A cena dos muriquinhos: para pensarmos os caminhos dos teatros negros para as infâncias e juventudes
– por Guilherme Diniz –
Ensaio crítico a partir do espetáculo “Zebra sem Nome”, visto durante sua temporada de estreia no Sesc Belenzinho em julho de 2023, em São Paulo.
A recente montagem de um texto como Zebra sem nome, escrito por Maria Shu e dirigido por Marina Esteves, dá-nos mais uma singular oportunidade de meditar sobre algo que crescentemente se torna incontornável no palco brasileiro contemporâneo: a fecunda presença das teatralidades negras para as infâncias e juventudes[1]. Há alguns anos, a trajetória incandescente do espetáculo O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França, conferiu fôlego renovado a este debate que, do ponto de vista histórico, nunca fora desconsiderado por militantes e artistas negros. A releitura do clássico de Antoine de Sant-Exupéry entretece, delicadamente, princípios filosóficos africanos e afro-brasileiros em uma narrativa cuja reflexão principal reside na importância de construirmos convívios respeitosos, acolhedores e plurais. Além do mais, é dito que a dramaturgia de França alcançou cerca de 60 mil espectadores e creio que, também em virtude desta sua explosiva repercussão, não deixou de fortalecer, direta e/ou indiretamente, teatros negros infantojuvenis espraiados por diversos cantos do país. Afora os aspectos estritamente poéticos, não se pode também ignorar as estratégias de comunicação e de marketing empreendidas pela equipe d’O Pequeno Príncipe Preto.
De modo geral, os projetos artísticos de tais encenações se contrapõem aos aparatos culturais e educativos que, insidiosamente, fazem com que crianças e adolescentes negros e negras introjetem a imagem de um mundo branco. Conjunturalmente, o ideal de humanidade disseminado nos livros didáticos, nos desenhos animados e nos brinquedos infantis, para ficarmos com alguns exemplos, tem pele e olhos claros, reproduzindo, pois assim, uma série de miragens nas quais a negrura é ora ausência, ora coadjuvante de uma narrativa que, via de regra, a submete a padrões ridicularizantes e submissos.
Há enormes lacunas e distorções que estão a ser desafiadas pelos teatros negros infantojuvenis. Também por isso, exemplos como O Pequeno Príncipe Preto parecem indicar a existência de públicos gradualmente mais interessados por criações desta natureza e, mesmo nos contextos em que tais plateias parecem ser insuficientes, essas montagens se mostram dispostas a fomentá-las, percorrendo os circuitos artísticos, as esferas escolares e os mais variados projetos sociais. Todavia, apenas a sede pela decantada representatividade para crianças e jovens negros nem sempre se converte em pesquisa e experimentação poética. Diante desse vívido campo criativo, me interessa refletir sobre os modos inventivos que estão sendo articulados por tais teatralidades, seus procedimentos cênicos e reflexões estéticas. Quais tecnologias e saberes as infâncias afro-brasileiras carregam consigo? Como seus imaginários e vivências, entre a doçura e a violência, entre as angústias e as alegrias, podem reconfigurar formas, perspectivas e modos de criação teatral? De que maneira os públicos infanto-juvenis (sobretudo os negros) estão sendo pensados nestes processos criativos?
Antes de analisar o espetáculo Zebra sem nome, tarefa esta que será realizada no próximo texto, parece-me crucial alinhavar um brevíssimo panorama acerca das teatralidades e dramaturgias negras endereçadas às infâncias e juventudes, posto que cada vez mais estas obras vêm construindo um campo criativo, propondo debates, temas e poéticas em um processo que, potencialmente, expande (e tensiona) toda a cultura teatral brasileira.
Nossos passos (e passinhos) vem de longe…
Em termos historiográficos, reconstituir o desenvolvimento dos teatros negros infantojuvenis, bem como rastrear as relações entre infâncias negras e as artes cênicas no Brasil é uma tarefa, com efeito, colossal. Esta é uma história ainda por se fazer. Estudos mais conhecidos sobre os teatros infantis, como os de Lúcia Benedetti, de Ingrid Koudela, de Maria Clara Machado, de Cláudia Arruda Campos e de Dib Carneiro Neto, salvo raras exceções, não apresentam reflexões nas quais a esfera étnico-racial se projeta como operador analítico para examinar públicos e/ou poéticas. O livro No reino da desigualdade, de Maria Lucia de Souza Barros Pupo, é, em certa medida, uma exceção, em virtude do teor crítico dirigido às dramaturgias para crianças nos anos 70, discutindo questões sociopolíticas existentes (ou mistificadas) nestes textos. Não se pode também olvidar a presença de elementos culturais afro-brasileiros articulados em certas encenações de Ilo Krugli e do grupo Ventoforte.
