— por Clóvis Domingos e Luciana Romagnolli –
Crítica a partir do espetáculo “PassAarão, do grupo Espanca! (BH)
Fotos de Pablo Bernardo.
Primeiro espetáculo de rua do Espanca, “PassAarão” acontece como um cortejo pela região central de Belo Horizonte. Carrega no nome o significante da rua Aarão Reis, endereço onde o grupo se estabeleceu em 2009 e, desde então, o aproximou do epicentro das mobilizações políticas na cidade e propiciou o convívio com cidadãos da periferia (em deslocamento) e em situação de rua. Dessa vivência vêm as sementes da criação do novo trabalho, feito com o espaço público e seus ocupantes.
A saída da sala de teatro, em si, já representa um passo significativo na trajetória do grupo, por sua singularidade. Rompe com a estabilidade da configuração frontal palco-plateia que sempre delineou as apresentações do Espanca, e dentro da qual a situação do encontro teatral frequentemente era problematizada por artifícios da atuação e da dramaturgia. Não bastasse o risco de se lançar ao ambiente desprotegido da rua, “PassAarão” tornou-se, ao longo do processo criativo, também uma espécie de incubadora de uma nova geração do grupo, após a saída de Marcelo Castro e o afastamento de Gustavo Bones, os dois remanescentes da primeira formação.
Sob a direção de Aline Vila Real, que antes atuava como produtora e interlocutora dentro do grupo, e com atores de uma geração mais jovem [1], “PassAarão” chega a público como mais um trabalho de reestruturação do Espanca – uma espécie de reinício. O prefixo “re”, aqui, é fundamental, porque ao mesmo tempo em que há todo um elenco renovado (Michelle Sá é a única exceção, atuou em “Real – Teatro de Revista Política”) e Aline estreia como diretora, há também muita continuidade de propósitos e respeito pela história do grupo (como expõe o figurino de Pedro Henrique Pedrosa, do qual pendem panfletos das peças do repertório).
Esta é uma guinada talvez até mais radical (o futuro dirá) do que a conduzida após a saída de Grace Passô, quatro anos atrás, quando tivemos “Dente de Leão” (que pode ser vista como uma peça de transição entre duas fases poéticas) e “Real”, que estabeleceu a aproximação direta com a realidade social inaugurada anteriormente na cena curta “Onde Está o Amarildo?”. O novo espetáculo avança nessa trilha ao se infiltrar na rua e se relacionar corpo a corpo com estruturas concretas e simbólicas da história e do presente de Belo Horizonte.
Falar da história da capital mineira é um ponto de partida importante para uma dramaturgia (assinada por Allan da Rosa) que se constrói pelas relações entre a cidade e seus habitantes, o que também pode ser dito de outra forma: como as relações entre os habitantes e os espaços constroem a cidade. E põe em evidência como as estruturas concretas, a exemplo do metrô, se sustentam em estruturas simbólicas e relacionais, dentre as quais, as relações de classe e raça na exploração da mão-de-obra durante a construção da cidade – e na atualidade.
Há nisso o investimento em redespertar um sentido de pertencimento, que se traduza em responsabilidade pelo espaço público e pelo comum, onde as singularidades possam coexistir fora da lógica do senhor e do escravo ou da exclusão da diferença. E há uma longa distância (histórica, econômica e social) que separa a cidade projetada da cidade de fato praticada e vivenciada. Quando os versos de “Cajuína” (Caetano Veloso) entoados a certa altura pelo elenco nos indagam “Existirmos: a que será que se destina?”, a cidade também se faz sujeito dessa pergunta, a ser respondida a cada dia por gestores e cidadãos diversos.
Nas ranhuras e contrastes de uma cidade feita de “carne e pedra”, como afirma Richard Sennet [2], no trabalho do Espanca, vemos uma cidade polifônica que emerge,seja através das vozes discursivas dos atores-atuantes,seja na própria voz das ruas com seus passantes. E mais: dá-se um embate entre a história considerada oficial e as histórias da vida cotidiana na cidade. A mesma cidade que encanta e abriga, é também uma cidade que “espanca”.
