– Por Diogo Horta –
Crítica a partir do espetáculo para bebês “É tão belo como um sim” com direção de Débora Vieira (Belo Horizonte/MG).
Fotos de Fabiano Lana
Mortes e nascimentos. Dois processos tão conectados, tão semelhantes, tão absurdos, tão surpreendentes. Morte e vida. “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto é a escolha da diretora Débora Vieira e dos demais artistas integrantes do espetáculo “É tão belo como um sim” para se inspirarem livremente na criação de um espetáculo teatral para bebês (mas não só para eles).
A primeira vez que ouvi a expressão “Teatro para bebês”, há aproximadamente um ano e meio atrás, achei algo bastante sem propósito. Em princípio achava que não faria sentido fazer um espetáculo teatral para bebês inquietos, chorões e parados no colo de seus pais ou responsáveis. Essa descrença inicial no gênero acabou me impedindo de assistir algumas experiências de teatro para bebês em Belo Horizonte vindas de outros estados, sendo uma ou duas produções em 2016 e 2017 (até onde posso me lembrar).
No entanto, em dezembro de 2017, o Sesc Palladium apresentou na programação da Mostra de Processo dos trabalhos do Centro de Criação para Atores e Diretores – Cecad[1] um espetáculo para bebês intitulado “É tão belo como um sim”, ao qual tive oportunidade de assistir. O espetáculo estreou oficialmente em 05 de maio de 2018, também no Sesc Palladium e me surpreendeu em muitos sentidos.
Antes de tudo é preciso lembrar: teatro para bebês é teatro. E o fato de ser voltado para bebês não exclui a possibilidade de alguém como eu, sem bebês, apreciar aquela experiência. Imagino, pelos sorrisos sinceros e emocionados dos pais, que ir acompanhando seu bebê nesta experiência deve tornar o espetáculo ainda mais interessante. Assistir “É tão belo como um sim” foi fazer várias descobertas junto com os pais e os bebês, sendo a principal delas a de que teatro é relação entre seres humanos e por isso pode ser potente em qualquer tempo de vida.
O espetáculo associa de forma bastante coerente música, projeção de imagens, teatro de objetos e improvisação. A proposta compõe uma teia que se conecta aos poucos, com uso limitado do texto e grande aproveitamento do jogo em cena com elementos simples que surpreendem pouco a pouco os espectadores: (1) Os bebês riem, aproximam, afastam, entram em cena, saem de cena, olham para cena, olham para os pais, “falam” com os atores, se olham entre si. (2) Os pais riem, percebem relações entre os elementos cênicos, compreendem o texto e as metáforas, buscam seus bebês no meio da cena, parecem se deliciar com o jogo de palavras, falam com os atores, olham para cena, olham para os bebês, se olham entre si. Pura ludicidade.
A relação com a obra que inspira a montagem, “Morte e vida Severina”, pode ser percebida por diversos elementos e referências presentes na encenação, embora a narração de uma história não esteja presente na montagem. A principal questão que essa obra parece trazer para o espetáculo diz respeito ao fato de situar uma realidade de morte e vida, de alegrias e tristezas, em uma montagem voltada para bebês e de forma profundamente leve e relacional.
A primeira afirmação que o espetáculo propõe ao público é a de que todos somos Severinos. Os atores se apresentam com seus próprios nomes, mas em seguida dizem que podem ser chamados apenas de “Severino ou Severina”. O mesmo fazem para os bebês: perguntam os nomes dos bebês e perguntam aos pais se poderão chamar a criança de Severino. Os pais, em geral, respondem que sim e cria-se assim este pacto: “Somos todos Severinos”. A música que segue esta espécie de prólogo é uma confirmação, ao dizer que somos todos Severinos, iguais em tudo na vida. Com isso, o público adulto é convocado a perceber que apesar do tempo de existir de cada um dos presentes, todos somos iguais diante dos desafios que a vida apresenta ou nos apresentará no futuro.
Assim, o espetáculo convida a todos a “brincar de Severino” a partir das dificuldades de um retirante que “enfrenta a seca e vai plantando sim onde só se tem não”. Os pássaros e a morte de um deles, causada por falta d’água ou algo do tipo, é apresentada de forma delicada e silenciosa, manifestando a fragilidade da existência e as agruras do mundo. O mesmo ocorre com a representação de outras características da seca e do sertão, ancoradas numa projeção mapeada em diálogo com os atores em cena. Aparecem neste contexto elementos como espinhas de peixes que parecem nadar e se debater ao mesmo tempo, partes de uma cobra que circunda a projeção enquanto o grupo de atores se desloca em conjunto e em movimento e também sons que remetem àqueles produzidos por estes animais, além de uma árvore seca representada pelos corpos dos atores em uma espécie de falso teatro de sombras pela projeção que cria e oferece imagens ricas e instigantes para o público.