Em muitos casos, contudo, a noção de infância parece ser tomada como um universal que, como tal, não dá conta de uma pluralidade ao mesmo tempo complexa e desigual. Ademais, basta sobrevoar uma obra panorâmica como Maturando: aspectos do desenvolvimento do teatro infantil no Brasil, de Dudu Sandroni, para verificar como, historicamente, estes teatros também abrigaram, em suas dramaturgias, concepções coloniais, conservadoras, limitadas e limitantes sobre a sociedade, reproduzindo visões estreitas sobre a imensa variedade da vida humana. Portanto, os teatros negros para as infâncias e juventudes têm diante de si um quadro histórico profundamente espinhoso, social e artisticamente.
Por outro lado, na rota dos movimentos negros do século XX encontramos algumas pistas, ainda que escassas. No conjunto destas ações, deparamo-nos tanto com teatros negros para crianças e jovens, (espetáculos realizados por adultos, entre amadores e profissionais), quanto com teatros negros constituídos por elencos infantojuvenis. Antes de mais nada, é indispensável termos em mente que a vida, a dignidade e o bem-estar das infâncias e juventudes negras foi sempre uma questão relevante para diversas organizações antirracistas ao longo dos anos. Uma das preocupações centrais era (e continua a ser) precisamente a escolarização deste contingente, como nos mostra a seminal obra, História da educação do negro e outras histórias. Não raro, as próprias entidades negras implementaram seus núcleos de alfabetização, oferecendo igualmente atividades formativas de caráter artístico-cultural, uma vez que o estado brasileiro, discriminador, não exercia devidamente este papel. A Frente Negra Brasileira (1931-1937) chegou, por exemplo, a ter a sua própria escola.
No século passado, um dos esforços mais audazes foi a formação, em 1950, do Conselho Nacional das Mulheres Negras, um organismo surgido no interior do Teatro Experimental do Negro (1944-1968). Liderada por Maria de Lurdes Vale Nascimento, assistente social, pensadora e uma das fundadoras do TEN, a nova entidade se ocupava, primordialmente, dos “assuntos relativos à mulher e à infância”[2]. Entre os seus propósitos, encontravam-se a instauração de dois projetos voltados para as artes cênicas:
“[…] Ballet Infantil – de preferência formado de crianças dos morros cariocas, já havendo inscritas várias meninas e meninos do Morro do Salgueiro.
[…] Teatro Infantil – com a colaboração do autor, intérprete e diretor teatral Ody Fraga”[3]
No jornal Correio da Manhã do dia 26 de maio de 1950, encontramos um anúncio do Conselho Nacional das Mulheres Negras, no qual encontramos outros detalhes a respeito das novas propostas:
“1º – curso de ballet infantil – para crianças de 8 a 12 anos de idade – de ambos os sexos;
2º – teatro negro infantil – para crianças de 8 a 15 anos de idade – de ambos os sexos:
[…] O Conselho continua aceitando colaboradores voluntários de ambos os sexos, pretos e brancos, para o trabalho de elevação dos níveis educacional, cultural e econômico da mulher e da criança negra”
Como vimos, para a realização dos cursos e das atividades artísticas do teatro negro infantil, contou-se com a parceira do artista cênico Ody Fraga (1927-1987) que, em Santa Catarina, seu estado natal, havia já se dedicado, com afinco, ao teatro para crianças, tendo encenado uma adaptação, de sua autoria, do célebre Pinóquio no final da década de 40. No suplemento Letras e Artes do jornal A Manhã do dia 12 de março de 1950, somos informados de que: “O Teatro Experimental do Negro solicitou-lhe ainda que escrevesse a lenda do “Negrinho do Pastoreio” para ser levada por esse grupo”. E na nona edição do jornal Quilombo, mantido pelo TEN entre 1948 e 1950, temos uma fotografia na qual Maria de Lurdes Vale Nascimento lê, ao lado de dois parceiros, a peça teatral Pinóquio, do supracitado autor catarinense. Estes valiosos dados nos indicam que, além de terem concentrado esforços para a realização de cursos artísticos infantis, o TEN e seu Conselho Nacional das Mulheres Negras buscaram uma dramaturgia particularmente pensada para estas faixas etárias, considerando suas singularidades na linguagem e na composição textual, algo amiúde ressaltado por pesquisadores, como Marco Camarotti[4]. O próprio Ody Fraga, em suas rememorações, afirmou que texto teatral O negrinho do pastoreiro, seria publicado no Quilombo, após a sua suposta encenação. Ademais, ele entregaria. em breve, outras duas obras dramáticas concebidas para o Teatro Experimental do Negro.[5] O prosseguimento destas atividades foi comprometido pelas crônicas instabilidades do grupo, tais como a precariedade financeira e a dificuldade em manter uma sede fixa.
Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva nos lembram que, sobretudo a partir da década de 50 até meados dos anos 80, a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, de Porto Alegre, organizou cursos, encenações, entre outros eventos endereçados às crianças e aos jovens negros, almejando contribuir tanto para a sua formação estética, quanto para o fortalecimento sadio de sua autoestima. Esta importante entidade negra, fundada em 1872, não fora um voo solitário no sul do país (a agremiação chegou a ter uma trupe autônoma, o Teatro Novo Floresta Aurora). O Grêmio José do Patrocínio, o Grupo Razão Negra, o Grupo de Teatro Marciliense e o Grupo Tição realizaram, segundo nos sugerem a pesquisa de Lúcia Regina Brito Pereira[6], atividades cênicas e educativas com e para os públicos infantojuvenis,
No princípio dos anos 70, o casal Ubirajara e Alzira Fidalgo fundaram, no Rio de Janeiro, o TEPRON – Teatro Profissional do Negro – grupo este que abraça o legado do TEN, mas o expande, inserindo, de modo mais incisivo, artistas negros e negras (atores, figurinistas, manequins, etc) nos circuitos profissionais e sindicais. No repertório do grupo, sobressalta a obra infantil Os Gazeteiros, de Ubirajara Fidalgo, encenada pelo TEPRON em 1972 e 1973. Ainda que não condense nenhuma reflexão étnico-racial mais aguda, em seus temas e debates, é oportuno ressaltar a inclusão de uma dramaturgia para crianças no repertório deste grupo negro. Sabrina Fidalgo, filha do autor, e Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, participaram de algumas montagens da peça.
Certas companhias teatrais mais longevas, como o Bando de Teatro Olodum (BA), de 1990; o Teatro Negro e Atitude (MG), de 1994; e o Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA) (BA), de 1998, não se abstiveram de mergulhar em tais teatralidades para (e/ou com) crianças e adolescentes. Oficialmente, na trajetória do grupo baiano, o primeiro espetáculo, desta natureza, foi o Áfricas, estreado em 2007. Embora, de acordo com Marcos Uzel, lá nos idos de 1991, o Bando deu vida a uma vertente juvenil do seu elenco para a encenação de O Monstro e o Mar.[7] Infelizmente esta iniciativa não perdurou. No caso dos artistas mineiros, os espetáculos A viagem de um barquinho, de 2003, e A lenda de Ananse: um herói com rosto africano, de 2007, representam incursões teatrais infantojuvenis.[8] Joel Rufino dos Santos, na sua magistral A História do Negro no Teatro Brasileiro, conta-nos que em 2012, o NATA, encenou Popoesia Papa Criança. Ainda no contexto dos grupos negros formados na década de 90, Moema Parente Augel em seu artigo, Teatro afrobrasileiro contemporâneo, nos dá a notícia de que:
“De um seminário de formação do Bando de Teatro Olodum, surgiu o Grupo Nossa Cara, que encenou com crianças e jovens a peça O rei do trono de barro, uma bem sucedida tentativa de transpor o clássico Hamlet shakesperiano a crua realidade cotidiana dos meninos de rua numa cidade brasileira. O grupo excursionou pela Alemanha em 1994, tendo se apresentado em doze cidades, recebendo aplausos da crítica.”