O espetáculo começa num tom de informalidade e certa dispersão. Somos convidados a seguir os atuantes que, como “guias turísticos” de outra cidade a ser descoberta, nos convidam a realizar uma experiência caminhante. O tom das atuações busca certa espontaneidade dos atores, misturados ao público, como se suas vozes se erguessem dessa coletividade que compartilha uma vivência comum de cidade para convocar a atenção a sair da rotina. Nesse entrecruzamento discursivo, parece haver o desejo, por parte da encenação, de se misturar diferentes leituras e apropriações subjetivas dessa história, que não cessa de se escrever por cada cidadão.
Algumas vezes, diante de tantas brincadeiras sobrepostas e cortes recorrentes, torna-se difícil manter a escuta. No processo de maturação do espetáculo, caberia ainda trabalhar a forma de enunciação na alternância entre os textos históricos e subjetivos para que o didatismo não prepondere. Nesse mesmo sentido, a marcação das ordens das falas pode ser suavizada para melhor fluir e conduzir o público em meio à vida pulsante da rua. Especialmente considerando que se busca uma apropriação desse espaço por parte dos atores que contamine os espectadores a se mobilizarem juntos.
Ao se apropriar da singularidade dos locais pelos quais passa, a encenação instala poéticas “site-specific”, nas quais esses espaços se tornam lugares pela força do encontro entre subjetividade, corpo e arquitetura.É o que se dá, por exemplo, quando Igor Leal chega correndo de outro extremo (como uma fuga) para denunciar a violência da homofobia na cidade. Sobre um tabuleiro concreto, a discussão acerca de temática tão fundamental simboliza o destino daqueles que divergem dos padrões estabelecidos e são literalmente destruídos ou colocados “fora do jogo”e do campo social.
Igor dirige seus questionamentos ao público e às pessoas dentro da estação de metrô, criando um momento de suspensão que destitui os passantes de seu anonimato momentâneo, e tenta fazê-los também escutar e se mobilizar, até que descobrimos a presença de outro atuante misturado aos anônimos a aplaudir, solitariamente. Quanto mais sua fala poética, cuja contundência corta na carne, atravessa o espaço de espera do transporte público e se interpõe no caminho daqueles que sobem e descem as escadas na lateral do metrô, mais seus sentidos se propagam para além de nós (espectadores que se deslocaram propositadamente para ver o espetáculo e, consequentemente, estão um pouco mais predispostos a ouvi-lo) até os ouvidos de transeuntes espontâneos e ocasionais, provocando fricções inesperadas com o cotidiano da cidade. Essa é também uma potência contida na presença de Brunno Oliveira na entrada principal da estação do metrô, onde sua fala-depoimento sobre agressões homofóbicas e transfóbicas sofridas se confronta com os trânsitos de uma população que pouco ou nada frequenta os teatros belo-horizontinos – e assim encontra outros públicos.
Carregam também essa força poética e política as palavras proferidas pela atriz Soraya Martins quando preenche de afeto o dado histórico sobre as mortes de trabalhadores negros na construção de Belo Horizonte, ao comparar a dor daquelas perdas não à de alguém que vela antepassados, mas de quem sente a ameaça sobre seus próprios “meninos”. Esse entrelaçamento entre uma história pública e a subjetividade que particulariza as experiências coletivas torna mais sensível a dramaturgia também quando, mais tarde, outra vez na pele de uma mãe negra, descreve como usa o próprio sangue para proteger o filho da polícia. As discussões sobre o sagrado feminino, o racismo e a violência policial, aqui, condensam riqueza metafórica à concretude da vida na periferia.
No percurso da encenação, a visita a uma galeria urbana é ponto forte no jogo proposto entre corpos e edificações para a renovação do olhar sobre o espaço público, pois revela as tatuagens e textos urbanos com os quais os sujeitos se apropriam da epiderme da cidade – e critica a institucionalização da arte atual, vista, por exemplo, no Museu situado na Praça da Estação. Condutora desse trajeto, Denise Lopes Leal encontra o equilíbrio entre as intenções da encenação e a relação com os passantes, com os quais vai estabelecendo conexões provisórias, sempre improvisadas e arriscadas. Pois é isso: eles “passarão” e atravessarão toda a proposta, a cidade não para em função do acontecimento cênico, ela compõe, integra, faz parte. Está viva e em ação.
