Crítica do espetáculo À Sombra da Goiabeira, apresentado no auditório do BDMG Cultural no dia 13 de dezembro de 2018.
– por Guilherme Diniz –
Na esteira da segunda edição do Prêmio Leda Maria Martins, o Teatro Negro e Atitude, celebrando 25 anos de atividades, apresentou, no dia seguinte à premiação, o espetáculo “À Sombra da Goiabeira”, no qual dramatiza, sensivelmente, as fissuras emocionais entre pai e filho, feridos por longos 13 anos de ácidos ressentimentos. Uma vez mais, o auditório do BDMG Cultural foi povoado pelas poéticas afro-brasileiras, festejando a longevidade de um grupo determinante no fortalecimento do teatro negro em Belo Horizonte.
O enredo do espetáculo se ancora nas aflitivas memórias de um filho que, ao evocar a relação tortuosa para com o pai, revela um conflito familiar marcado por incompreensões, contradições e desacertos, cujos efeitos os apartaram por mais de uma década. À primeira vista, as aproximações entre “À Sombra da Goiabeira”, e a célebre peça “Fences”, do norte-americano August Wilson, (traduzida no Brasil como “Um Limite Entre Nós”) são significativas. Em ambas as produções, os embates emotivos, ético-morais e psicológicos entre os progenitores e a prole brotam não apenas das distâncias geracionais, mas da incapacidade de se construir um diálogo transformador entre as partes envolvidas. É como se as palavras fossem insuficientes para expressar o caudal de sentimentos, desejos e necessidades que as personagens possuem. Troy Maxson, a figura paterna de Wilson, em atitude inflexivelmente ríspida afirma: “I ain’t sorry for nothin’ I done” (Eu não me arrependo de nada do que fiz, em tradução livre). A dificuldade de transpor o orgulho e o egoísmo, numa atitude reconciliadora, se define como uma das principais problemáticas das duas peças.
A dramaturgia se apropria integralmente do conto homônimo, escrito por Marcos Carvalho, e o maximiza, cenicamente, por meio da atuação de Clécio Lima, que se desdobra entre pai e filho. Perscrutamos a dinâmica dos fatos unicamente pela ótica filial. É ele o narrador que reconstrói sua história nos arabescos sutis da palavra. O ato de contar suas vivências, numa entrega sensível, transforma-se em tentativa de reinterpretação do passado, cuja intenção última é, direta e/ou indiretamente, refazer as relações entre ele, sua subjetividade e o pesar que o assombra. No artigo Escrevivências da Afro Brasilidade – História e Memória, Conceição Evaristo (2008) analisa o modo pelo qual as reminiscências são tomadas como recursos textuais estratégicos na literatura de diversos autores afro-brasileiros. Destaco a seguinte assertiva: “A palavra poética, ao rememorar o passado e ao sonhar o futuro, pode inventar outro destino para o homem” (p.6).
O filho, como narrador/contador de histórias, performa o movimento dinâmico da memória, recriando o seu passado ao mesmo tempo em que, ao trazer o pai para o instante presente, tenta preencher os hiatos afetivos que perfuram sua individualidade. Aqui, a narração não visa reestabelecer o passado fidedignamente, mas intenciona atribuir a ele novo significado a fim de transformar a relação da personagem consigo própria.
A imagem paterna, relembrada, afigura-se relativamente insondável, pois ao contrário de um Troy Maxson, de August Wilson, não conhecemos os seus antecedentes, nem o percurso de sua vida. O recorte memorial do filho, que de modo algum é neutro, se desvela como a única via de acesso, embora turva, aos eventos descritos. Paira, ao longo de todo o espetáculo uma imprecisão acerca do que verdadeiramente causara o rompimento entre pai e filho, e aí talvez resida uma grande força dramatúrgica. Pois a narrativa não busca culpabilizar este ou aquele, mas apontar os efeitos destrutivos que o orgulho e o rancor arraigados produzem em qualquer relação. Não interessa distribuir os erros e as faltas, mas indagar o que poderia transformar a história de duas vidas feridas pela incompreensão mútua.