Em 2012, o programa da SescTV, Teatro e Circunstância, dedicou uma de suas edições a entrevistar grupos que encarnavam, em suas pesquisas, Novos Temas e Formas no Teatro para Crianças.[9] Entre as iniciativas abordadas, estava o Pé de Moleque (SP), surgido em 2007. O grupo, desde o seu primeiro trabalho, encontrou na oralidade, bem como nas simbologias e mitologias dos orixás um rico manancial de histórias, imagéticas e gestualidades para seus projetos. O destacado espetáculo Logun-Edé: uma pequena Yorubópera, estreado em 2011, conjuga musicalidades dos candomblés com elementos cênicos operísticos, sobrepondo sistemas culturais distintos em uma instigante narrativa para jovens. Não será inútil relembrar que, contemporaneamente aos esforços do grupo Pé de Moleque, o Coletivo Quizumba (SP), constituído em 2008, também se lançava na árdua tarefa de conceber encenações para crianças e jovens, alicerçando seus projetos artísticos nas historiografias negras e nos repertórios estéticos africanos e afro-brasileiros. Até 2015 o coletivo manteve-se em atividade constante, alternando peças teatrais, contações de histórias e ações educativas.
Foto: Pablo Bernardo
Como se vê sumariamente, o panorama do teatro para crianças, especialmente desde o início dos anos 2000, já assinalava efervescentes mudanças operadas também por criadores negros e negras. O próprio título da entrevista mencionada (“novos temas e formas…”) já indicava, sintomaticamente, um processo de expansão e aprofundamento poético vivenciado pelos teatros para crianças e jovens naquele momento histórico, ou seja, há pouco mais de uma década. A bem da verdade, críticos como Clóvis Garcia e Dib Carneiro Neto sustentam, em uníssono, que historicamente, isto é, de meados do século passado até nossa contemporaneidade, tais teatros, em geral, adquiriram mais complexidade e apuro, passando a ser vistos como realidades artísticas cada vez mais distantes dos moralismos ou didatismos tacanhos. Até mesmo um crítico cuja visão é ligeiramente menos, digamos, prazenteira, como Carlos Augusto Nazareth, vê um fortalecimento geral do campo em questão.
Mas não estou me referindo unicamente a um possível amadurecimento técnico ou a um maior rigor na elaboração dramatúrgica e espetacular. Ainda mais radical que isso, interessa-me visualizar os modos por meio dos quais estes teatros negros para plateias infantojuvenis destroçam, a partir de princípios artístico-culturais africanos e afro-brasileiros, noções universalistas de infância e juventude, assumindo, de modo contundente, uma posição estético-política interessada em provocar outros imaginários para os seus públicos. Quais humanidades, universos socioculturais, referências literárias povoam majoritariamente os teatros para crianças e adolescentes? Quais crianças e adolescentes? A questão histórica, portanto, não é apenas um suposto acréscimo de primor técnico-criativo nestas produções. Estas teatralidades e dramaturgias negras crianças e jovens perfazem uma reorientação epistemológica e poética a fim de, radicalmente, pensar, por exemplo, as infâncias, os ciclos da vida e suas múltiplas temporalidades, os laços familiares, as narrativas, os jogos e as brincadeiras desde perspectivas negras, em sua inesgotável diversidade.
Em 2021, a artista Lucélia Sergio, cofundadora do grupo Os Crespos (SP), teceu, em dois números da revista Legítima Defesa, substanciosas reflexões acerca dos teatros negros voltados para os mundos infantojuvenis[10]. A primeira parte do artigo aponta, contundentemente, para a incidência do racismo, em suas variadas expressões, sobre as infâncias negras, explicitando como as violências raciais, desde a tenra idade, geram profundas feridas psíquicas cujos efeitos impactam negativamente a construção de uma autoestima segura e saudável. Neste âmbito, o ambiente escolar, sem dúvidas, é um dos espaços mais reprodutores das desigualdades e discriminações, sutis e ostensivas. Diante desse panorama brutal, Lucélia reflete sobre as rotas de fuga e as rotas de vida que tais poéticas estão a materializar:
“O Teatro Negro para infância e juventude tem se preocupado em ampliar o repertório cultural e tem buscado não reduzir a juventude a uma homogeneidade, abordando especificidades culturais e desigualdades sociais, além de lutar contra o racismo. Explorando possibilidades articulatórias entre a realidade imaginada e a realidade vivenciada, na busca por fortalecer um pensamento estético/político afro-referenciado, no qual se possa acariciar a sensibilidade para forjar nossa humanidade no mundo.”
