadeiramente refratário? Um teatro infantil refratário. Que resiste às leis, às normas, aos princípios de autoridade, um teatro insubmisso. Em época de palavras em disputa, de brigas por palavras, esgarçar a palavra e a linguagem sem medo. Sem medo da palavra radical. Radicalmente comprometida com o diálogo e a possibilidade de transformação.
Afinal, o medo só existe porque existe a violência. Violência muitas vezes justificada pelo amor. Invenção de pessoas que acreditam ter mais poder do que outras. Que acreditam ter poder sobre outras. E, por isso, podem ter controle sobre elas. Se pessoas adultas acreditam ter controle sobre crianças, em vez de considerá-las no nível do diálogo, esse é um pensamento que irá se disseminar ao longo dos anos e gerações. Formará novas pessoas adultas acreditando mais uma vez que podem ter mais poder e controle sobre outras. Não que crianças não careçam de uma referência adulta. Mas essa referência precisa ser outra. A pessoa adulta também continua em processo de aprendizado, de formação, ao longo de toda sua vida. Somos seres que não se cristalizam. E esse pensamento poderia transformar uma perspectiva de futuro que cria tantas idealizações, projeções, ambições e frustrações.
Não há mais tempo para a conformação. O teatro infantojuvenil sempre terá compromisso com a educação? O que no mundo não tem compromisso com a educação? O capitalismo neoliberal, a indústria cultural, a política fascista estão nos educando o tempo inteiro. A negação da educação é também uma educação. Educação invisível. Que constrói suas hegemonias. O teatro infantojuvenil tem o mesmo compromisso com a educação que qualquer teatro que se assuma político. Todo teatro é político. Não há mais brecha para o simples entretenimento. O teatro para crianças e adolescentes pode e deve ser pensado como uma arte para todas as idades. Arte que se comprometa com a implosão do status quo. Educação aqui é possibilidade de gerar perguntas, experiências, afetações, desconstrução.
É potente perceber que a Janela de Dramaturgia é uma busca pela desconstrução do rito teatral convencionado. Rompe-se com a ideia de que o teatro se encerra apenas em espetáculo, obra, produto. Rompe-se com o teatro que se encerra apenas no palco, na autoridade de atrizes e atores, e estabelece a passividade do público. Espectadores e espectadores são criadores ativos na experiência teatral. Compartilhar a leitura de uma dramaturgia é também uma experiência teatral. Pensar outras relações com o teatro é uma forma de educação. De reeducação. Uma educação que se pauta pela possibilidade de uma existência outra. Isso é transformador.
Como espectador, nos percebemos também em processo. Pode parecer difícil manter a concentração na leitura de uma obra dramática. A centralidade do texto ainda é o que impera numa leitura? Há como negar a camada de encenação que o rito compartilhado por artistas que leem e pessoas no público instaura? Como pensar a minha qualidade de presença enquanto atriz e ator que lê o texto? Como pensar a minha qualidade de presença enquanto espectador do texto? A performatividade de quem lê e de quem ouve se constrói em relação presencial. Essa é uma das potências e singularidades do teatro.
Na leitura do texto “O Anarquista”, de Marina Viana, chama atenção o viés histórico e político da obra. Diversas figuras históricas, do passado e do presente, são colocadas em cena, criando um imaginário em que a convivência entre as diferenças – de tempo, idade, vivências, experiências, corpos – se torna uma possibilidade real. Transformar a realidade por meio da imaginação é um caminho possível? Aqui sim. E Marina se compromete a não abrir mão de sua linguagem, de sua performatividade e de impressões características suas, presentes em outras obras voltadas para adultos, neste teatro dito para crianças.
As referências do mundo estão circulando por aí. As figuras revolucionárias da história nos são apresentadas desde o primário na escola. As figuras da cultura pop estão aí na televisão, na internet, no celular. As crianças do século XXI estão cada vez mais conectadas com o mundo ao seu redor do que com um mundo particular. E, sim, a nostalgia e a ludicidade de tempos passados, de uma “infância poética” ainda não atravessada pelo impacto do virtual, do tecnológico, não devem ser negados. Mas é preciso também encarar que os tempos são outros. Que as crianças do agora não podem ser subestimadas. O papo é de igual para igual.
A abertura do trabalho faz lembrar o filme “O Baile”, de Ettore Scola. A cena da peça em que diversas mulheres da história se apresentam para o público pode ser lida como uma ressignificação da primeira cena do filme. Se, na obra italiana, víamos mulheres diante do espelho, se preparando para um baile, à espera de seus pretendentes, ou seja, víamos ainda a perpetuação de um pensamento binário de gênero e no qual a mulher se submetia a um pretendente, a um homem, no texto de Marina as mulheres não esperam mais ninguém. São efetivamente as proprietárias de seu discurso. Vieram pra chacoalhar anarquicamente as estruturas machistas e patriarcais.
Já em “Boleta Burguer”, de Francisco Falabella Rocha, a estrutura dramática revela como desde crianças já nos organizamos social e politicamente. As relações performadas entre as personagens da obra são relações de poder. Os famosos “Clubes do Bolinha” e “Clubes da Luluzinha” são uma representação prévia do que se configurará na vida adulta, em que ainda imperam as divisões e articulações de grupos por gênero e nos quais prevalece a figura masculina. Um ingênuo grupo de amigos do futebol tem muito a nos dizer.
