* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
– por Guilherme Diniz –
Espetáculo assistido no dia 22 de julho de 2023 no Teatro Espanca!, durante a sua temporada de estreia.
Prelúdio a Ismael Ivo é, por assim dizer, um laboratório de composições no qual as imagens, alinhavadas pelos corpos negros, sustentam uma atmosfera não apenas em constante suspensão, algo densa, mas igualmente matizada por uma camada de mistérios e reticências que, por sua vez, fazem os sentidos flutuarem, sem determinar, rigidamente, o significado das coisas. Não há imediatismos. As formas e os símbolos se instauram pouco a pouco, imprimindo, com paciência, seus traços, contornos e materialidades. A performance, concebida por Anderson Feliciano e evandro nunes, festeja o legado de Ismael Ivo (1955-2021), mergulhando, especialmente, em uma das dimensões mais complexas da galáxia artística deste criador: a explosiva força de suas imagens cênicas, compostas por visualidades pujantes e intrincadas, que nos envolvem, sobretudo, por estabelecerem (e demandarem) um tempo outro, condensado.
No desenho deste trabalho, não se busca uma ilustração fidedigna, uma mimesis realista ou qualquer escavação biográfica do bailarino e coreógrafo mundialmente renomado. As suas criações são tomadas como princípios poéticos, forças motrizes que inspiram e fundamentam movimentos, cromatismos, paisagens e adereços. Há em cena uma interlocução criativa com o universo estético de Ivo, de modo que o celebrado artista se manifesta principalmente como emanação simbólica, exploração física de ideias para além de qualquer virtuosismo técnico encerrado em si. Esta escolha se revela instigante, pois a noção de representação, neste caso, estaria infinitamente aquém das ambiguidades, polissemias e variações de um incapturável criador que, como Ivo, transitou por searas artístico-culturais muito distintas; das tradições afro-diaspóricas às danças clássicas e modernas euro-estadunidenses, da dança-teatro de Pina Bausch ao butô de Ushio Amagatsu, para ficar com alguns exemplos. Por fim, sobressalta, aos meus olhos, a arquitetura imagética realizada pela performance.
Os diálogos visuais com Ismael Ivo já despontam ao vermos Camilo Gan. Trajado com blazer e calças estonteantemente brancos, o performer, já de início, evoca a figura de Ivo, que em diferentes obras acentuou os contrastes cromáticos entre a sua pele retinta e as vestes alvas, como em I had to much coffee (2002), em Apollo and Hyacinth (2006) e em Mapplethorpe (2005)[1]. Penso que certos princípios estéticos desta última coreografia citada imantam, de forma singular, Prelúdio a Ismael Ivo. Naquela criação, Ivo perfaz sofisticadas interlocuções entre dança, fotografia e instalação ao travar um diálogo crítico e inventivo com o artista Robert Mapplethorpe (1946-1989), autor, entre outras coisas, de numerosas fotos nas quais se vê homens negros nus.
Foto de Pablo Bernardo
Foto de Guto Muniz
Se para certos estudiosos, como William Davies, a obra de Mapplethorpe é, acima de tudo, importante por privilegiar o desenho estatuário dos corpos sem, aparentemente, se preocupar com conteúdos sociopolíticos, para outros, como o crítico e historiador Kobena Mercer, a sua obsessão pela nudez negra e masculina entremostra percepções coloniais e fetichistas. Em Mapplethorpe, Ivo assume o desafio de chafurdar nas fantasias contraditórias (para dizer o mínimo) desta problemática personagem do cenário artístico estadunidense. Porém, o coreógrafo ultrapassa o interesse estetizante do fotógrafo, concebendo uma cena na qual a corporeidade negra não está posta como objeto do olhar branco e petrificador. Antes pelo contrário, Ivo engendra visualidades que atuam como fugas e como contranarrativas a fim de pensar no verso e no reverso das imagens. No fundo, o dançarino desafia nosso olhar, propondo um dinâmico deslizamento dos signos cênicos. Deslizamento este operado principalmente pela sua caleidoscópica fisicalidade. Há algo disso em Prelúdios, ou seja, um delineamento imagético que, a partir do corpo negro, inscreve e contesta, ao mesmo tempo, imaginários; reconfigura os sentidos físicos, simbólicos, históricos e culturais da negrura; suscita um jogo sensorial (não somente para a visão) em que memórias, pensamentos, ideias e livres associações se sobrepõem fluidamente.
