por Julia Guimarães
Não é de hoje que narrativas documentais sobre as atrocidades da guerra ganham abordagens no teatro. Espetáculos recentes, como “O Palácio do Fim” e a Trilogia da Guerra, do Teatro Amok, além de peças importantes do século XX, como “O Interrogatório”, de Peter Weiss, são alguns desses emblemáticos exemplos.
Nesse sentido, o novo espetáculo do aclamado diretor paulista Nelson Baskerville junto com a Cia. Provisório-Definitivo se insere numa corrente já bastante explorada no teatro.
No entanto, “As Estrelas Cadentes do Meu Céu São Feitas de Bombas do Inimigo”, que faz sua temporada de estreia no Sesc Consolação, em São Paulo, consegue fugir, ou melhor, tingir com outras tonalidades os lugares-comuns desse tipo de abordagem. E o faz justamente pelas escolhas dramatúrgicas e estéticas assumidas no novo trabalho.
A opção por eleger o ponto de vista de crianças e jovens de diversos países e períodos da história recente – como as duas Guerras Mundiais, a Guerra do Vietnã, os conflitos do Oriente Médio ou a Guerra do Iraque – privilegia tanto um discurso orgânico como libertário sobre o tema.
Os relatos foram extraídos de diversas fontes: os livros “Vozes Roubadas: Diários de Guerra”, de Zlata Filipovic e Melanie Challenger, o “Diário de Anne Frank”, além do documentário “Jardim Ângela”, de Evaldo Mocarzel, que apresenta o depoimento do jovem Washington e inclui a guerra do tráfico brasileira no mapeamento dos conflitos apresentados no espetáculo, ao dar voz a um garoto que lida, de um lado, com a pressão do tráfico, de outro, com a opressão da polícia.
A organicidade desses relatos surge justamente do fato deles serem ditos por quem muitas vezes ainda não teceu complexas elaborações sobre o significado da guerra, mas que a experimentou de forma aguda e igualmente perplexa. Assim, o desejo de liberdade, tão forte em crianças e jovens, cria um contraste humanitário sobre aquilo que os conflitos impõem.
Por outro lado, a universalidade esboçada na costura de tantas épocas e países, destrinchada em narrativas curtas, aponta para o pano de fundo comum a todas as guerras, expresso no início e no fim da peça: o desejo de ter aquilo que é do outro, a urgência da ganância.
É importante dizer que o espetáculo só consegue dar potência aos relatos por se ancorar em uma encenação de grande plasticidade e força poética, que constrói potentes imagens para os depoimentos sem medo de redundar, mas fazendo desse jogo um potencializador dos sentidos que realmente importam ao discurso da cena. A própria escolha por priorizar o épico em relação ao dramático, sem perder de vista a ação contida nas narrativas, favorece um ponto alto do espetáculo, que é seu ritmo fragmentário.
Assim, o diretor Nelson Barskeville lança mão de bonecos, textos projetados, vídeos, além de uma iluminação primorosa, feita de tons em preto e branco, com luzes de led projetadas sobre o rosto dos depoentes, todos eles caracterizados com maquiagem pesada e expressionista. Se, por um lado, a intimidade dos relatos e a força das imagens contribuem para aproximar as histórias do público, por outro, a sofisticada teatralidade contida nos recursos citados acima também evita a adesão completa e favorece o distanciamento, muito bem-vindo nesse tipo de temática.
Igualmente distanciadora é a cenografia, que tem como moldura uma cortina de filó responsável por separar o público do espaço de encenação e garantir uma textura especialmente onírica e soturna ao espetáculo.
Através dessa encenação delicada, o espetáculo dá conta de uma abordagem que fala da guerra sempre na tensão com a perspectiva da liberdade. É o caso da cena final, extraída do “Diário de Anne Frank”, na qual quatro amigos comemoram um aniversário no porão onde estão escondidos dos nazistas. Agem em silêncio para não serem pegos: cantam, dançam, assopram velas, brindam a nova vida que estaria por vir. É o respiro contido de quem se nega a dobrar-se com a guerra, quando a sede por liberdade insiste em ser maior que o medo.