Ao acompanhar a leitura, o texto traz imagens que remetem a diversos desenhos animados e filmes em que essa configuração de grupos de crianças engajadas numa missão, numa brincadeira, num desafio, está presente. Filmes dos anos 1980 como “Os Goonies”, “Conta Comigo”, “Clube dos Cinco”, desenhos animados dos anos 1990 e 2000 como “Du, Dudu e Edu”, “Rugrats: Os Anjinhos”, podem criar diálogos com a obra, por fazerem partes de nossos repertórios, ainda que estejam ancorados numa cultura norte-americana, pautada pelo entretenimento, ainda vigente. Se formos traçar vínculo com uma produção brasileira contemporânea, vale destacar também o desenho “Irmão do Jorel”, de Juliano Enrico, e que busca inserir questões políticas em sua narrativa, sem abrir mão da estética do “cartoon”.
É potente perceber, por exemplo, certas subversões de um pensamento machista que a “Boleta Burguer” traz. Falar sobre futebol imediatamente nos aponta para um olhar masculino e isso precisa ser mudado. O próprio texto não consegue se desvencilhar desse masculino vigente em alguns momentos. Na brincadeira entre os personagens principais, a comédia surge diante do fato de um menino ter visto a mãe de outro nua, tomando banho. Isso gera a irritação do filho e a forma como o corpo da mãe-mulher é retratado pelas personagens pode ser lida como a semente daquilo que no futuro irá reverberar na objetificação do corpo feminino. Isso se confirma quando os garotos descobrem que na verdade foi o pai do menino quem tomava o banho. A comédia passa a ser gerada pelo fato de um menino ter visto um homem pelado. Por quê? Mesmo que não haja a intenção, e sabemos que não, é uma raiz de pensamento homofóbico que nos escapa. E para o qual devemos nos atentar sempre.
Em contraponto, o debate sobre gênero aparece na figura da menina que assume o papel de treinadora do time formado por seus amigos, meninos. Essa é uma possibilidade que causa estranhamento na vida adulta, que gera machismo, preconceito, porque nos é negada desde a infância. Desde o jardim de infância. Meninos jogam futebol. Meninas jogam queimada. Separados. Por quê? Mais do que isso: por que nossos educadores ainda perpetuam esse pensamento? Mais ainda: será mesmo que esse pensamento ainda se perpetua? Falo de referência e vivência minhas. Desde criança, já me identificava como uma pessoa diferente dos outros meninos ou daquilo que me era colocado como ser menino. Já me compreendia homossexual, ainda não que soubesse efetivamente o que seria aquilo. Fico pensando nas crianças-espectadores que até hoje também se sentem deslocadas diante dessas representações hegemônicas, desses padrões. Dessas possibilidades únicas de existência e experiência.
Nesse sentido, reflito aqui sobre uma continuidade para essa edição do Janela de Dramaturgia. Por que não levar essas leituras para as escolas? Por que não ouvir o que as crianças têm a dizer sobre esses textos? Por que não dar foco para que as crianças também escrevam esses textos? Ainda somos adultos determinando o que as crianças podem, devem ou merecem. É um paradoxo inevitável. Talvez? Mas uma pergunta que nunca deve escapar em nossa criação e ação como artistas e educadores.
Nos dois textos, é potente perceber como a busca pela performatividade da leitura, em vez de uma representação das personagens lidas, contribui para a busca pela não-infantilização de um teatro infantil. Não há concessões para o registro geralmente presente em obras ditas infantis. E, sendo teatro, não há necessidade para esse registro. É uma escolha justamente explorar a potência de imaginação, de brincadeira, de criação de realidades outras, que o teatro permite, em vez de fingir, de tentar representar uma realidade da qual queremos dar conta o tempo inteiro. E isso poderia ser possível? É mais um desafio. Mas aqui se revelam outros caminhos.
Performatividade que se potencializa quando vemos corpos diversos nas duas leituras. Corpos de mulheres, de homens, corpos trans, corpos cis, corpos magros, corpos gordos, corpos brancos, corpos negros, corpos velhos, corpos novos, corpos múltiplos, corpos que presentificados no aqui e agora são a concretude das diversas possibilidades de existência que existem e que não podem mais ser ignoradas, invisibilizadas, negadas.
Em “O Anarquista”, chama atenção a presença de uma criança na leitura. Performativo que se explicita quando corpo e texto parecem dissonantes: vemos uma criança com um discurso supostamente “não infantil”. Em “Boleta Burguer”, o surrealismo surge como afirmação de que mesmo o que nos foi condicionado como “impossível”, “inverossímil”, é possível. É preciso tomar posse do nosso próprio poder. Daí a capacidade do teatro de criar realidades outras, em vez de se pautar em apenas retratar as já existentes. Daí a potência dessa Janela de Dramaturgia. Embrião para uma nova era, para um novo pensamento sobre a arte e nossa ação política no mundo. Um pensamento urgente.