É Camilo Gan quem inicia os trabalhos, como se estivesse consagrando o espaço a fim de preparar-nos para o rito que se desenrolará. Da rua o público assiste à sua dança emoldurada pelo portão, já aberto, do teatro espanca!. Banhados pela sua presença, adentramos, na sequência, o prédio.
Desta vez, é a imagem de evandro nunes que, magneticamente, se impõe. Eivada de mistério, a sua presença surge insondável. O rosto envolto por um fino tecido branco que se prolonga como uma comprida calda da nuca até o chão, o torso desnudo e o uso de estilizadas calças pretas de cintura alta moldam uma figura a um só tempo atraente e indecifrável. evandro porta um aquário cuja água é constantemente tocada. Ele submerge uma de suas mãos, experimentando aquela sensação aquática. Após um certo tempo, ele se levanta e se desloca pelo espaço. Há calmaria e densidade em suas ações, como em um texto copiosamente virgulado, repleto de pausas e respiros. Um singelo banquinho preto o acomoda. Nesta composição também vejo um diálogo com Mapplethorpe, de Ismael Ivo.
Foto de Pablo Bernardo
Após isso, evandro, ajudado por Camilo Gan, retira o véu que cobria toda a sua cabeça, passando a trajar um vistoso chapéu preto que, uma vez mais, oculta a sua face. Neste momento ele sobe no banco e experimenta ali sutis variações posturais, modelando suavemente gestos e posições. Uma música instrumental embala as suas transições físicas. Antes de prosseguir, é necessário dizer que, embora bela e jamais ignorável, a presença de Gan poderia ser mais bem aproveitada. A sua relação com evandro parece-me pontual demais, minúscula demais, tendo em vista a expressividade daqueles dois corpos sobre o palco.
Nestes dois trechos descritos, a dimensão imagética é um dos aspectos mais vigorosos. Em primeiro lugar, evandro permite que as imagens plasmadas pelo seu corpo irradiem pelo espaço no tempo delas, sem as apressar. Esta temporalidade adensada e dilatada convida a um olhar menos distraído, menos ansioso. É preciso lidar com uma certa saturação das formas. Lança-se, portanto, a possibilidade de construir uma viva relação com esta figura, num ritmo outro. O quadro imagético se torna ainda mais estimulante pelo fato de não vermos quase nada da expressão facial do ator. Este jogo entre revelação e ocultamento, claridade e escuridão sustenta uma fina tensão, pois os significados não estão dispostos (nem tampouco impostos), mas arranjados à meia-luz, pintados com meias-tintas, convocando, neste entrelugar, uma atividade imaginária mais aberta e solta por parte do público. Não há lugar, nestes momentos, para uma visibilidade absolutamente pronta ou definitiva. Paira um negro segredo cuja resolução final não é estimulada. A indeterminação é o foco.
Em segundo lugar, há nestas duas passagens cênicas uma experimentação dos efeitos tonais da iluminação e das cores sobre a pele negra do ator. Muito sutilmente captamos o caminhar da luz pelo espaço e por sobre o corpo de evandro, frisando desenhos, linhas e traçados, em diferentes matizes. A musculatura, a forma corporal e as posturas vão sendo esculpidas pelos recortes luminosos de Tainá Rosa. Estamos, pois, diante da inegociável presença material, energética e visual de um corpo que se coloca muito intensamente no espaço, ressignificando-o a partir de sua pretitude.
Diante dessas articulações criativas, a noção de corpo-tela, de Leda Maria Martins, se projeta como uma significativa chave de leitura para refletirmos acerca da concepção performática de Prelúdio a Ismael Ivo:
“O corpo-tela é um corpo-imagem.
[…]
Complexo, poroso, investido de múltiplos sentidos e disposições, esse corpo, física, expressiva e perceptivelmente, é lugar e ambiente de inscrição de grafias do conhecimento, dispositivo e condutor, portal e teia de memória e de idiomas performáticos, emoldurados por uma engenhosa sintaxe de composições.”
