– Por Clóvis Domingos-
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica a partir do espetáculo O amor possível do Teatro Diadokai, assistido em 23 de novembro de 2024 na Sala Solo do Galpão Cine Horto (BH).
Em seu livro Razões da crítica, há um trecho no qual Luiz Camilo Osório afirma que algumas obras de arte provocam em nós, espectadores, a vontade de fala e conversa, resultantes da nossa experiência estética. Colocar uma obra em questão, é também colocar em perspectiva nós mesmos e as relações tecidas com o mundo, negociando e ampliando assim os sentidos daquilo que nos toca, num exercício de desdobramentos, que não abre mão da responsabilidade do diálogo (OSÓRIO, 2005, p.11).
O solo O amor possível do Teatro Diadokai (que fez uma temporada em Belo Horizonte no ano passado) é um espetáculo singelo e ao mesmo tempo dolorido, que convoca minha leitura e escrita crítica, fundadas por uma zona de interesses que se alicerça em temáticas como o mundo capitalista do trabalho, o drama com a chegada da velhice, a necessidade do exílio , os encontros amorosos, a solidão e vulnerabilidade humana frente à uma sociedade marcada pela técnica, velocidade, ganância e dissolução de histórias e existências singulares.
O amor possível é uma adaptação (de Priscilla Duarte e François Kahn) do romance A caverna, de José Saramago, conta com a direção de Priscilla e Ricardo Gomes. Traz a história de uma família de oleiros que se vê impactada e transformada com a chegada de um grande centro de compras à cidade, desencadeando de forma trágica a anulação do trabalho manual realizado pelo viúvo Cipriano Algor, cujas peças de barro agora serão obrigatoriamente substituídas por produtos de plástico. Numa espécie de parábola social, alegoricamente Saramago retrata a passagem de um mundo artesanal que aos poucos vai desaparecendo frente aos avanços tecnológicos.
No romance, publicado em 2000, o autor retorna ao mito de Platão para discutir o capitalismo em uma sociedade em que as pessoas se tornaram reduzidas apenas às profissões e sombras. No livro, o novo Centro Econômico (“a caverna”), pode ser comparado ao shopping center, espaço que simboliza o poder do lucro e da força das mercadorias, podendo ser considerado um ambiente inóspito e pouco poroso aos encontros, mais objetificando e apagando qualquer traço ou vestígio de humanidade e diferença. Na contramão das pessoas seduzidas por essas “grutas” consideradas pelo autor como “ frias e sombrias”, os personagens do romance descobrem e decidem que não cabem naqueles lugares. Ali a vida não é possível.
Teatro e artesanato: com as mãos na massa
Uma trabalha mais que a outra.
Dividem o peso dos anéis.
Uma nunca aprendeu a escrever.
Com isso a outra tornou-se mais silenciosa,
mais firme, mais acostumada ao adeus.
Em alguns gestos entram as duas
numa mesma coreografia
como quando é necessário contar algo
mais que cinco.
Aceitam as manchas dos anos
como solteironas
que envelhecem juntas.
(Mãos. A vida submarina. Ana Martins Marques, 2009)
Quando adentramos na sala, a personagem narradora já está ali a cantar e modelar sua argila. Tudo gira em torno de uma mesa, que como um centro gravitacional, será circulada por pequenos movimentos, repetidas aproximações e raros distanciamentos. Mas o foco reside na história narrada, na palavra falada e no jogo das mãos. O amor possível entrelaça barro, palavra e gesto numa fina teia repleta de delicadezas, silêncios e pedidos de escuta. A perplexidade do oleiro Cipriano (diante das mudanças que acontecem nos campos do trabalho e das relações humanas, que são recortes da adaptação) encontra abrigo na minuciosa e econômica atuação de Priscilla Duarte, que se divide no papel de narradora ao mesmo tempo que seu corpo também é matéria e molde para dar vida a cada personagem do romance, para que esses também possam expor seus pontos de vista, seus dilemas e emoções. A atriz- oleira e tecelã das palavras emerge como uma figura e voz situadas na fronteira entre as instâncias dramática e narrativa.
Na carpintaria dramatúrgica do espetáculo há uma busca pela descrição imagética e produção sensorial possíveis de ser extraídas do texto literário. A transposição para o espaço cênico experimenta um funcionamento dinâmico (ação dramática) que encontra suporte na utilização de objetos (a mesa, os tecidos, as louças de barro, a mala) que se configuram como elementos simbólicos carregados de força dramatúrgica e colaboram na tradução do que acontece no romance de Saramago. Os procedimentos cênicos (visualidade, cenografia, música) na adaptação feita, buscam e conseguem criar combinações capazes de nos trazer para dentro da estrutura narrativa existente nas páginas. É como se no espaço cênico a vida dos personagens na aldeia fosse mais habitável e respirável, enquanto na plateia fôssemos os olhos e presenças estranhas de um mundo contemporâneo fragmentado e conturbado. Isso se evidencia no único momento onde essa distância é rompida, quando Cipriano entra no subsolo da “caverna” (espaço da plateia) e se depara com os “mortos-vivos”.