Os figurinos parecem sugerir a presença de trabalhadores anônimos que constroem diariamente o espaço urbano. Mais do que personagens delineados, os atuantes evocam e encarnam sujeitos cotidianos, com suas “vidas menores” e suas vivências específicas. Esses uniformes destacam os atuantes-condutores de modo a não permitir um embaralhamento entre essas figuras e as pessoas “reais” da cidade, o que poderia ser muito potente para a proposta da encenação. Da maneira como estão caracterizados, parecem buscar menos essa diluição no comum da vida pública compartilhada do que a evidenciação do pertencimento a uma classe social delimitada: o operariado. Assim, o espetáculo assume suas posições de classe, raça e gênero ao lado dos desfavorecidos ou excluídos do corpo social. São estes os que terão voz e visibilidade no traçado pela cidade.
Fotos da primeira temporada, disponíveis no site do grupo.
Na saída da Estação Central, os discursos se interrompem para uma subida de costas, criando uma imagem em contra-fluxo e contrastante ao tempo dos passantes. A partir deste ponto, as diferentes apresentações vistas pelos críticos que aqui escrevem proporcionaram experiências distintas. Numa delas, os corpos coreografados deram tônus à encenação ao revelar a pressa cotidiana e o comportamento automatizado nos quais estamos todos comprometidos, além de instaurar uma cena composta por diferentes velocidades e lentidões, num encontro de presenças (dos atuantes e dos usuários do metrô). Na outra, essa qualidade de presença corpórea se dilui, antecipando certa descontinuidade do percurso gerada pela sequência da entrada num bar, onde o fio ficcional cede a um momento de convívio em primeiro plano.
Dentro do bar, a construção dramatúrgica não estrutura o acontecimento, ou seja, não propõe relações entre os sujeitos e o lugar para além do uso habitual, deixa-as soltas, a depender das interações espontâneas, do desejo de tomar uma cerveja ou papear. À sua maneira, esta parada espelha ao fim do trajeto de “Nossa Senhora do Horto” (da Toda Deseo), sem o sentido de finalidade que naquele espetáculo situa a celebração popular como resposta ao moralismo do interior da casa de família (leia crítica aqui). Em “PassAarão”, a ida ao bar não exerce função catártica. Surge no meio do percurso, como mais um ponto de parada da visita guiada (significativo numa cidade em que parte do turismo se organiza em torno da boêmia). Um anticlímax que pode ser considerado como gesto antiespetacular, durante o qual Denise Lopes Leal discretamente planta a busca por um amigo perdido.
Numa das apresentações da temporada de estreia, a violência urbana furou a ficção quando Denise foi parada e revistada por policiais. A segurança aparente do teatro como construção ficcional, mesmo na rua, se desfez: enquanto os policiais a mantinham sob suspeita (a partir de quais indícios ou pressupostos? – nos perguntávamos), algo terrível ameaçava o corpo e a liberdade dela, já não mais garantidas. Uma irrupção do real que seria ecoada, pouco depois, no discurso ficcional de Soraya Martins, mostrando as relações íntimas entre a fabulação da peça e a vida cotidiana naquele espaço público. Quando enfim a atriz foi liberada, a figura diabólica (Bremmer Guimarães) já não tinha como equiparar-se à intimidação recém-testemunhada.
Nessas tantas fricções entre realidade e ficção que permeiam a caminhada da rua Sapucaí à Aarão Reis, a ação política se impõe em forma de manifesto debaixo do viaduto Santa Tereza. O discurso feminista é proferido diretamente para o cenário teatral belo-horizontino, onde mulheres não se sentem seguras nem entre colegas. A gravidade dos fatos, aqui, não abre brecha para a poesia. Em vez disso, incorpora um dos palcos mais importantes das manifestações de resistência na cidade em sua função própria de “megafone” das reivindicações dos oprimidos. Como manifesto, o discurso proferido é da ordem da afirmação, da convocação, da definição. A arte já não se faz campo de abertura de sentidos, mas de tomada de posição.