Depois de retirar o chapéu, evandro finaliza a performance no passeio, enquanto nós, do lado de dentro, o avistamos por uma moldura formada pelo portão aberto do teatro espanca!, em uma construção, digamos, pictórica, cujo fundo é a agitação urbana da rua Aarão Reis. Ali ele baila, se delicia com o próprio corpo em ação, aproveita gostosamente as movimentações dançantes que livremente se desenvolvem. A maneira com que ele faz as suas escápulas rotarem é quase hipnótica. É a materialidade do corpo, sua ossatura e carnalidade que se orquestram como discurso cênico. Há uma tênue nota de sensualidade nesta sua movimentação. E não é preciso temermos moralmente a dimensão sensual. Objetificação e sensualidade não são sinônimos. É belo ver um corpo que se apraz com suas próprias formas sem que isso desemboque em egocentrismo. É potente um corpo negro desejante, pulsante, em um mundo que tenta insistentemente nos aniquilar.
Mas algo me chama ainda mais atenção. Em um determinado momento, evandro nos encara longamente, esboçando um indiscernível sorriso. A sua expressão, num misto de malícia e brincadeira, arma um verdadeiro jogo de sedução. Mas não uma sedução em sua acepção mais ordinária, quiçá rasteira. Refiro-me àquilo que Muniz Sodré destaca como “verdade seduzida” na constituição mesma de nossas culturas e tradições negro-brasileiras. Em resumo, o pensador baiano afirma que as culturas negras são culturas das aparências, não indicando, é evidente, superficialidade ou mentira, mas jogos de duplicidade, nos quais os sentidos fixos das coisas são despistados. Culturas que também resistem, há muito, nas brechas, nas fendas, nos interstícios. A ideia universalista e eurocentrada de Verdade (com letra maiúscula mesmo) é ludibriada por negras tradições que, nas encruzilhadas, rasuram binarismos, justapõem contradições e fazem os sentidos deslizarem. Entre a malícia, a ginga e a brincadeira, o olhar de evandro nos seduz, pois não determina univocamente um significado, sustenta uma tensão aberta, não conclusiva. Diz-nos Sodré:
“Ser enfeitiçado, seduzido ou encantado é ser vertiginosamente e ritualisticamente absorvido por um Destino; é deixar de ser sujeito de uma consciência, de uma razão, de uma verdade fadada à transparência”.
E novamente as confabulações com Ismael Ivo se reatualizam, assinalando visualmente o primor dos figurinos de Lira Ribas:
Foto de Pablo Bernardo
Foto: Imago Pop-Eye
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Anderson Feliciano e evandro nunes são artisticamente parceiros de longa data. Prelúdio a Ismael Ivo é mais um capítulo dessa história. Também no espetáculo In Sã: o universo do rosário em nós (2012), a dupla extrai, das fantasias, dos sonhos e das meditações de um criador negro (naquele caso, Arthur Bispo do Rosário), a matéria poética para a elaboração cênica. Em ambas as circunstâncias, nunes e Feliciano estão a investigar, no fundo, o próprio ofício artístico, entre as delícias e dores, as possibilidades e os agravos, a partir da trajetória de personalidades negras tão multifacetadas. Parece haver um gigantesco e instransponível abismo entre Arthur Bispo, incompreendido e estigmatizado, e o globalmente celebrado Ismael Ivo. Em verdade, há, de fato, inequívocas diferenças. Contudo, as relações entre estas duas obras nos levam a pensar nas estratégias formais e estéticas empreendidas por dois criadores que, cada qual a seu modo, burlaram expectativas acerca do que pode (ou deve) um artista negro fazer, complexificando, inclusive, nossas próprias noções de arte, dissolvendo, nesta atitude, purismos estanques ao conjugarem universos, técnicas e recursos estéticos imensamente variados. Bispo e Ivo são inventores experimentais no sentido mais radical da palavra, isto é, reclamam para si uma liberdade criativa sem presilhas essencialistas. No atual contexto histórico dos teatros negros, Prelúdio a Ismael Ivo se insere nestas discussões e práticas.
