Crítica a partir do espetáculo “A Visita da Velha Senhora” de Friedrich Dürrenmatt e direção de Luiz Villaça.
– por Diogo Horta e Natália Moreira –
Fotos: Cacá Bernardes
O suíço Friedrich Dürrenmatt escreveu “A Visita da Velha Senhora” em 1955. O dramaturgo, um estudioso do teatro épico de Bertolt Brecht, não tem sua obra muito difundida no Brasil e, para sermos sinceros, até a montagem estrelada por Denise Fraga, não conhecíamos a obra dele. A atriz, com trajetória cômica na televisão e no teatro, retorna aos palcos após realizar outras duas montagens do dramaturgo alemão, “A Alma Boa de Setsuan” e “Galileu Galilei”. A relação entre Dürrenmatt e Brecht e o desejo de unir comédia e pensamento crítico parecem conduzir esta montagem de “A Visita da Velha Senhora”. Como pode ser observado no programa da peça algumas questões embasam a escolha do texto e da encenação: “(…) O que é fazer justiça? Até que ponto a linha ética enverga diante do poder do dinheiro?”.
O espetáculo, que ficou em cartaz entre os dias 26 e 29 de abril no Teatro Sesiminas, gira em torno da espera dos moradores de Güllen por uma salvação. A maior diversão (talvez a única) naquele lugar, é ver a passagem dos trens que vão para lugares onde há dinheiro e progresso. A cidade vive em miséria. Porém, uma mulher, filha de um cidadão que trabalhava ali como pedreiro, atualmente está milionária e vai fazer uma visita à sua terra natal. Ela se torna a esperança e é aguardada com muita ansiedade.
Em sua chegada, Claire Zahanassian é recepcionada de maneira calorosa, inclusive por Alfred Krank, seu antigo namorado. No grande jantar de recepção vem a notícia central do texto de Dürenmatt: a milionária oferece dois milhões à cidade e mais uma quantia em dinheiro para cada família assim que Alfred Krank for morto.
A informação é surpreendente tanto para os personagens quanto para o público. A história de Claire é, então, revelada. Ela, de fato, namorou com Alfred Krank e dormiu com ele uma noite, tendo engravidado. Ele, pai da criança, foi procurado e não assumiu nem a relação com a jovem e nem o filho. Para resolver a situação, Claire procurou o juiz da cidade para que pudesse apoiá-la e defendê-la. No entanto, Krank contratou duas falsas testemunhas que confirmaram para o juiz que também tinham dormido com Claire. Com isso, a voz de uma garota grávida não foi ouvida (mais uma voz feminina interrompida por um homem). Claire saiu da cidade, teve seu filho, o entregou para ser adotado e só encontrou sustento na prostituição.
É importante observar que tanto no texto do dramaturgo suíço, quanto na encenação, o espaço em termos de tempo e importância cênica desta passagem é bastante curto se comparado com a duração da encenação e das cenas que envolvem o sofrimento da cidade e do próprio Alfred Krank após o pedido de sua morte por Claire.
Os cidadãos acham aquela proposta terrível. Como cometer um crime tão atroz? Será a proposta realmente justa? É possível que a justiça seja comprada? A questão que permanece até o final do espetáculo é o dilema entre a decisão de assassinar o “bom moço” da cidade ou não, em troca do dinheiro e do progresso que voltará ao povoado.
O texto é potente, pois apresenta um enredo rico em possibilidades e contradições. A decisão sobre a execução de um homem em troca de dinheiro é complexa e pode ser feita hoje em dia perfeitamente. Por isso, além dos personagens, o texto coloca também o espectador dentro do conflito. É importante ressaltar que a encenação se esforça desde o início para trabalhar o público como o povo da cidade de Güllen e isso ganha força na medida em que a dramaturgia avança, visto que é o povo quem deverá decidir o destino de Krank.
A reflexão colocada, sobre até onde cada um é capaz de ir por dinheiro, é bastante atual e, sem dúvida, feita de forma bastante interessante pelo autor, tanto que faz o texto se articular plenamente com a realidade brasileira hoje (nos casos de busca desenfreada por dinheiro por meio da corrupção, por exemplo). O mérito da encenação em tratar esta questão também é grande, pois consegue envolver o público e colocá-lo lado a lado com as dúvidas e questões dos personagens.
É impossível não sair do teatro no mínimo incomodado. A história contada é complicada, atualíssima e coloca em questão o senso de justiça e de ética. Mas além disso, há algo ali que pode passar despercebido e que também deveria ser colocado à luz para uma reflexão um pouco mais aprofundada pelo texto ou pelo menos pela encenação: a gravidade do crime cometido por Alfred Krank.