Arguta observadora deste campo, a autora analisa, cuidadosamente, seis montagens, quais sejam, a já citada Áfricas, do Bando de Teatro Olodum; Sarauzinho da Calu (BA) de Cassia Valle com o grupo Jovens da Moinho, de 2019; Eleguá, Menino e Malandro (SP), do Clã do Jabuti, de 2016; Karingana ua Karingana – Histórias de Áfricas (PR), do Grupo Baquetá, de 2015; Xabisa, de Michelle Sá e Alexandre de Sena (MG), de 2018; Boquinha e assim surgiu o mundo, dirigido por Lázaro Ramos e Suzana Nascimento, de 2016; por fim, Quando eu morrer vou contar tudo a Deus, d’O Bonde (SP), de 2019.
Sem pretender qualquer levantamento sistemático, inviável nestas breves notas, poderíamos mencionar as empreitadas da Cia. Bando (BH), com os espetáculos Abena, de 2017 e Matias e a Estrada Infinita do Tempo, estreado neste ano; o grupo Morro Encena (BH) com o seu musical Xirê – A saga do menino rei, de 2023; Os Crespos que, em 2015, lançaram Os Coloridos e, proveniente deste, o solo A arara de muitas cores, com Lucélia Sergio; a persistência de Junior Dantas (RJ/RN), ator que estrelou em O Pequeno Príncipe Preto, de 2018, O Pequeno Herói Preto, de 2021; e Erê, de 2023; a Inepta Cia. com o Aniversário de Bu, de 2021; Caroline Falero (SP), com a montagem O Sonho com Oxum (2019), no âmbito do projeto Abayomi Falero; a Cia. Dois Ventos (SP) transcriando contos infantis, como A Preta de Neve (2018) e a Pretinha Adormecida (2022); a Confraria do Impossível (RJ) com A saga de Dandara e Bizum a caminho de Wakanda (2019) e as criações de Tatiana Henrique (RJ) particularmente na contação de histórias a partir das mitologias afro-brasileiras e africanas. A segundaPRETA (BH), compreendendo a pertinência desta discussão, organizou, já no seu primeiro ano de existência, em 2017, a segundaPRETINHA, especialmente projetada para as infâncias. Nesta mesma senda, o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras possui uma categoria, Muriquinho, em que espetáculos pretos para crianças e jovens são reconhecidos e contemplados. Até mesmo Denilson Tourinho, idealizador do Prêmio, tem, em seu currículo, a concepção de uma montagem infantil, qual seja, Nossas histórias, um pote de ouro, de 2016. Vamos relembrar que neste ano o Sesc Bom Retiro preparou o Omodé: Festival de Arte e Cultura Negra para a Molecada. Por fim, a Escola Pele Negra dedicou, neste semestre, seus estudos aos Teatros para Erês e Ibejis[11], propondo, inclusive, um mapeamento para visualizar, mais amplamente, estas criações.
O robustecimento desta negra constelação de teatros direcionados às infâncias e juventudes não é, pois, um fato isolado. Tal fenômeno está intimamente atrelado à irradiação, cada vez mais decisiva, dos próprios teatros negros de uma maneira geral. Primeiramente, a esmagadora maioria das peças negras infantojuvenis são concebidas por grupos que se dedicam regularmente ao teatro negro para adultos. A existência de iniciativas inteiramente dedicadas às crianças e jovens, como a Cia. Bando (BH) ou a Cia. Colhendo Contos (SP) é ainda minoritária, mas já indica o próprio crescimento deste campo. O incontornável movimento estético, cultural e político engendrado por criadores negros e negras nas artes da cena para o público adulto, consequentemente, espraiar-se-ia para os públicos das novíssimas gerações. Além disso, como salientei no início deste ensaio, as demandas por qualidade de vida, respeito e cuidado para crianças e jovens negros e negras são reinvindicações históricas no horizonte dos movimentos negros dos séculos XX (Frente Negra Brasileira, Teatro Experimental do Negro e Movimento Negro Unificado etc) e XXI (Coalização Negra por Direitos). Quanto a este ponto, vejo nestas cenas negras, ao mesmo tempo, continuidades e ampliações no que se refere a considerar as infâncias e as juventudes negras como humanidades inegociáveis num projeto sociopolítico e cultural antirracista.