Em texto anterior, ao refletir sobre a obra dramatúrgica de Anderson Feliciano[2], ressaltei alguns elementos, traços e características que me pareciam nucleares, embora não acachapantes, de sua poética, como a existência de criaturas, a princípio solitárias, habitando um mundo indistinto, desprovido de realistas ou identificáveis indicações espaço-temporais; os efeitos e os impactos, mais ou menos ostensivos, de suas diversas travessias geográficas e linguísticas (diga-se de passagem, está é também uma das marcas incontestáveis do trabalho de Ismael Ivo); a presença dos signos e referências aquáticos como sinédoque e/ou metáfora de subjetividades, memórias e afetos em transformação, em movimento; uma investigação das fragilidades, desejos, intimidades e delicadezas no tecimento de relações porosas e vívidas entre as personagens, entre o palco e plateia etc. Tudo isso transparece, de maneira renovada, em Prelúdio Ismael Ivo.
É preciso ainda sublinhar que esta performance celebra três décadas de incessante trajetória artística de evandro nunes. Na saga deste artista cênico, poeta, pesquisador, educador e militante, estão emaranhados muitos projetos, ações e momentos decisivos de nossas cenas negras belo-horizontinas. Uma breve leitura de seu livro O Teatro Negro e Atitude no tempo: o tempo no Teatro Negro e Atitude já atesta o seu inarredável comprometimento político e cultural com uma profunda transformação social, levada à cabo, acima de tudo, por meio de uma ampla reeducação para as relações étnico-raciais. Neste processo, as estéticas e os saberes negros são pedras angulares. Estar, minimamente, cônscio desta longa estrada se converte em um importante prisma de leitura para encarar a performance em questão. Simbolicamente, as andanças, as memórias e os anseios de evandro e de Ismael se cruzam, mas sem se confundirem.
O título do trabalho já está carregado de intenções. Ora, a própria obra se assume como prelúdio, ou seja, é abertura, rito iniciático, ato introdutório que, justamente por isso, não visa concluir ou encerrar nada. Não é um réquiem (para usarmos o jargão musical), mas, volto a dizer, um prelúdio. A ideia ortodoxa de homenagem póstuma não se encaixa aqui, pois Ismael Ivo não passou. Nas curvas da ancestralidade ele é presença e está presente. Ainda. Conosco. Nesta senda, a performance também comemora a vida de evandro por meio de um rito em que a partilha e o encontro são pilares fundamentais.
Celebrações de vidas negras, de uma forma ou de outra, se tornam composições que enfrentam e se esquivam dos tantos mecanismos produtores de letais esquecimentos. Foi isso, de certo modo, o que pontuou Anderson Feliciano ao receber o último Prêmio Leda Maria Martins, na categoria Encruzilhada (Direção), pelo trabalho desenvolvido em Prelúdio. Ele arrematou seu discurso, convocando-nos:
“A gente precisa contar essa história. Uma bicha preta celebra 30 anos ininterruptos de produção artística nessa cidade [Belo Horizonte]. Joguemos no vento evandro nunes. Viva, viva, viva, você!”
Axé, evandro!
Axé, Ismael!
FICHA TÉCNICA
Concepção: Anderson Feliciano e evandro nunes
Direção: Anderson Feliciano
Performer/ator: evandro nunes
Trilha sonora: Marcos Mateus e evandro nunes
Concepção de figurino: Lira Ribas
Preparação corporal: Vic Alves
Concepção de luz: Tainá Rosa
Identidade visual: Aruanã de Oliveira e Acassio Filipe
Fotos/Vídeo: Pablo Bernardo
Performer selecionado: Camilo Gan
Assessoria de imprensa: Etiene Martins
Produção: Teatro Negro e Atitude
[1] Com esta obra, Ismael Ivo integrou a programação artística do Festival de Arte Negra (FAN) de 2007, ocasião na qual foi fotografado por Guto Muniz. Os registros visuais de sua passagem pela capital mineira podem ser encontrados no site Foco in Cena por meio do link: https://www.focoincena.com.br/mapplethorpe
[2] https://www.portaldedramaturgia.com/profile/anderson-feliciano