Na sequência, a projeção localiza uma mudança para um cenário mais urbano. Neste momento, aparecem projetados prédios, ferramentas de trabalho e capacetes de segurança da construção civil. Ainda neste contexto, os atores propõem a chegada do trem e para isso convidam os bebês para engatinhar junto deles como pequenos vagões. Tudo isso, apesar de certa aspereza temática, é construído de forma que permite um encontro entre todos, uma brincadeira de ser e não ser dos atores em constante transformação e uma relação positiva entre os bebês e as cenas propostas a cada momento.
Há no espetáculo uma proximidade física grande entre o público e os atores em todos os momentos. Os bebês são convidados para a cena às vezes e muitos deles acabam indo para cena mesmo quando não são convidados, sendo recebidos sempre pelo sorriso dos atores e por uma visível sensibilidade destes em lidar e jogar com a presença dos pequenos em cena. O público adulto é orientado a deixar a percepção do bebê livre, sem interferência/condução para a percepção e relação com as situações cênicas. Apesar de muitas cenas no início do espetáculo acontecerem no chão, para assim, se aproximar mais do público, isso também dificulta a visibilidade destas cenas, já que o público também está no chão e não há inclinação para ajudar na visibilidade. Sendo assim, cabe considerar se a exploração de um plano médio por parte dos atores em alguns momentos não poderia suavizar esta questão.
Uma das cenas que mais me marcou no espetáculo foi aquela na qual os adultos foram interrogados sobre coisas que eles sabiam fazer. Então alguns responderam que sabiam fazer torta, ou dirigir, ou jogar futebol, entre outras coisas. Na sequência, os atores também perguntaram aos bebês o que eles sabiam fazer. “Ouviram” atentos as respostas e só depois compartilharam com o restante do público o que “ouviram”: cocô, xixi, mamar, dormir, cocô, xixi, mamar, dormir, cocô, xixi, mamar, dormir…
A simplicidade da resposta causou reação imediata nos adultos. Eles riram juntos de uma realidade que é partilhada por eles como coletivo e que reforça a ideia da igualdade entre todos ali. A brincadeira, ao mesmo tempo em que lembra as tarefas e as rotinas que são cumpridas incessantemente pelos pais, também nos conecta com o amor incondicional deles com seus bebês em sua dedicação diária. Um dos pontos altos da experiência neste espetáculo é sentir seu apelo para que o afeto e o cuidado possam pulsar em cada ser humano presente na sala.
O nascimento de uma criança, já acompanhei o de muitas em família, é como um sinal de renovação, de abertura de um novo e desconhecido mundo, repleto de “cocô, xixi, mamar, dormir”. Em geral, os pais (sobretudo os de “primeira viagem”) protegem o ninho e a cria como o instinto parece guiar. O mundo parece ficar ainda mais perigoso e violento depois que se tem a chegada dos pequenos. A aridez do sertão de João Cabral de Melo Neto no espetáculo, representa um pouco deste mundo que pode se apresentar hostil.
Até que o espetáculo se encaminha, então, para sua última cena: o nascimento de mais uma criança. Esta cena é feita por meio do Teatro de Objetos, ou seja, apenas com a manipulação de objetos representando os personagens em cena. Neste caso, a direção optou por trabalhar com objetos do cotidiano de uma cozinha, como colheres, abridor de vinho, pegador de macarrão, ralador, garfo, dentre outros. A cena se constrói desde o parto custoso da criança até a chegada de visitantes que proferem seus votos de vida e saúde ao recém-chegado. “O bebê é tão belo como um sim”. Esta frase traz mais sentido para o título do espetáculo e conclui o argumento da montagem de que “cada nova criança que nasce é um sinal de que a natureza não desistiu de nós” como consta na sinopse do trabalho.