Nesta perspectiva, a própria encenação nos indica alternativas, principalmente, ao apostar no delicado e potente diálogo entre ator e público – característica presente em outros trabalhos do TNA. Toques, palavras e ternuras trocadas adensam a conexão entre o narrador e seus ouvintes participativos, cria um espaço de múltiplos vínculos, bem como uma experiência poética na qual ambas as partes de fato se veem, se respeitam e, logo, se escutam.
Tais observações são importantes na apreensão do espetáculo, pois instauram um vigoroso contraponto à ressequida relação do filho com seu pai. Há uma passagem na qual o filho recorda a primeira tentativa de diálogo, depois de anos afastado do pai. Este diálogo é recortado por vazios e reticências. Há uma grande impossibilidade de realizar a travessia, transpor a barreira, transpassar a dureza com a delicadeza de um gesto renovador e radical. Neste instante, considero as reflexões de Ponciá Vicêncio, personagem-título do romance de Conceição Evaristo. Ao relembrar as principais figuras masculinas de sua vida (pai, irmão, avô e marido), Ponciá conclui que, com o passar do tempo, aqueles homens negros passavam a falar menos, ou seja: “O encanto falante ia se evanescendo”.
“À Sombra da Goiabeira” segue a trilha investigativa do grupo, ao tomar diversos elementos narrativos, visuais e musicais dos saberes, religiosidades e culturas afro-brasileiros para compor a estrutura cênica do espetáculo. Na oralidade da performance a palavra é a totalidade do corpo em ação; carnalidade do verbo enunciado em dinâmica imaginativa e relacional. Na encenação das memórias filiais o palco é habitado por muitas presenças, fantasmas e corporeidades mito-poéticas (Oxalá, as lembranças familiares, a figura paterna, o gestual da capoeira) por meio das quais tempo e espaço se pluralizam em diversas dimensões.
A metáfora modelada pela imagem da “árvore” é central na conjuntura dramatúrgica do espetáculo. A lembrança reincidente a respeito do pai é a de um homem sisudo, recostado na goiabeira do quintal de casa, como se interrompesse a própria passagem do tempo e criasse para si um fragmento de eternidade, naquela posição. O filho ainda diz que a pele do pai possuía o mesmo tom do chão, sugerindo na descrição, uma simbiose entre o ser e o espaço. Eis aí uma primeira significação ecoada pela árvore: a perenidade estática, continuidade e estabilidade enraizada. Ademais, a árvore se afirma ao mesmo tempo como depositária e irradiadora da memória familiar – símbolo que aglutina as mais profundas recordações das personagens. Porém, há um significado ainda mais movente: a ideia de transformação, renovação, materializada pelos ciclos naturais e, sobretudo, pelos frutos e suas sementes – dispersões e extensões que propiciam o recomeço de outras experiências. Pai e filho lamentavelmente não conseguiram refundar as raízes, nem tampouco semear novos horizontes.
“À Sombra da Goiabeira” diz muito sobre a necessidade de construirmos diálogos e interlocuções afetivas. Além do mais, propõe uma urgente discussão sobre paradigmas insustentáveis de masculinidades negras. Por que pai e filho, relutantes, engessados, incapazes de expressas suas delicadezas e sensibilidades ficaram por tantos anos afastados? Os modelos rígidos de masculinidades negras, gerados pelas dinâmicas psicossociais do racismo/machismo, dificultam uma reflexão sobre a própria existência e, acima de tudo, inviabilizam a elaboração de novas formas de se relacionar com as próprias emoções e intimidades. Mas é necessário se insurgir contra tais ditames históricos. Por que tanto pai quanto filho não conseguiram exprimir suas fragilidades?
Por fim, “À Sombra da Goiabeira” se afirma, segundo o próprio grupo, como um espetáculo-ritual. E talvez realmente o seja, se considerarmos que, ao cabo da narrativa, o filho intentasse concretizar um grande ritual de passagem, do rancor ao perdão, para com o passado e, por extensão, para consigo mesmo. Ou ainda um ritual de expurgação/remissão dos espectros ou remorsos perseguidores de sua consciência. Mas certamente um rito festejante a celebrar 25 anos de Teatro Negro e Atitude, que, como árvore sementeira, continua a frutificar a diversidade das cenas negras em Belo Horizonte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EVARISTO, Conceição. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, 2008.