Não somente os trechos e temas escolhidos apresentam um irresistível convite aos ouvidos e canais perceptivos do espectador, mas o fator desencadeador e pulsante dessa criação cênica se encontra nas sutis atmosferas que as palavras proferidas criam ou insinuam com seu poder de sugestão poética. Paradoxalmente, é como se fôssemos transportados para um mundo antigo, ao mesmo tempo impregnado pelos desafios dos dias de hoje. A plateia acompanha o ritmo proposto pela encenação. Não há pressa nem atropelo de informações. Com cadência melodiosa das palavras, não há consonância entre narrativa e ação, mas sobreposições, vácuos e desencaixes, com alguns trechos sendo apenas narrados e não mimetizados, permitindo assim que nosso olhar imagine e fabule o que (não) está ali. Tal procedimento se faz coerente com o romance, uma vez que o mesmo nos alerta sobre como somos seduzidos e bombardeados pelo excesso e consumo de imagens. Daí, no espetáculo, a simplicidade e densidade necessárias numa literatura incorporada através de um trabalho minimalista e intimista (o pequeno espaço da Sala Solo do Galpão Cine Horto também ajuda nesta composição) e um significativo repertório de gestos, intenções e vocalizações da intérprete que migra as palavras impressas no romance para serem inscritas e reescritas em seu corpo. Não diria que a atriz seja “um instrumento afinado” a serviço da literatura, porque no texto que serve de inspiração e referência (ainda que de outra autoria), há algo que certamente também são pensamentos, desejos e inquietações da artista.
Em sua tradução intersemiótica do romance português, a montagem do Teatro Diadokai também faz uma denúncia social afim de se pensar a precariedade do campo do trabalho. Diante da recusa de suas peças de barro, Cipriano vivencia uma sensação de perda e inutilidade com o passar do tempo num mundo descartável. O cântaro quebrado, num dado momento da peça, remete à fragilidade de um ofício ameaçado a desaparecer e prenuncia a insegurança, o medo e a impotência diante de uma cidade que avança e perturba a duração de um tempo até então ralentado e saboreado. Se pensarmos na atualidade, os serviços de terceirização predominam e há menos e raras possibilidades de um emprego fixo. O trabalho informal, autônomo e temporário tem gerado inúmeras formas de adoecimento psíquico e empobrecimento social. As máquinas substituem e também utilizam as mãos humanas, impondo mudanças negativas e positivas. Mas seria ingênuo de nossa parte desejar frear ou interromper o desenvolvimento econômico e tecnológico atuais (também têm suas vantagens) e romantizar uma época longínqua como que se nela tivéssemos somente vivido e desfrutado um mundo paradisíaco. Em cena, a atriz como ceramista, é mais um recurso da adaptação para gerar um procedimento metalinguístico capaz de se aproximar do fazer teatral. Seria, esse também, um ofício em vias de extinção ou seria ele, imorredouro?
Com esse trabalho específico do Teatro Diadokai, também é possível associar o barro a um modo de teatro mais vinculado à uma dimensão artesanal, rudimentar e carnal, com sua elasticidade e capacidade de adaptação a diferentes espaços, sua necessidade de encontro e palpitação coletiva. A cada noite, na apresentação de uma peça, o ator, feito um trabalhador braçal, coloca mais um tijolo na construção de uma parede, que no final irá desabar para que no dia seguinte tudo se refaça. Criação, destruição e reconstrução. Vale também ressaltar a suscetibilidade do fazer teatral diante da falta de recursos e de apoio, da desvalorização e muitas vezes da perseguição política e social.
O amor achado
Mas as mãos vazias de Cipriano irão encontrar o amor da viúva Isaura Madruga e a amizade leal do cão Achado. Como em outro poema de Ana Martins Marques que aborda as mãos, essas:
Separadas
pelo corpo
côncavas
cordatas
ásperas do contato
excessivo
com o mundo
agarram-se às coisas
soltas
agarram-se umas
às outras
*
Vagavam
vazias
vasculhando
vastas superfícies
ou esquecidas
sobre sítios
tristes
Até que chegaram
as suas.
(Da arte das armadilhas, 2011)
Em O amor possível a vida acontece no miúdo, na aparente calma dos dias cotidianos, sem grandes acontecimentos ou eventos mirabolantes, mas no chão do tempo, da vida, da memória que ainda resta e nutre. Celebra-se também a beleza do passar do tempo, a possibilidade do amor em suas múltiplas facetas, mesmo na maturidade ou no processo de envelhecer, quando a vida nos surpreende e descobrimos que ainda há uma margem para que coisas impensadas possam acontecer: “é bem verdade que nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe” (SARAMAGO, 2000, p. 14). Cipriano é um sobrevivente e circula entre algumas limitações e possibilidades, ainda que mínimas. Mas tem a coragem de escolher outro destino: abandona a cidade para garantir uma vida possível e junto com quem se importa com ele.
Em suma, o trabalho cênico apresentado une o oleiro Cipriano à atriz Priscilla, que atuam como modeladores de um mundo em busca de reinvenção e outros modos de viver. O canto final com a saída de cena da narradora tem a força de um ato de resistência, uma afirmação de vida. Com o espaço cênico vazio, nossas sombras se projetam e o que nos resta é criar.
Fico na torcida para que o espetáculo realize uma nova temporada.
Referências
MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
_____________________. Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
OSÓRIO, Luiz Camilo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.
SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
Ficha Técnica
Obra original e autor: A caverna de José Saramago
Adaptação teatral: Priscilla Duarte e François Kahn
Direção: Priscilla Duarte e Ricardo Gomes
Atuação: Priscilla Duarte
Colaboração artística: François Kahn
Direção de arte: Luiz Dias
Cenografia: Luiz Dias
Figurino: Caroline Manso
Produção de objetos: Maria Duarte
Criação de luz: Jésus Lataliza e Gabriel Corrêa
Preparação vocal: Ana Hadad
Identidade Visual: Carol Cafiero
Fotografia e registro audiovisual: Maria Duarte
Assessoria de imprensa e gestão de mídias sociais: Fernanda de Paula
Produção e Realização: Teatro Diadokai