Neste sentido, o espetáculo fortalece a compreensão do nascimento como uma forma de renovação da esperança e da possibilidade de transformação do mundo. Amplia-se a consciência dos pais de que o filho é mais um ser humano que vai lutar, sofrer, cair e se levantar, mas que com ajuda e confiança, pode romper as mazelas da vida. Não é ruim que os pais vejam seus filhos sendo chamados de Severinos logo bebês, que relembrem desde já as agruras da vida que poderá vir, para que possam se atentar ao mundo de hoje e tentar agir para tornar algo melhor no futuro. Ver o bebê como igual a si mesmo, só que em tempos diferentes, poderia ajudar os adultos a fazer diferente hoje? Poderia ajudar a sermos mais coletivos e conscientes do todo da vida? Perceber desde cedo que o bebê enfrentará o mundo em algum momento poderia levar os pais a renovar sua esperança de vida e as possibilidades de transformação da situação atual? Dessa forma, o espetáculo nos move em direção a algo, na certeza de que “cada nova criança que brota é como um sim numa sala negativa” (trecho da sinopse).
Cabe ainda observar, de forma mais detalhada na concepção do espetáculo, a qualidade do trabalho desenvolvido pela equipe técnica da montagem no que se refere à música, ao figurino e à projeção de imagens, bem como as conexões propostas na dramaturgia e na encenação como um todo. Os elementos e a forma como são postos em cena enriquecem a experiência teatral do público na medida em que parecem brincar entre si. A trilha sonora, por exemplo, destaca as letras para os adultos ao mesmo tempo que desperta melodicamente o interesse dos bebês, alimentando o espetáculo e criando a atmosfera necessária para a percurso dos atores. Já a projeção surpreende e renova o interesse de sua utilização com imagens que fogem totalmente do padrão infantil habitual. Sendo assim, estes elementos agregam a possibilidade de criação de um ambiente de confiança e de troca no qual seja possível o encontro entre pessoas que não se conhecem, mas que partilham e vivenciam uma experiência sensível.
E como terá sido esta experiência para os bebês? Comecei este texto compartilhando que buscava entender um sentido para o teatro para bebês. Pelo visto, encontrei argumentos que me fazem defender esta experiência para qualquer pessoa. Quanto aos bebês, seria necessário estudar sua percepção, sua compreensão, sua apreensão de forma mais científica para entender como podem absorver esta experiência. No entanto, é possível observar que eles se sentem à vontade neste espaço desconhecido que é o teatro, que poucos (ou quase nenhum) choram durante o espetáculo, que permanecem atentos, que sorriem muitas vezes e que vão para o colo de quem nunca viram antes. Tudo isso indica que gostaram da experiência, que como já disse, tende a frutificar encontros e espalhar uma energia bastante saudável.
A experiência também parece ser bem-sucedida pelo volume de público presente nas sessões. Pude acompanhar a mostra de processo bem como o primeiro final de semana da temporada de estreia e o número de pessoas para assistir era muito grande, levando o grupo a fazer constantes sessões extras[2]. O público de pais e bebês parecia sedento por encontros fora de casa e estava mais que disposto a dizer sim ao teatro e à vida. Que continuem assim à medida que as crianças forem crescendo e que retornem cada vez mais ao teatro para outros encontros!
Espetáculo assistido em dezembro de 2017 na Mostra de Processo do Cecad no Sesc Palladium e em 05 de maio de 2018 na programação da Semana Especial da Língua Portuguesa do Sesc Palladium.
Ficha Técnica:
Elenco – Temporada de estreia: Carol Carvalho, Isabela Arvelos, Lucas Barbosa, Igor Ayres e Cibele Lauria Silva
Elenco – Mostra de Processo: Lucas Barbosa, Igor Ayres, Mara Costa, Raquel Pessoa e Cibele Lauria Silva
Direção: Débora Vieira
Assistente de Direção: Hortência Maia
Direção Musical e Trilha Sonora: Cibele Lauria Silva
Figurino e cenário: Carloman Bonfim
Iluminação: Enedson Gomes
Projeção mapeada: Fabiano Lana e Edusá
Designer gráfico: Rosiane Pacheco
[1] Projeto do Sesc Palladium que “se propõe a ser um momento de encontro criativo entre atores e diretores de teatro que tenham o desejo de criar novos trabalhos, encontrar novos parceiros para a criação cênica em Belo Horizonte e passar por um processo de reciclagem de formação teatral” (Programa da Mostra de Processo – Cecad 2017). A edição 2017 deste projeto foi dedicada a produções para crianças e jovens e teve a coordenação do Grupo Oriundo de Teatro.
[2] Com a ressalva de que o espaço comporta no máximo 60 pessoas.