Ainda que não sejam necessariamente determinantes, eu não descartaria dois outros fatores para se compreender melhor este contexto. Em primeiro lugar, concordo com Lucélia Sergio quando esta afirma que a promulgação da lei nº 10.639, em 2003, ajudou a criar um contexto (minimamente) mais propício para as teatralidades negras discutidas aqui. Tal lei, fruto de lutas, debates e conflitos travados especialmente pelo Movimento Negro, ao longo de décadas, tornou obrigatório o ensino de histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, atribuindo esta responsabilidade aos diversos sistemas e níveis de formação. Esta legislação não apenas reconhece o papel histórico do estado brasileiro (e da educação dominante) na marginalização sistemática dos saberes negros, mas objetivam contrariar esse processo, oferecendo, às crianças e adolescentes negros (e não-negros) janelas outras para pensar, sentir e intervir no mundo, considerando toda a bagagem epistemológica afro-brasileira e africana que constitui este país. É verdade que, passados vinte anos desde sua promulgação, a lei nº 10.639 ainda não é uma realidade plena nas escolas brasileiras. Contudo, ela instalou e estimulou um debate fundamental sobre pedagogias antirracistas e sobre a formação, no sentido mais amplo, de nossas jovens gerações negras em uma sociedade drasticamente racista. Estas questões permeiam os teatros negros para infâncias e juventudes, bem como as literaturas negras para estas faixas etárias.[12]
O segundo aspecto a se considerar é justamente a ampliação dos estudos sobre as infâncias negras no Brasil. A recentíssima publicação da obra Infâncias negras: vivências e lutas por uma vida justa, organizada por Nilma Lino Gomes e Marlene Araújo, atesta esse movimento investigativo. As autoras, percucientemente, analisam os modos pelos quais as noções e diferenças raciais, os estereótipos racistas e os comportamentos discriminatórios são absorvidos, praticados e experimentados pelas crianças em suas relações entre si. Tais estudos derrocam, uma vez mais, a ideia de que as infâncias são zonas neutras. Além disso, as pesquisas estão a detalhar não somente o impacto das agressões racistas na vida de crianças negras, mas visam também examinar as suas formas criativas e audaciosas de reagir, interpretar e lidar com as armadilhas opressivas. Estas infâncias também não são homogêneas: elas são urbanas, rurais, quilombolas, inseridas (ou não) nas tradições afro-religiosas… Ainda que tais investigações se voltem mais diretamente para a esfera educacional, elas não deixam de problematizar, agudizar e pluralizar os olhares sobre as infâncias negras, realçando suas especificidades, complexidades e estratégias para viver em uma realidade ameaçadora. Este conjunto de reflexões, cada vez mais expandido, me parece afetar e alimentar, direta e indiretamente, os teatros negros para crianças, bem como (embora em menor escala) certos processos curatoriais e programações artísticas.
Foto de Ethel Braga
Estratégias brincantes: redimensionando vidas e sonhos na cena
“Deixem que as crianças brinquem e façam de
trampolim a cabeça do poeta”
[Solano Trindade]
Para finalizar este texto, é perceptível que estas cenas pretas para infâncias e juventudes, ao matizarem suas poéticas com as simbologias, narrativas, sonoridades, personalidades e princípios africanos e afrodiaspóricos, contribuem direta e indiretamente para um gradual letramento racial de pais/responsáveis, crianças e adolescentes. Isto não significa dizer que os teatros negros infantojuvenis são moralistas, dogmáticos ou proselitistas, mas, sobretudo em nosso contexto brasileiro, eles também oferecem insumos artístico-culturais para uma reeducação das relações étnico-raciais desde a infância. Ao dizer reeducação, estou fortemente inspirado pelo pensamento de Nilma Lino Gomes ao afirmar que conjunturalmente os movimentos negros no Brasil desempenharam também um papel educador, produzindo saberes e perspectivas na direção de uma radical emancipação dos corpos, dos afetos, dos conhecimentos e das formas de relação.