Poucos passos adiante, encontramos um objeto que se apresenta como síntese das contradições e paixões movidas por “PassAarão”. Imagem única e impactante, de uma beleza inesperada, que representa em imensidão o que nos habituamos a ver feio ou invisível. Num espetáculo-deriva forjado na estética da precariedade, do baixo-orçamento, da composição crua da rua, o que a imaginação artística escolhe reconstruir é o excluído da percepção. Por fim, abre-se o tempo da inversão do olhar para assistirmos ao teatro das ruas, recriando a ação “Ruído” (já realizada por Marcelo Castro).
Ao abandonar o teatro como edifício, como convenção, como lugar seguro, o Espanca! mostra-se interessado em fazer teatro com outras subjetividades, outras concepções de cidade, outros modos de estar junto e de estruturar as relações sociais. Para isso, investiga a rua, sua arquitetura, seus caminhos e sua linguagem, propagando imagens e discursos vistos pelas perspectivas desses outros excluídos das normas sociais.
Tal percurso é movido pela radicalidade dos posicionamentos dos artistas envolvidos, em resposta a um contexto de renovação do fascismo na política partidária e subjetiva. O grupo procura, então, modos de equacionar a ação direta sobre a realidade, de um lado, e, do outro, a poesia que age sobre as sensibilidades para transformar simbolicamente nossas relações. Nos encontros entre esses dois registros, por vezes consegue sobrepor a disputa discursiva em curso em diversas instâncias sociais e instaurar momentos de experiência estética transformadora.
“PassAarão” é ainda um espetáculo tateante, feito de experiências e inexperiências, espantos e diluições. Em sua materialização cênico-urbana, consegue conciliar, na relação dos espectadores com a cidade, uma vivência sensorial e ao mesmo tempo crítica, ainda que suas escolhas espetaculares apresentem ações nas quais predominem a condução do percurso e a discursividade, sem permitir que se criem momentos em que certa vacuidade e uma contemplação mais demorada das paisagens pudessem possibilitar a latência da recepção e uma apreensão até mais minuciosas dos espaços, tanto do ponto de vista geográfico como social, ou a emergência de questões outras e diversas de acordo com o público participante a cada encontro, o que ampliaria ainda mais a condição coletiva do trabalho.
Essa deriva algo estranha ao que se compreendia até então pelo teatro do Espanca! mostra-se como sinal dos tempos e seu imperativo de renovação, de encontrar novos caminhos e novos sentidos. De desaprendizagem do que foi naturalizado para melhor agirmos. De rompermos as identificações a velhos padrões excludentes para libertar novos sujeitos sociais e convocar suas ações a transformar o espaço comum da cidade.
*Apresentações vistas na temporada de estreia, em junho de 2017, em Belo Horizonte.
[1] Três dos atores escrevem para o Horizonte da Cena: a crítica Soraya Martins e os críticos-colaboradores Bremmer Guimarães e Igor Leal.
[2] SENNET, Richard. “Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental”. Editora Record, 2003.
FICHA TÉCNICA
Direção: Aline Vila Real
Dramaturgia: Allan da Rosa
Elenco: Bremmer Guimarães, Brunno Oliveira, Denise Leal, Igor Leal, Kely de Oliveira, Michelle Sá, Pedro Henrique Pedrosa, Sammer Iêgo Lemos, Soraya Martins.
Direção de Movimento: Sérgio Penna
Criação e manipulação de Boneco: Pigmalião Escultura que Mexe
Confecção de Boneco: Pigmalião Escultura que Mexe e integrantes do Núcleo de Criação
Preparação Vocal: Ana Haddad
Figurino: Lira Ribas
Produção: Aristeo Serranegra
Assessoria de Comunicação: A dupla Informação
Projeto Gráfico: 45JJ
Registros Audiovisuais: Pablo Bernardo
Acompanhamento laboratorial: Lorena Braga
Coordenação dos Núcleos de Criação PassAarão:
Encontros provisórios: convívios instáveis, vibrantes e de alto risco: Marcelo Castro e Ana Luiza Santos
A construção do Gigante: Pigmalião Escultura que Mexe
Criatura: Alexandre de Sena, Aline Vila Real e Pablo Bernardo
Eis Aarão – história e diversidade da rua: Gustavo Bones, Fernando Salum e Mirela Persichini