Ao longo do espetáculo, é possível acompanhar a angústia do personagem de Tuca Andrada ao ver sua vida por um fio. O personagem reconhece que errou, mas a encenação o transforma quase em grande herói: os ombros, que vão caindo com o passar das cenas mostram aquele que está disposto a morrer para que a cidade saia da miséria. Claire se torna então, apenas uma terrível e vingativa vilã. Poderia ser vista por muitos como mais uma mulher escandalosa fazendo mimimi, mais uma revoltada, mais uma interesseira, inclusive pela interpretação de Denise Fraga.
No entanto, dentre tantos pontos positivos que o espetáculo trata, é esse ponto de fragilidade no texto e na encenação o que nos motiva a tecer algumas reflexões sobre este trabalho: a violência contra a mulher é esquecida e mais uma mulher é abandonada, injustiçada e tida como insana por sua busca por justiça.
Neste sentido, entendemos que seria necessário não deixar o público esquecer que no passado aquele “nobre cidadão” de Güllen cometeu um erro e uma violência com uma jovem mulher (não há indícios de violência sexual na obra, mas abandoná-la grávida e contratar outros homens para mentirem para o juiz já é uma violência, obviamente). E esse é um assunto extremamente urgente para ser deixado de lado, sobretudo nos dias de hoje. É dessa forma que começam a ser geradas estatísticas como àquela sobre o número de feminicídios à espera de punição (https://www.otempo.com.br/capa/brasil/minas-gerais-%C3%A9-o-segundo-estado-em-n%C3%BAmero-de-feminic%C3%ADdios-%C3%A0-espera-de-puni%C3%A7%C3%A3o-1.1859337). A ênfase dada na justiça que será feita apenas por causa do dinheiro é o problema. A peça poderia trazer a questão da opressão contra a mulher, jovem/adolescente também para o centro da discussão.
A encenação brechtiana, linha que a atriz Denise Fraga vem seguindo nos últimos anos – destaque para canções, recepção do público e primeiro contato sem a personagem –contribui bastante para a estética que associa comicidade e reflexão. A encenação poderia ainda explorar propostas de distanciamento para tratar da questão da mulher no próprio texto de 1955? Seria o caso de usar recursos para destacar os crimes que, de fato, o protagonista cometeu?
Outro ponto interessante da encenação é a votação do povo de Güllen pela morte de Krank. Como já dito anteriormente, a condução de que o público presente é parte deste povo reforça o conflito na plateia. A votação, no entanto, acontece de forma bastante rápida e não considera os votos do público (talvez porque a encenação teria que se abrir para dois finais possíveis). Mesmo assim, além de constranger seria potente esperar um pouco mais de tempo para que o público se manifestasse. Seria interessante dar espaço para as pessoas demonstrarem sua posição. Entretanto, mais que isso, seria importante deixar explícito que a condenação e morte sofrida por Krank não está relacionada apenas ao dinheiro, único ponto que a encenação tem a tendência de indicar.
Além do retrato de mulher cruel, que carrega em si o imenso desejo de vingança, Claire Zahanassian precisa também ser vista como mais uma vítima de uma cultura machista seja em 1955, seja em 2018. Se a busca por justiça é feita de forma legítima, comprando a morte do homem que a prejudicou, é outra questão para ser pensada. O fato é que o machismo só deixou esta alternativa para uma prostituta milionária que teve seu destino totalmente alterado pelas mãos de homens injustos.
Espetáculo assistido no dia 28 de abril de 2018 no Teatro Sesiminas em Belo Horizonte.
Ficha técnica:
Autor: Friedrich Dürrenmatt
Stage rights by Diogenes Verlag AG Zürich
Tradução: Christine Röhrig
Adaptação: Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala
Direção Geral: Luiz Villaça
Direção de Produção: José Maria
Elenco: Denise Fraga, Tuca Andrade, Fábio Herford, Davi Taiyu, Romis Ferreira, Maristela Chelala, Renato Caldas, Eduardo Estrela, Beto Matos, Luiz Ramalho, Rafael Faustino, Fabio Nassar e Fernando Neves
Direção de Arte: Ronaldo Fraga
Direção Musical: Dimi Kireeff
Trilha Sonora original: Dimi Kireeff e Rafael Faustino
Desenho de Luz: Nadja Naira
Direção de Movimento: Keila Bueno
Direção Vocal: Lucia Gayotto
Visagismo: Simone Batata
Assistente de Direção: André Dib
Assistente de Produção Musical: Nara Guimarães
Engenheiro de Mixagem: Fernando Gressler
Produção Executiva: Marita Prado
Assistente de Produção: Cristiane Ferreira
Camareira: Maria da Guia
Assistente de Iluminação: Robson Lima
Design de Som: Carlos Henrique
Cenotécnicos: Jeferson Batista de Santana, Edmilson Ferreira da Silva, Douglas Caldas
Assessoria Financeira: Valkíria Góes
Fotografia: Cacá Bernardes
Produção: NIA Teatro