Estes teatros encaram o voo da imaginação como um ato também político capaz de reconfigurar as imagens, sentidos e sabores do mundo a partir da fantasia em uma perspectiva artístico-cultural negra. Nesse sentido, especialmente as crianças são vistas como sujeitos de direitos e como seres também políticos no modo como vivem o mundo, produzem significados, aprendem (e problematizam) violências raciais. A cena é, pois, um convite estimulante e desafiador para que os pequenos (e os maiores) redimensionem e diversifiquem seus imaginários.
No Brasil contemporâneo, as infâncias são, talvez mais do que nunca, alvo de agudíssimas disputas político-ideológicas. Os paradoxos e as contradições se multiplicam. Entre os setores mais retrógrados, assistimos a violentos discursos que defendem a necessidade de se preservar a inocência das crianças (quais crianças?) contra as ideologias de gênero, ao mesmo tempo em que se propõe uma “escola sem partido” e a redução da maioridade penal (algumas crianças e jovens não são puros e inocentes). Nesta mesma direção, o braço armado do estado brasileiro não para de ceifar as infâncias e as juventudes negras, reatualizando o que Machado de Assis dissera no século XIX, isto é, “nem todas as crianças vingam”. Portanto, as questões das crianças e dos jovens, em sua diversidade, são questões de toda a sociedade.
As complexidades estão postas.
É cedo para determinar as coisas, mas vejo que os teatros negros para muriquinhos, erês e ibejis estão a se projetar como fontes de beleza e de encantamento que, ao enfrentar estes tempos difíceis, redesenham nossos futuros a partir do sorriso de uma criança negra.
No próximo texto, analisarei o espetáculo Zebra sem Nome.
[1] No final de 2021, ao ser convidado para integrar o projeto Portal de Dramaturgia, idealizado por Vinícius Souza, realizei, ao lado de Daniele Avila Small, uma curadoria para selecionar os dramaturgos e as dramaturgas que comporiam o painel artístico do Sudeste. Ao traçar o perfil biográfico e poético de Cidinha da Silva, apontei, concisamente, para o crescimento acentuado das teatralidades negras para as infâncias e juventudes, pois a própria autora escreveu uma obra neste segmento, qual seja, Os Coloridos.
[2] Jornal Quilombo, número 9, maio de 1950, p. 4.
[3] Idem.
[4] Estas reflexões estão concentradas principalmente no seu livro A linguagem no teatro infantil (2002).
[5] Informação colhida na dissertação de mestrado O itinerário de Ody Fraga rumo ao cinema, de José Rafael Gallotti Mamigonian (UFSCar, 2022).
[6] Informação colhida em sua dissertação de mestrado, intitulada Cultura e Afrodescendência: organizações negras e suas estratégias educacionais em Porto Alegre (1872-2002).
[7] Informações extraídas do livro O Teatro do Bando: negro, baiano e popular (2003)
[8] Informações extraídas do livro O Teatro Negro e Atitude no tempo: o tempo no Teatro Negro e Atitude (2021), de Evandro Nunes.
[9] O programa pode ser acessado na íntegra por meio do link https://sesctv.org.br/programas-e-series/teatroecircunstancia/?mediaId=dd2af1882a75bbe84d5ae629ad914e51
[10] O longo artigo de Lucélia Sergio está publicado nos números 3 e 4 da Legítima Defesa – Uma revista de Teatro Negro (2021) e se intitula Para encara um mundo assustador: sobre um Teatro Negro para infância e juventude.
[11] https://www.youtube.com/@EscolaPeleNegra
[12] Cuti, no livro Literatura negro-brasileira, alega que “Com o advento de Lei nº 10.639/2003, muito se tem produzido de livros paradidáticos contendo a temática relativa à realidade da população negro-brasileira e, em maior monta, de conteúdo africano. O volume de obras cresceu significativamente nos últimos anos. Certamente, desse conjunto, muitas obras servirão para instigar os alunos a novos voos no campo da leitura e, quiçá, à revelação de novos talentos de uma vertente infantojuvenil negro-brasileira. Sem nos iludir, é preciso que o senso crítico acenda suas luzes em face dessa produção, pois o racismo não dá trégua e não poupa as crianças.”